segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A divina caçada

Parece que foi Gagarin, glorioso herói do espaço, que disse que não viu Deus nas alturas — ele que bem devia saber que não existe um “lá em cima” nem um “lá embaixo” — suposta moradia de Deus e do Diabo. Quando a gente era deste tamanhozinho, aí sim, Deus estava logo ali por detrás das estrelas, todas elas muito perto também. Depois nos aconteceu, com a sapiência adulta, essa infinita distância... Mas na verdade as crianças estavam mais próximas da verdade. Pois Deus não será a procura de Deus? Aquilo mesmo que, dentro de nós, o procura? Tanto assim que o próprio “herege” Renan, perguntando-lhe alguém se Deus existia, respondeu simplesmente: — Ainda não.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Desaparecença

Nada com nada se assemelha.
Qual seria a diferença
entre o fogo do meu sangue
e esta rosa vermelha?
Cada coisa com seu peso,
cada quilômetro, seu quilo.
De que é que adianta dizê-lo,
isto, sim, é como aquilo?
Tudo o mais que acontece,
nunca antes sucedeu.
E mesmo que sucedesse,
acontece que esqueceu.
Coisas não são parecidas,
nenhum paralelo possível.
Estamos todos sozinhos.
Eu estou, tu estás, eu estive.
Paulo Leminski

Experiência

A experiência é aquilo que lhe permite reconhecer um erro quando você o comete de novo.”
Earl Wilson

Palavreado

Falácia” é um animal multiforme que nunca está onde parece estar. Um dia um viajante chamado Pseudônimo (não é o seu verdadeiro nome) chega à casa de um criador de falácias, Otorrino. Comenta que os negócios de Otorrino devem estar indo muito bem, pois seus campos estão cheios de falácias. Mas Otorrino não parece muito contente.
Lamenta-se:
- As falácias nunca estão onde parecem estar. Se elas parecem estar no meu campo e porque estão em outro lugar.
E chora:
- Todos os dias, de manhã, eu e minha mulher, Bazófia, saímos pelos campos a contar falácias. E cada dia há mais falácias no meu campo. Quer dizer, cada dia eu acordo mais pobre, pois são mais falácias que eu não tenho.
- Lhe faço uma proposta - disse Pseudônimo. - Compro todas as falácias do seu campo e pago um pinote por cada uma. -
Um pinote por cada uma? - disse Otorrino, mal conseguindo disfarçar o seu entusiasmo. - Eu devo não ter umas cinco mil falácias.
- Pois pago cinco mil pinotes e levo todas as falácias que você não tem.
- Feito.
Otorrino e Bazófia arrebanharam as cinco mil falácias para Pseudônimo. Este abre o seu comichão e começa a tirar pinotes invisíveis e colocá-los na palma da mão estendida de Otorrino.
- Não estou entendendo - diz Otorrino. - Onde estão os pinotes?
- Os pinotes são como as falácias - explica Pseudônimo. - Nunca estão onde parecem estar. Você está vendo algum pinote na sua mão?
- Nenhum.
- É sinal de que eles estão aí. Não deixe cair.
E Pseudônimo seguiu viagem com cinco mil falácias, que vendeu para um frigorífico inglês, o Filho and Sons. Otorrino acordou no outro dia e olhou com satisfação para o seu campo vazio. Abriu o besunto, uma espécie de cofre, e olhou os pinotes que pareciam não estar ali. Estava rico!
Na cozinha, Bazófia botava veneno no seu pirão.
Luís Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola

Haicais


Séculos antes da invenção das máquinas fotográficas, os japoneses já eram mestres na arte de fotografar. Fotografavam sem máquinas. Para isso usavam palavras. Suas maravilhosas miniaturas fotográficas feitas com palavras têm o nome de haicais. Quem lê um haicai vê. São tão pequenos – mas pesam tanto! Leminski, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luis Borges, descreve um haicai como um objeto poético mínimo de peso intolerável. Não tente entender. Você entende um pôr do sol? Um pássaro em voo? Um sorriso da pessoa amada? Não são para ser entendidos. São para ser vistos. O prazer do que se vê está no ato de ver e não no ato de pensar sobre o visto. Os pensamentos prejudicam a visão. Não foi à toa que Alberto Caeiro afirmou que “pensar é estar doente dos olhos”. Quem lê um haicai fica curado dos olhos por nos obrigarem a não pensar. Veja esse haicai: “Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem”. Acabou. É só isso. Agora, sem ser levado pelo desejo de compreender, entregue-se à visão. Veja a casa velha. A casa que abandonei. Passei por ela. Triste solidão. Os muros estão caídos. O jardim de outrora se transformou num matagal. As paredes estão descascadas. Mas, a despeito desse abandono, as cerejeiras florescem... As cerejeiras são fiéis. Pode-se confiar nelas. Às vezes brinco de fazer haicais, embora não obedeça à técnica. Aqui está um, inspirado pelas cerejeiras. Era o tempo quando se tinha medo de andar pelas ruas de Campinas. A morte estava à espreita nas esquinas. Aí eu vi um ipê florido e o haicai saiu: “Na cidade amedrontada os ipês-amarelos florescem”. Os ipês amarelos estão floridos de novo. Voltam sempre, no mesmo tempo, na ordem certa. Em julho florescem os ipês-rosas. Em agosto, os amarelos. Em setembro, os brancos. De todos, os mais desavergonhados são os ipês-amarelos. Minivulcões em erupções de alegria. É bom ver sua copa amarela, sem uma única folha, contra o céu azul. Alguns deles, fui eu que plantei. Mas são poucos os que se assombram e param para vê-los. Acho um ipê-amarelo florido um milagre maior que um cego ver ou um paralítico andar.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

domingo, 30 de outubro de 2016

Linhas tortas

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto… toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino
torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
Manoel de Barros, in Meu quintal é maior do que o mundo

Bartolominha e o pelicano

Vivia em ilha ventada, onde mais ninguém. Chamava se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel atividade. Esqueceram se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixumar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.
De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.
A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa idosa parente. Muito quem chorava era minha mãe, sua dileta filha. Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?
Desembarcámos com o peito enrodilhado, olhando a medo os recantos do sítio. Suspiramos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falamos em sair dali, ela se contrafez. Minai, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.
Bartolominha respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhamos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:
Quem lhe arranja sustento?
Nos mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se refeiçoar.
Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagracer este farol.
Regressamos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento roendo me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.
E voltei a visitar a ilha. Demorei me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.
Só quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro mim.
Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.
Nessa noite, jantamos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.
Uma dessas tardes vou com ele, por esses aforas.
Deitei me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um tecto. Me deixei adormecer mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha fundura nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um muito volumoso bico.
O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.
Mia Couto, in Na berma de nenhuma estrada

Leitura de duas maneiras

Acho que lia no mínimo de duas maneiras. Primeiro, seguindo ofegante os eventos e as personagens, sem me deter nos detalhes, o ritmo acelerado da leitura às vezes arremessando a história para além da última página - como quando li Rider Haggard, a Odisséia, Conan Doyle e Karl May, autor alemão de histórias do Oeste selvagem. Em segundo lugar, explorando cuidadosamente, examinando o texto para compreender seu sentido emaranhado, descobrindo prazer no simples som das palavras ou nas pistas que as palavras não queriam revelar, ou no que eu suspeitava estar escondido no fundo da própria história, algo terrível ou maravilhoso demais para ser visto. Esse segundo tipo de leitura - que tinha algo da qualidade da leitura de histórias policiais - eu descobri em Lewis Carrol , Dante, Kipling, Borges. Eu lia também baseando-me no que supunha que um livro fosse (rotulado pelo autor, pelo editor, por outro leitor). Aos doze anos de idade, li A caçada de Tchekov numa coleção de romances policiais, e, acreditando ser Tchekov um escritor russo desse gênero, li depois “Senhora com Cachorrinho” como se tivesse sido escrita por um concorrente de Conan Doyle - e gostei da história, embora julgasse o mistério um tanto ralo. Da mesma forma, Samuel Butler fala de um certo Wil iam Sefton Moorhouse, que “imaginava estar sendo convertido ao cristianismo ao ler a Anatomia da melancolia de Burton, que ele confundira com a Analogia de Butler, por recomendação de um amigo. Mas o livro o intrigou bastante”. Numa história publicada na década de 1940, Borges sugeriu que ler A imitação de Cristo, de Thomas Kempis, como se tivesse sido escrito por James Joyce “seria uma renovação suficiente para aqueles exercícios espirituais tênues”.
Alberto Manguel, in História da leitura

sábado, 29 de outubro de 2016

Vigília

Triunfo de herói morto — claro, dórico
Em seus verões eretos, passageiros
Sustentos de frontões de eternidade
Invernosos, sombrios.

Que mãos, postas em meio a tua ausência
Clamorosa, puderam resolver
O enigma dos eclipses desse sol
Alegórico, altivo?

Mas não temos resposta.
E a esfinge desdenha
Devorar-nos na paz que a transfigura
Após a fértil guerra pela inútil
Coroa longeviva.

Entretanto jazemos entre as tochas
Com ele. E nos repele. E nos confunde.
E só resta partir, por desertos agônicos
Semeando-lhe as cinzas,
Até que destas velas nasçam ramas
E pássaros apaguem luto e chamas.
Mário Faustino

Liberdade

Primeiro sê livre; depois pede a liberdade.”
Fernando Pessoa

A dor e o prazer

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos.”
Jeremy Bentham

No velório de Quincas

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimbYYcWFyIz4VGmmadAlXESGSgVWuIjSmB6PxCkSo9SxBv7CzAiz40kbwkeV3f26I35r5YwYkfJGoIenSlTTtkk67NEU0K0hsiFmfq8UF-rqiyYkRKU9vo9maaepw3C3Ny3liUsnybHNsO/s1600/quincas+berro+dagua.jpg 

Às dez horas da noite, Leonardo, levantando-se do caixão de querosene, aproximou-se das velas, viu as horas. Acordou Eduardo a dormir de boca aberta, incômodo, na cadeira:
Vou embora. Às seis da manhã estarei de volta para você ter tempo de ir em casa mudar a roupa.
Eduardo estirou as pernas, pensou em sua cama. Doía-lhe o pescoço. No canto do quarto, Curió, Pé-de-Vento e cabo Martim conversavam em voz baixa, numa discussão apaixonante: qual deles substituiria Quincas no coração e no leito de Quitéria do Olho Arregalado? Cabo Martim, revelando um egoísmo revoltante, não aceitava ser riscado da lista de herdeiros pelo fato de possuir o coração e o corpo esbelto da negrinha Carmela. Eduardo, quando o eco dos passos de Leonardo perdeu-se na rua, fitou o grupo. A discussão parou, cabo Martim sorriu para o comerciante. Este olhava, invejoso, Negro Pastinha no melhor dos sonos. Acomodou-se novamente na cadeira, pôs os pés sobre o caixão de querosene. Doía-lhe o pescoço. Pé-de-Vento não resistiu, retirou a jia do bolso, colocou-a no chão. Ela saltou, era engraçada. Parecia uma assombração solta no quarto.
Eduardo não conseguia dormir. Olhou o morto no caixão, imóvel. Era o único a estar comodamente deitado. Por que diabo estava ele ali, fazendo sentinela? Não era suficiente vir ao enterro, não estava pagando parte das despesas? Cumpria seu dever de irmão até bem demais em se tratando de um irmão como Quincas, um incômodo em sua vida.
Levantou-se, movimentou pernas e braços, abriu a boca num bocejo. Pé-de-Vento escondia na mão a pequena jia verde. Curió pensava em Quitéria do Olho Arregalado. Mulher e tanto... Eduardo parou ante eles:
Me digam uma coisa...
Cabo Martim, psicólogo por vocação e necessidade, perfilou-se:
Às suas ordens, meu comandante.
Quem sabe não iria o comerciante mandar comprar uma bebidinha para ajudar a travessia da noite longa?
Vocês vão ficar a noite toda?
Com ele? Sim senhor. A gente era amigo.
Então vou em casa, descansar um pouco – meteu a mão no bolso, retirou uma nota. Os olhos do Cabo, de Curió e Pé-de-Vento acompanhavam seus gestos. – Tá aí para vocês comprarem uns sanduíches. Mas não deixem ele sozinho. Nem um minuto, hein!
Pode ir descansado, a gente faz companhia a ele.
Negro Pastinha acordou quando sentiu o cheiro de cachaça. Antes de começar a beber, Curió e Pé-de-Vento acenderam cigarros; cabo Martim, um daqueles charutos de cinquenta centavos, negros e fortes, que só os verdadeiros fumantes sabem apreciar. Passara a fumaça poderosa sob o nariz do negro, nem assim ele acordara. Mas apenas destamparam a garrafa (a discutida primeira garrafa que, segundo a família, o Cabo levara escondida sob a camisa) o negro abriu os olhos e reclamou um trago.
Os primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito crítico. Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se mesquinha e avarenta. Fizera tudo pela metade. Onde as cadeiras para as visitas sentarem? Onde as bebidas e comidas habituais, mesmo em velórios pobres? Cabo Martim comparecera a muita sentinela de defunto, nunca vira uma tão vazia de animação. Mesmo nas mais pobres serviam pelo menos um cafezinho e um gole de cachaça. Quincas não merecia tal tratamento. De que adiantava arrotar importância e deixar o morto naquela humilhação, sem nada para oferecer aos amigos? Curió e Pé-deVento saíram em busca de assentos e mantimentos. Cabo Martim achava necessário organizar o velório com um mínimo de decência, pelo menos. Sentado na cadeira, dava ordens: caixões e garrafas. Negro Pastinha ocupara o caixão de querosene, aprovava com a cabeça. Devia-se confessar que, em relação ao cadáver propriamente dito, a família comportara-se bem. Roupa nova, sapatos novos, uma elegância. E velas bonitas, das de igreja. Ainda assim haviam esquecido as flores, onde já se viu cadáver sem flores?
Está um senhor – gabou Negro Pastinha. – Um defunto porreta!
Quincas sorriu com o elogio, o negro retribuiu-lhe o sorriso:
Paizinho... – disse comovido e cutucou-lhe as costelas com o dedo, como costumava fazer ao ouvir uma boa piada de Quincas.
Curió e Pé-de-Vento voltaram com caixões, um pedaço de salame e algumas garrafas cheias. Fizeram um semicírculo em torno ao morto e então Curió propôs rezarem em conjunto o Padre-Nosso. Conseguira, num surpreendente esforço de memória, recordar-se da oração quase completa. Os demais concordaram, sem convicção. Não lhes parecia fácil. Negro Pastinha conhecia variados toques de Oxum e Oxalá, mais longe não ia sua cultura religiosa. Pé-de-Vento não rezava há uns trinta anos. Cabo Martim considerava preces e igrejas como fraquezas pouco condizentes com a vida militar. Ainda assim tentaram, Curió puxando a reza, os outros respondendo como melhor podiam. Finalmente Curió (que se havia posto de joelhos e baixara a cabeça contrita) irritou-se:
Cambada de burros...
Falta de treino... – disse o Cabo. – Mas já foi alguma coisa. O resto o padre faz amanhã.
Quincas parecia indiferente à reza, devia estar com calor, metido naquelas roupas quentes. Negro Pastinha examinou o amigo, precisavam fazer alguma coisa por ele já que a oração não dera certo. Talvez cantar um ponto de candomblé? Alguma coisa deviam fazer. Disse a Pé-de-Vento:
Cadê o sapo? Dá pra ele...
Sapo, não. Jia. Agora, pra que lhe serve?
Talvez ele goste.
Pé-de-Vento tomou delicadamente a jia, colocou-a nas mãos cruzadas de Quincas. O animal saltou, escondeu-se no fundo do caixão. Quando a luz oscilante das velas batia no seu corpo, fulgurações verdes percorriam o cadáver.
Entre cabo Martim e Curió recomeçou a discussão sobre Quitéria do Olho Arregalado. Com a bebida, Curió ficava mais combativo, elevava a voz em defesa dos seus interesses. Negro Pastinha reclamou:
Vocês não têm vergonha de disputar a mulher dele na vista dele? Ele ainda quente e vocês que nem urubu em carniça?
Ele é que pode decidir... – disse Pé-de-Vento. Tinha esperanças de ser escolhido por Quincas para herdar Quitéria, seu único bem. Não lhe trouxera uma jia verde, a mais bela de quantas já caçara?
Hum! – fez o defunto.
Tá vendo? Ele não está gostando dessa conversa – zangou-se o negro.
Vamos dar um gole a ele também... – propôs o Cabo, desejoso das boas graças do morto.
Abriram-lhe a boca, derramaram a cachaça. Espalhou-se um pouco pela gola do paletó e o peito da camisa.
Também nunca vi ninguém beber deitado...
É melhor sentar ele. Assim pode ver a gente direito.
Sentaram Quincas no caixão, a cabeça movia-se para um e outro lado. Com o gole de cachaça ampliara-se seu sorriso.
Bom paletó... – cabo Martim examinou a fazenda. – Besteira botar roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai pra baixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente por aí precisando...
Palavras cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de dar razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo com as considerações de Martim.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quinas Berro D’agua

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Curativo

http://casamento.culturamix.com/blog/wp-content/gallery/Superar-um-Cora%C3%A7%C3%A3o-Partido-6/Superar-um-Cora%C3%A7%C3%A3o-Partido-13.jpg

Quanto dura uma crise de amor?
Ela tem cura?
Como se estanca o sangue da fissura?
Colam-se os cacos?
Cospem-se os sapos?
Rasgam-se os trapos?
Se houver receita que atenue o machucado,
quem sabe um dia ainda se veja restaurado
este pobre coração de esparadrapo.
Flora Figueiredo

Bonecas de 1900

Uma senhorita exemplar serve ao pai e aos irmãos como servirá ao marido, e não faz nem diz nada sem pedir licença. Se tem dinheiro ou berço, acode à missa das sete e passa o dia aprendendo a dar ordens aos serviçais negros, cozinheiras, serventes, babás, amas-de-leite, lavadeiras, e fazendo trabalhos de agulha ou bilro. Às vezes recebe amigas, e até se atreve a recomendar algum livro ousado, sussurrando:
Se você soubesse como me fez chorar...
Duas vezes por semana, à tardinha, passa algumas horas escutando o noivo, sem olhá-lo e sem permitir que chegue perto, ambos sentados no sofá, frente ao olhar atento da tia. Todas as noites, antes de se deitar, reza as ave-marias do rosário e aplica na pele uma infusão de pétalas de jasmim amassadas em água de chuva à luz da lua cheia.
Se o noivo a abandona, ela se transforma subitamente em tia e fica portanto condenada a vestir santos, defuntos e recém-nascidos, a vigiar noivos, a cuidar de doentes, a dar o catecismo e a suspirar pelas noites, na solidão da cama, contemplando o retrato de quem a desdenhou.
Eduardo Galeano, in Mulheres

Aprender a viver

Pudesse eu um dia escrever uma espécie de tratado sobre a culpa. Como descrevê-la, aquela que é irremissível, a que não se pode corrigir? Quando a sinto, ela é até fisicamente constrangedora: um punho fechando o peito, abaixo do pescoço: e aí está ela, a culpa. A culpa? O erro, o pecado. Então o mundo passa a não ter refúgio possível. Aonde se vá e carrega-se a cruz pesada, de que não se pode falar.
Se se falar – ela não será compreendida. Alguns dirão – “mas todo o mundo…” como forma de consolo. Outros negarão simplesmente que houve culpa. E os que entenderem abaixarão a cabeça também culpada. Ah, quisera eu ser dos que entram numa igreja, aceitam a penitência e saem mais livres. Mas não sou dos que se libertam. A culpa em mim é algo tão vasto e tão enraizado que o melhor ainda é aprender a viver com ela, mesmo que tire o sabor do menor alimento: tudo sabe mesmo de longe a cinzas.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

Hábito

O hábito fortalece todas as coisas: tanto no mal como no bem, um contato prolongado nos faz tomar o gosto.”
Sêneca

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Canção do remendo e do casaco

Sempre que o nosso casaco se rasga
vocês vêm correndo dizer: assim não pode ser;
isso vai acabar, custe o que custar!
Cheios de fé vão aos senhores
enquanto nós, cheios de frio, aguardamos.
E ao voltar, sempre triunfantes,
nos mostram o que por nós conquistam:
Um pequeno remendo.
Ótimo, eis o remendo.
Mas onde está
o nosso casaco?
Sempre que nós gritamos de fome
vocês vêm correndo dizer: Isso não vai continuar,
é preciso ajudá-los, custe o que custar!
E cheios de ardor vão aos senhores
enquanto nós, com ardor no estômago, esperamos.
E ao voltar, sempre triunfantes,
exibem a grande conquista:
um pedacinho de pão.
Que bom, este é o pedaço de pão,
mas onde está
o pão?
Não precisamos só do remendo,
precisamos o casaco inteiro.
Não precisamos de pedaços de pão,
precisamos de pão verdadeiro.
Não precisamos só do emprego,
toda a fábrica precisamos.
E mais o carvão.
E mais as minas.
O povo no poder.
É disso que precisamos.
Que tem vocês
a nos dar?
Bertolt Brecht

Homo insapiens

Vocês se lembram de quando a gente se perdia no campo e soltava a rédea ao cavalo e ele voltava direitinho para casa? Pois até hoje, quando não me lembro de onde guardei uma coisa, desisto de quebrar a cabeça, afrouxo o espírito e eis que ele conduz meu passo e minha mão sonâmbula ao lugar exato. Quanto a saber qual dos dois, espírito e corpo, é o cavaleiro e o cavalo, é questão acadêmica. Só sei que isso não me acontece agora na vastidão do campo, mas dentro de uma casa, de uma sala, de um móvel…
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Penélope

Naquela rua morava um casal de velhos. A mulher esperava o marido na varanda, tricoteando em sua cadeira de balanço. Quando ele chegava ao portão, ela estava de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessava o pequeno jardim e, no limiar da porta, antes de entrar, beijava-a de olhos fechados. Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela porta aberta da cozinha, os vizinhos podiam ver que o marido enxugava a louça para a amiga. Aos sábados, saíam a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usava um vestido branco fora de moda; ele, ainda de preto. Um mistério a sua vida; sabia-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudaram-se para Curitiba.
Só os dois, sem cachorro, gato, passarinho. Por vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Se engordava uma galinha, logo se enternecia, incapaz de matá-la. O homem desmanchou o galinheiro e, no lugar, plantou cacto feroz. Arrancou a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa se atrevia a dar seu resto de amor.
A não ser no sábado, não saíam de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acharam a seus pés uma carta.
Ninguém lhes escrevia, nenhum parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propôs queimá-lo, já tinham sofrido demais. Ele respondeu que pessoa alguma lhes podia fazer mal.
Não queimou a carta, não a abriu, esquecida na mesa. Sentaram-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixava a cabeça, mordia uma agulha, com a outra contava os pontos e, olhar perdido, recontava a linha. O homem com o jornal dobrado no joelho lia duas vezes cada frase. O cachimbo apagou, não o acendeu, ouvindo o seco bater das agulhas.
Abriu enfim a carta. Duas palavras: “Corno manso”, em letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Estendeu o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. Ela se pôs de pé, a carta na ponta dos dedos.
Que vai fazer?
Queimar.
Ele acudiu que não. Enfiou o bilhete no envelope, guardou no bolso. Ergueu a toalhinha caída no chão e prosseguiu a leitura do jornal.
A mulher recolheu na cestinha o fio e as agulhas.
Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as casas.
O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esqueceu o papel no bolso, outra semana passou. No sábado, antes de abrir a porta, sabia que a carta estava à espera. A mulher pisou-a, fingindo que não via. Ele a apanhou e meteu no bolso.
Ombros curvados sobre o trabalho, contando a mesma linha, ela perguntou:
Não vai ler?
Por cima do jornal admirava a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia.
Já sei o que diz.
Por que não queima?
Era um jogo e exibiu a carta: nenhum endereço. Abriu-a, duas palavras, letras recortadas. Soprou o envelope, sacudiu-o sobre o tapete, mais nada. Colecionou-a com a outra e, ao dobrar o jornal, notou que a amiga desmanchava um ponto errado na toalhinha, Acordou no meio da noite, saltou da cama, foi olhar à janela. Afastou a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
Sábado seguinte, durante o passeio, pensou se apenas ele recebia a carta. Podia ser engano, não tinha direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Empurrou a porta, lá estava: azul. No bolso com as outras, abriu o jornal. Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a legenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e assim ganhava tempo de seus pretendentes, à espera do marido. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar suas agulhas após o regresso de Ulisses?
No banheiro fechou a porta, rompeu o envelope. Duas palavras... Imaginara um plano: guardou a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendurou o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixava a garrafa de leite na porta, ele foi-se deitar. Pela manhã examinou o envelope: parecia intacto, ao mesmo lugar. Esquadrinhou-o em busca do cabelo branco — não o achou.
Desde a rua vigiava os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontrá-lo no portão — nos olhos o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tinha sinais de dente... Na ausência dela, abria o guarda-roupa, enterrava a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espionava os homens que cruzavam a calçada. Conhecia o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.
Reconstituía os gestos da amiga: pó nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Marcava o tempo pela toalhinha. Sabia quantas linhas a mulher tricoteava e quando, errando o ponto, devia desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.
Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lia, observava o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreitava à janela: a cortina amarrotada pela mão raivosa.
Afinal comprou uma arma. “Para que o revólver?” — espantou-se a companheira. Ele referiu o número de ladrões na cidade. Exigia conta de antigos presentes. Não faria toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigiava a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela errava o ponto, tinha de desmanchar a linha.
Aguardava-o na varanda. Como se não a conhecesse, passava diante da casa. Na volta, sentia os cheiros no ar, corria o dedo sobre os móveis, apalpava! a terra das violetas — sabia onde a mulher estava.
De madrugada acordou e viu o travesseiro vazio, ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Fazia seu tricô, sempre a toalhinha. Era Penélope desfazendo na noite o trabalho de mais um dia?
Erguendo os olhos, a mulher deu com o revólver. As agulhas batiam, sem qualquer fio.
Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitaram, ele caiu em sono profundo.
Havia um primo no passado. Em vão a dona jurava: o primo aos doze anos morto de tifo. No serão ele retirou as cartas do bolso — eram muitas, uma de cada sábado — e leu, entre dentes, uma por uma.
Não aceitou permanecer em casa no sábado, para identificar o autor. Sentia falta daquele bilhete. Á. correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim seria vencedor. Um dia o outro revelaria tudo, forçoso não interrompê-la.
No portão dava o braço à companheira, não se falavam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanhava o envelope e, antes de abri-lo, andava com ele pela casa. Em seguida escondia um cabelo na dobra, deixava-o na mesa.
Sempre achou o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se lembrava, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?
Uma tarde abriu a porta e aspirou o ar. Deslizou os dedos sobre os móveis: pó. Tateou a terra dos vasos: seca. Direito ao quarto de janelas fechadas e acendeu a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido branco ensanguentado. Deixou-a de olhos abertos.
Não sentiu piedade, havia sido justo. A polícia o mandou em paz, não estava em casa à hora em que a mulher se suicidara. Quando o enterro saiu, os vizinhos comentaram a sua dor profunda, não chorava. Segurando uma alça do caixão, ajudou a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, foi-se embora.
Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.
Acendeu o abajur de seda verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha.
Sábado, recordou-se. Pessoa alguma tinha poder de fazer-lhe mal. A mulher pagara pelo crime.
Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.
Um meio de saber, podia envelhecer tranquilo. Destinadas a ele, não viriam, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão. Acompanhado, ninguém sabe, o enterro.
Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — um pouco de água na cova.
Saiu de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos. Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorriu com desdém da sua vaidade, ainda morta...
Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repetia, “fui justo” —, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares