sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Rotatória

As placas indicavam o contrário.
A menina dobrou o mapa,
guardou a bússola,
dispensou a lógica,
a máxima, o sextante,
quebrou o molde,
rasgou o formulário,
seguiu adiante.
Preferiu se aventurar no imaginário.
Flora Figueiredo

Sorôco, sua mãe, sua filha

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo — o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol — o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.
O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. — “Vai ver se botaram água fresca no carro...” — ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: — “Eles vêm!...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha — a moça — tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras — o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas — virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco — para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: — “Deus vos pague essa despesa...”
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. — “Ela não faz nada, seo Agente...” — a voz de Sorôco estava muito branda: — “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras gran-dezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo — um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
Sorôco.
Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo — o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: — “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido — ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si — e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A gente se esfriou, se afundou — um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

Falso x Verdadeiro

Seria curioso fazer um tratado de todas as falsidades que podem compor o verdadeiro.”
Eugène Delacroix

Criem suas obras de arte

Você não tem talento para as artes plásticas? Pois seus problemas acabaram, pois você pode transformar suas fotos em verdadeiras obras de arte, sem complicações, através d0 aplicativo Prisma, disponível para os sistemas operacionais Android e IOS.
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Tanto você pode fotografar com o próprio aplicativo e aplicar os filtros logo depois, quanto acessar a sua biblioteca e recriar as fotos ali já existentes. Para iniciar o processo de criação, basta abrir a imagem e selecionar um dos filtros disponíveis. Depois deslize o dedo sobre a foto – para a direita, para diminuir, para a esquerda, para aumentar - para definir com qual intensidade o filtro será aplicada sobre ela.
O Prisma tem conexão direta com o Facebook e o Instagram. Ou seja, depois de fazer as alterações, você pode compartilhar suas obras de arte nas redes sociais.
A seguir, um exemplo dos recursos do Prisma, aplicados em uma foto de um recanto em meu lar.









 


 





   




 
 




Palavras quebradas na poética araweté

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Foto: Alice Kolher 

A criação de poemas pode vir de um sujeito inspirado por suas ideias, sensações ou afecções, mas os mundos ameríndios nos mostram a possibilidade de outras fontes de inspiração. Mostram, para começar, que sujeitos são atravessados por relações que ultrapassam a pessoa, que ligam um Eu a diversos Outros. Mostram que essas relações são fontes geradoras de cantos, narrativas e discursos. E mostram, enfim, que o enunciador de um canto dificilmente é o único responsável pela criação de uma nova expressão poética.
Entre os Araweté, com quem trabalho desde 2011, os cantos estão relacionados a diversas figuras de alteridade, onde predominam os inimigos, os deuses e os espíritos. São esses Outros que, ao fim e ao cabo, geram aquilo que é cantado pelos Araweté. Os “cantos de inimigo”, na expressão de Eduardo Viveiros de Castro, são um dos gêneros da poética araweté e têm sua origem nas escaramuças em que os Araweté se envolveram com outros povos indígenas do interflúvio Xingu-Tocantins. São cantos muito difíceis de traduzir, como me diziam Irarũno e Jatumaro Araweté, dois jovens-adultos que trabalharam comigo na transcrição e tradução de cantos. São cantos em que as palavras são decompostas e recompostas para formar novos vocábulos que, na língua araweté, não querem dizer nada. As palavras são quebradas em sílabas e, então, ligadas a sílabas de outras palavras, mas das novas composições verbais não é possível extrair um referente qualquer. Extrair o sentido dessas novas expressões, então, requer realizar um processo inverso de decomposição/recomposição, que busque encontrar as palavras escondidas sob esse véu de transformação. No entanto, se a transcrição desses cantos exige esse processo de decodificação atenta, a criação dos cantos decorre de um evento bem diferente. Se o tradutor precisa ouvir e pensar como grafar os cantos de inimigo, o cantor precisa encontrar um inimigo.
Acesse a matéria completa da Revista Cult aqui.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Em nome da ética

Em nome da ética, e muito mais da ética revolucionária, se fizeram coisas pouco éticas. Eu não convocaria para uma revolução ética. Certa vez eu disse que estamos precisando de uma insurreição ética. Mas vamos matizar um pouco. Creio que tudo isso seria menos conflituoso se pensássemos numa espécie de sentido ético da existência. Sem revolução. Ter para cada um de nós um sentido ético da existência, no silêncio da nossa consciência. Claro, a consciência não é nada silenciosa, ao contrário. A consciência fala.
José Saramago, in As palavras de Saramago

As fontes

Você podia ter ficado longe e sem correr riscos. Mas voltou. Entrou sem bigodes, com os cabelos tingidos e cortados curtos e óculos de mentira e um nome qualquer. Tinham se passado dois longos anos. Você pôde caminhar pelas ruas da cidade, embora pouco e com cuidado, e o coração parecia dar murros no peito e a cidade reconhecia você em segredo e o aceitava. E você me disse, com voz de touro, enquanto mordia uma maçã: “Tinha que voltar. Não se pode ficar sentado na própria segurança como se fosse a maior bunda do mundo”. Você estava muito nervoso e queria rir e não conseguia.
Pouco depois veio o verão, você mandou um recado, nos encontramos para tomar cerveja gelada. Você falou na frente de um exército de garrafas vazias. Você tinha podido mexer-se um pouco, quase nada, mas tinha sido suficiente: suficiente para que você sentisse o cheiro da fúria nos bairros, a cidade tinha os dentes apertados: “Se demoro um ano a mais, só encontro cinzas. E ainda não existem condições objetivas? Tem uns caras-de-pau... Você quer contradições mais superantagônicas? Daqui a pouco as pessoas vão brigar até pelo capim que cresce nas calçadas”.
As moscas passeavam, lentas, pelo ar pegajoso.
Essa desgraça toda vem grávida – você disse.
Bebeu a cerveja de um gole só e limpou a espuma da boca com as costas da mão.
Não quero dizer que seja tão fácil como soprar garrafas. Já sei que a fome também produz faquires. Você soma miséria e mais miséria e às vezes o resultado é apenas mais miséria. Já sei, a gente tem que respeitar a realidade. Foi difícil aprender isso. E mais difícil foi aprender que ela não tem nenhum motivo para nos respeitar. E, se tivermos de nos arrebentar, a solução é arrebentar-se e pronto, não é? Foi difícil aprender isso.
Um ar úmido e quente pesava sobre as ruas. Cedo ou tarde choveria, teria que chover, de repente estourariam os ventres das nuvens paridoras de tormentas. Você disse:
Será certo que no fundo somos cristãos apressados? Baixar o céu com as mãos. Nós também trazemos a boa notícia. O reino dos justos e dos livres... Juan teria gostado da ideia. Quero dizer, se estivesse vivo.
A cerveja estava densa, a espuma era um creme frio, era sentida na boca e na garganta e nas tripas. “As coisas são fáceis – você disse –, estão mais claras.” E em seguida você disse: “Mas serão mais difíceis para mim, agora. Já estão sendo, sabe?” E em seguida:
Foi muito duro para mim vir, sabe?
Você estava sentado, as costas contra a parede.
Porque agora tenho mulher.
Você nunca dava as costas a ninguém.
Nem mesmo podemos nos escrever. Não me queixo. É um preço que se paga e está bem e acontece a muitos outros.
Você falava com os olhos fixos na porta do bar, estava tenso, não movia nem um único músculo:
Quem sabe se vou vê-la de novo.
E, em seguida, olhando para a palma da mão aberta:
São os riscos da profissão, como dizia um samurai amigo.
Na janela, ondulava um bando de gaivotas. As gaivotas se precipitaram sobre o porto; um alvoroço branco entre mastros e fumaça e você dizia: “Eu tinha conseguido o que procurava e não me animava a lhe dizer. Nunca lhe disse. Veja só. Devem ser problemas de caráter. Ou talvez tenha sentido que não tinha esse direito. Sei lá. É uma desgraça. Ou nem isso”.
Calculou as palavras:
Já sei que, se não tivesse voltado, teria me sentido um traidor.
As gaivotas levantaram voo mais além das nuvens que estavam, escuras de chuva, no céu.
E já sei, também, porque soube, porque eu não sabia, que não estamos brigando apenas por um montão de coisas muito grandes e muito nobres. Não é que eu queira nada para mim. Não. É muito mais simples. E veja como foi besta o tempo que demorei para saber. Anos. Anos sem saber que também se podia estar nisso pelo sorriso triste de uma mulher e pela cintura livre de pistolas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Prefácio

Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
As traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manha fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.
Mário Faustino

Agendas

http://www.doctorview.com.br/wp-content/uploads/2016/08/tudo-em-ordem-como-tornar-a-agenda-produtiva-com-softwares-de-gerenciamento-de-clinicas-e-consultorios.jpg 
Google Imagens 

Cada pessoa gostaria de criar o seu próprio calendário, segundo o modelo de toda a humanidade. O principal atrativo do calendário reside no fato de ele ir sempre adiante. Tantos dias se passaram, outros tantos virão. Os nomes dos meses retornam, e, com mais frequência, os dos dias. Porém, o número que assinala os anos é sempre um outro. Ele cresce, não pode jamais diminuir: a cada vez, recebe um ano a mais. Crescendo constantemente, jamais se salta um ano e, dessa forma, procede-se como na enumeração: sempre se acrescenta apenas um. A contagem do tempo exprime de maneira precisa aquilo que o ser humano mais deseja. O retorno dos dias, cujos nomes conhece, lhe dá segurança. Ele desperta: que dia é hoje? Quarta-feira; é de novo quarta-feira; já houve muitas quartas-feiras. Mas ele não passou apenas por quartas-feiras: hoje é dia 30 de outubro, e isso é algo maior. Já conheceu também um grande número de dias como esse. Quanto ao número do ano, em seu crescimento linear, espera que ele o leve junto para cifras cada vez mais elevadas. Segurança e desejo de uma longa vida encontram-se na contagem do tempo, e esta foi como que planejada para aquelas.
Todavia, o calendário vazio é o calendário de todos. Cada ser humano quer torná-lo seu, e para isso tem de preenchê-lo. Os dias se dividem em bons e ruins, em livres e atribulados. Se ele os anota, em poucas palavras ou letras, o calendário se torna inconfundivelmente seu. Os acontecimentos mais importantes marcam efemérides. Na juventude, estas ainda são poucas, o ano conserva uma espécie de inocência, e a maioria dos dias é ainda livre e disponível para o futuro. Mas aos poucos os anos vão ficando repletos, mais e mais retornam as datas que foram decisivas e, por fim, o homem já não tem mais um dia disponível em seu calendário: ele tem sua própria história.
Conheço pessoas que se riem dos calendários dos outros, “porque neles há muito pouca coisa”. Mas só quem fez as anotações pode saber realmente o que ele contém. A parcimônia dos signos produz o seu valor. Eles existem através de sua concentração; o vivido que está presente neles é como que encerrado por um encantamento, permanece intacto e pode transformar-se repentinamente em algo gigantesco, em outras circunstâncias num outro ano.
Ora, não existe ninguém que não tenha direito a tais agendas. Cada indivíduo é o centro do universo, e é apenas porque o universo está repleto de tais centros que ele é precioso. Este é o sentido da palavra “homem”: cada indivíduo é um centro ao lado de incontáveis outros que são tão centros do universo quanto ele próprio.
As agendas foram e são o núcleo para os verdadeiros diários. Muitos escritores que desconfiam de diários, porque nestes muito de suas substâncias poderia dissipar-se, mantêm, no entanto, suas agendas. Normalmente, as duas coisas se confundem. Eu as diferencio rigorosamente. Nas agendas, que quase sempre são pequenos calendários, anoto com toda concisão aquilo que me toca ou satisfaz especialmente. Ali se encontram os nomes das poucas pessoas que nos possibilitaram respirar, e sem as quais jamais teríamos suportado todos os outros dias: os encontros com essas pessoas, o primeiro contato, suas viagens, seus regressos, seus adoecimentos graves, sua cura e, o mais terrível, sua morte. Há também os dias em que as ideias nos assaltam, lançam-se sobre nós como espadas, submergem, voltam a emergir, assim, metamorfoseando-se, consomem boa parte de nossa vida. Algumas vezes registramos os dias em que uma ou outra dessas ideias ganhou corpo, fazendo-nos contentes. A esses dias nos quais se expandem os nossos domínios, contrapõem-se aqueles em que nós próprios somos dominados pelos de outros — quando lemos algo que sentimos que nunca mais nos deixará: o Woyzeck, os Possuídos e o Ajax de Sófocles. Há também os momentos em que ouvimos falar de costumes inauditos, de uma religião desconhecida, de uma nova ciência, de uma nova extensão do universo, de mais uma ameaça à humanidade ou, com muito menos frequência, de uma esperança para ela. Além disso, existem os lugares que finalmente pudemos conhecer, depois de o termos desejado ardentemente. Registra-se tudo com apenas três ou quatro palavras. Os nomes são o principal, pois se trata do dia em que novas coisas ou novas pessoas entraram em nossas vidas; ou de alguém que, desaparecido, volta a dar notícia, e é como se fosse algo novo.
Uma coisa se pode dizer com segurança sobre essas agendas: ninguém se interessa por elas. Para os que estão de fora, são incompreensíveis, ou, se não chegam a sê-lo, tornam-se tediosas pela própria monotonia de sua linguagem constante.
Tão logo se tornem algo mais, tão logo haja um confronto com as coisas, as agendas deixam o âmbito dos calendários anotados para passar ao dos diários.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

Coisas simples

A poesia gosta mesmo é de coisas simples. Basta uma imagem banal. A Adélia Prado é especialista em fazer poesias com insignificâncias. Quiabos “chifre de veado”, ora-pro-nobis, tanajuras, galinhas, ovos, escamação de peixes, galinhas de bico aberto, a mãe cantando enquanto cozinhava exatamente arroz, feijão-roxinho e molho de batatinhas: com essas coisas ela faz poesia. Pois poesia é feito caleidoscópio: faz beleza com caquinhos de vidro. Por que é que os poetas são assim tão ligados às insignificâncias? Porque é com insignificâncias que a vida é feita. Pois eu escrevi sobre a insignificância de chupar laranjas... O Zé, marido da Adélia, me mandou e-mail imediato lá de Divinópolis, juntando-se a minha conversa sobre os jeitos de chupar laranja. E ele me disse que por lá os pobres também chupavam de gomo. Só que enfiavam o gomo inteiro na boca, depois cuspiam os caroços e engoliam o bagaço. Isso, por causa da prisão de ventre. Se eu escrevi e o Zé me respondeu é porque a amizade se faz com insignificâncias. Em Minas Gerais até jeito de chupar laranja é poesia…
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Esforço descomunal

Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por entendê-las.”
Espinoza

Sem preocupação moral

Certos críticos acreditaram que em minhas Memórias eu tivesse querido dar uma lição às jovens; desejei sobretudo pagar uma dívida. Este relatório apresenta-se em todo caso isento de qualquer preocupação moral. Atenho-me a testemunhar o que foi minha vida. Nada prejulgo, a não ser que toda verdade pode interessar e servir. A que e a quem servirá o que tento exprimir nestas páginas? Ignoro. Desejaria que fossem abordadas com idêntica inocência.”
Simone de Beauvoir, in A força da idade

Introspecção

Nuvens lentas passavam
Quando eu olhei o céu.
Eu senti na minha alma a dor do céu
Que nunca poderá ser sempre calmo.

Quando eu olhei a árvore perdida
Não vi ninhos nem pássaros.
Eu senti na minha alma a dor da árvore
Esgalhada e sozinha
Sem pássaros cantando nos seus ninhos.

Quando eu olhei minha alma
Vi a treva.
Eu senti no céu e na árvore perdida
A dor da treva que vive na minha alma.
Vinicius de Moraes

Street Art: Muddy Water, por Eduardo Kobra

 

O artista brasileiro Eduardo Kobra entregou, em Chicago, nos Estados Unidos, um imenso mural com a imagem de Muddy Water, o “Pai do Chicago Blues”, cujo centenário foi celebrado em 2015. O mural com 20m de largura por 40m de altura, está em uma área nobre da cidade, próximo ao Chicago Theatre e à Harold Washington Library Center.
Convidado para ir a Chicago pelo Columbia College, uma das universidades mais importantes na área de Arte dos EUA, Kobra viveu um grande desafio. O prédio inicialmente planejado foi vetado porque a parede – muito antiga – poderia não resistir ao peso do balancinho. Ele teve que alterar o projeto para uma outra parede, em outro prédio e com o dobro do tamanho para a pintura do mural.
Fonte: www.eduardokobra.com

 

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

As três irmãs

Eram três: Gilda, Flornela e Evelina. Filhas do viúvo Rosaldo que, desde que a mulher falecera, se isolara tanto e tão longe que as moças se esqueceram até do sotaque de outros pensamentos. O fruto se sabe maduro pela mão de quem o apanha. Pois, as irmãs nem deram conta do seu crescer: virgens, sem amores nem paixões.
O destino que Rosaldo semeara nelas: o serem filhas exclusivas e definitivas. Assim postas e não expostas, as meninas dele seriam sempre e para sempre. Suas três filhas, cada uma feita para um socorro: saudade, frio e fome.
Olhemos as meninas, uma por uma, espreitemos o seu silencioso e adiado ser.
Gilda, a rimeira Gilda, a mais velha, sabia rimar. O pai deu contorno ao futuro: a moça seria poetisa.
Mais ela versejava, menos a vida nela versava. Esse era o cálculo de Rosaldo: quem assim sabe rimar, ordena o mundo como um jardineiro. E os jardineiros impedem a brava natureza de ser bravia, nos protegem dos impuros matos.
Todas as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário. O gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado: só o vestido suspirava. Molhava o dedo sapudo para folhear o grande livro. Aquele dedo não requebrava, como se dela não recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com nexo. Em voz alta, consoava as tônicas: Sol, bemol, anzol.
De quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos. E o coração de Gilda se despenteava. Mas logo ela se compunha e, de novo, caligrafava. Contudo, a rima não gerava poema. Ao contrário, cumpria a função de afastar a poesia, essa que morava onde havia coração. Enquanto bordava versos, a mais velha das três irmãs não notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem saber, Gilda estava cometendo suicídio. Se nunca chegou ao fim, foi por falta de adequada rima.
Flornela: a receitista, a do meio, Flornela, se gastava em culinárias ocupações. No escuro úmido da cozinha, ela copiava as velhas receitas, uma a uma. Redigia palavra por palavra, devagar, como quem põe flores em caixão. Depois, se erguia lenta, limpava as mãos suadas e acertava panelas e fogo. Dobrada sobre o forno como a parteira se anicha ante o mistério do nascer.
Por vezes, seus seios se agitavam, seus olhos taquicardíacos traindo acometimentos de sonhos. E até, de quando em quando, o esboço de vim cantar lhe surgia. Mas ela apagava a voz como quem baixa o fogo, embargando a labaredazinha que, sob o tacho, se insinuava.
Os fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos, brumecido seu coração de moça. Se um dia ela dedicasse seu peito seria a um cheiro, cumprindo uma engordurada receita.
Evelina: a bordadeira Na varanda, ia bordando Evelina, a mais nova. Seus olhos eram assim de nascença ou tinham clareado de tanto bordar? Certa vez, ela se riu e foi tão tardio, que se corrigiu como se alma estrangeira à boca lhe tivesse aflorado.
Lhe doía se lhe dissessem ser bonita. Mas não diziam. Porque além do pai, só por ali havia as irmãs. E, a essas, era interdito falar de beleza. As irmãs faziam ponto final. Ela, em seu ponto, não tinha fim.
Dizem que bordava aves como se, no tecido, ela transferisse o seu calcado voo.
Recurvada, porém, Evelina, nunca olhava o céu. Mas isso não era o pior. Grave era ela nunca ter sido olhada pelo céu.
Às vezes, de intenção, ela se picava. Ficava a ver a gota engravidar no dedo. Depois, quando o vermelho se excedia, escorrediço, ela nem injuriava. Aquele sangue, fora do corpo, era o seu desvairo, o convocar da amorosa mácula.
Em ocasiões, outras, sobre o pano pingavam cristalindas tristezas. Chorava a morte da mãe? Não. Evelina chorava a sua própria morte.
Três por todas e todas por nenhum. Mas eis: uma súbita vez, passou por ali um formoso jovem. E foi como se a terra tivesse batido à porta de suas vidas. Tremeu a agulha de Evelina, queimou-se o guisado de Flornela, desrimou-se o coração de Gilda.
No tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais encontraram espelho. Sucedeu foi um salto na casa, um assalto no peito. As jovens banharam-se, pentearam-se, aromaram-se.
Água, pente, perfume: vinganças contra o tudo que não viveram. Gilda rimou “vida” com “nudez”, Flornela condimentou afrodisiacamente, Evelina transparentou o vestido.
Ardores querem-se aplacados, amores querem-se deitados. E preparava-se o desfecho do adiado destino.
Logo-logo, as irmãs notaram o olhar toldado do pai. Rosaldo não tirava atenção do intruso. Não, ele não levaria as suas meninas! Onde quer que o jovem vagueasse, o velho pai se aduncava, em pouso rapineiro. Até que, certa noite, Rosaldo seguiu o moço até à frondosa figueira. Seu passo firme fez estremecer as donzelas: não havia sombra na dúvida, o pai decidira por cobro à aparição. Cortar o mal e a raiz.
As três irmãs correram, furtivas, entre as penumbras e seguiram a cena a visível distância. E viram e ouviram. Rosaldo se achegando ao visitante e lhe apertando os engasganetes. A voz rouca, afogada no borbulhar do sangue: – Você, não se meta com minhas filhas! O moço, encachoado, rosto a meia haste. E ante o terror das filhas, o braço ríspido de Rosaldo puxou o corpo do jovem. Mas eis que o mundo desaba em visão. E os dois homens se beijaram, terna e eternamente. Estrelas e espantos brilharam nos olhos das três irmãs, nas mãos que se apertaram em secreta congeminação de vingança.
Há muitos sóis. Dias é que só há um. Para Rosaldo e o visitante, esse foi o dia. O derradeiro.
Mia Couto, in O fio das Missangas

As diversas formas de leituras

Os leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber (sempre achamos que estamos sozinhos em cada descoberta e que cada experiência, da morte ao nascimento, é aterrorizantemente única), ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o Tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos.
Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos - a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo - ou pelos deuses, - o casco da tartaruga, o céu à noite.
Outras pertencem ao acaso.
E, contudo, em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.”
Alberto Manguel, in História da Leitura

As covas

O bicho, quando quer fugir dos outros,
faz um buraco na terra.

O homem, para fugir de si,
fez um buraco no céu.
Mário Quintana

Por uma postura cidadã ética

Nem a arte nem a literatura têm que nos dar lições de moral. Nós é que temos que nos salvar, e isso só é possível com uma postura cidadã ética, embora possa soar antigo e anacrônico.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Oliver Twist - Capítulo I

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Do lugar em que Oliver Twist nasceu e das circunstâncias que ocorreram nessa ocasião.

Dentre os vários monumentos públicos que enobrecem uma cidade de Inglaterra, cujo nome tenho a prudência de não dizer, e à qual não quero dar um nome imaginário, um existe comum à maior parte das cidades grandes ou pequenas: é o asilo da mendicidade.
Lá em certo dia, cuja data não é necessário indicar, tanto mais que nenhuma importância tem, nasceu o pequeno mortal que dá nome a este livro.
Muito tempo depois de ter o cirurgião dos pobres da paróquia introduzido o pequeno Oliver neste vale de lágrimas, ainda se duvidava se a pobre criança viveria ou não; se sucumbisse, é mais que provável que estas memórias nunca aparecessem, ou então ocupariam poucas páginas, e deste modo teriam o inapreciável mérito de ser o modelo de biografia mais curioso e exato que nenhum país em nenhuma época jamais produziu.
Ainda que eu não esteja disposto a sustentar que seja extraordinário favor da fortuna nascer a gente num asilo de mendigos, posso afirmar que, nas circunstâncias atuais, era o melhor que podia acontecer a Oliver Twist.
A razão é esta. Houve imensa dificuldade em fazer com que Oliver desempenhasse as funções respiratórias, exercício fatigante, mas necessário à nossa existência. Durante algum tempo ficou o pecurrucho deitado no colchão de lã grosseira, fazendo esforços para respirar, oscilando entre a vida e a morte e inclinando-se mais para esta. Se durante esse tempo Oliver estivesse rodeado de avós solicitados, tias assustadas, amas experientes e médicos profundamente sábios, morreria infalivelmente. Mas como não havia ninguém, exceto uma pobre velha que havia bebido um trago demais e um médico pago por ano para esse trabalho, Oliver e a natureza ficaram sozinhos em face um do outro.
O resultado foi que, após alguns esforços, Oliver respirou, espirrou e deu notícia aos habitantes do asilo da nova carga que ia pesar à paróquia, soltando um grito tão agudo quanto se podia esperar de um varão que só desde três minutos e meio possuía este utilíssimo presente que se chama voz.
No momento em que Oliver dava essa primeira prova da força e da liberdade de seus pulmões, agitou-se a pequena coberta remendada da cama de ferro. Levantou-se com dificuldade o rosto pálido de uma moça, e uma voz fraca articulou estas palavras:
Quero ver meu filho antes de morrer!
O médico estava assentado diante da lareira, aquecendo-se e esfregando as mãos. Ouvindo a voz da moça levantou-se e, aproximando-se da cama, disse com mais doçura do que se podia esperar do seu ofício:
Oh! Não fale de morrer!
Deus proteja a pobre mulher! — disse a enfermeira, metendo na algibeira uma garrafa cujo conteúdo provava nesse momento com evidente satisfação; quando ela tiver vivido tanto como eu e tiver tido treze filhos e perdido onze, visto que só me restam dois aqui no asilo, então há de pensar de outra maneira. — Ora, vamos, pense na felicidade de ser mãe deste pequeno.
É provável que essa perspectiva consoladora da ventura maternal não produzisse grande efeito. A enferma sacudiu tristemente a cabeça e estendeu as mãos para o filho.
O médico passou-lhe a criança aos braços; ela aplicou com ternura, na testa do pequeno, os lábios pálidos e frios; depois passou as mãos pelo próprio rosto, caiu na cama e morreu.
Esfregaram-lhe o peito, as mãos, as fontes; mas o sangue estava gelado para sempre; falavam-lhe de esperança e de amparo; mas ela estava tanto tempo privada disso que achou melhor expirar.
Está acabado, Sra. Haingummy — disse o médico.
Ah! Pobre moça, é verdade — disse a enfermeira apanhando a rolha da garrafa verde, que havia caído na cama, enquanto ela se abaixara para segurar o pequeno.
É inútil mandar-me chamar se a criança berrar — disse o médico com resolução. — É provável que não fique sossegado. Nesse caso dê-lhe um pouco de mingau.
O médico pôs o chapéu na cabeça e, dirigindo-se para a porta, parou junto da cama e disse:
Era bonita! De onde veio ela?
Trouxeram-na ontem à noite — respondeu a velha — por ordem do inspetor; foi achada na rua; fizera um longo trajeto, porque os sapatos estavam em frangalhos; mas de onde vinha e para onde ia? Ninguém sabe dizer.
O médico inclinou-se para o corpo e, levantando a mão esquerda da defunta, disse abanando a cabeça:
Sempre a mesma história; não tem anel de aliança... Não era casada... Boa noite!
O doutor foi jantar, e a enfermeira, depois de levar à boca a garrafa, assentou-se numa cadeira junto à lareira e entrou a vestir o pequeno.
Que exemplo da influência da roupa ofereceu então o pequeno Oliver Twist! Envolvido na coberta que até então fora sua única roupa, podia ser filho de um fidalgo ou mendigo; era impossível ao estranho mais presumido dizer qual era a sua classe na sociedade; mas quando o meteram num vestidinho velho de morim, amarelecido nesse uso, achou logo seu lugar; filho da paróquia, órfão do asilo de mendigos, vítima da fome, destinado aos maus-tratos, ao desprezo de todos, à piedade de ninguém. Oliver berrava com quantas forças tinha. Se ele soubesse que era órfão, abandonado à terna compaixão dos bedéis e dos inspetores, talvez berrasse mais alto.
Charles Dickens, in Oliver Twist (tradução de Machado de Assis)