sábado, 30 de julho de 2016

O homem e a cidade

Agora, que não preciso mais ir à cidade todo dia, descubro um prazer novo em andar por essas velhas ruas do centro onde tanto vaguei outrora.
E pego um estranho dia de verão: há um alto nevoeiro aéreo sob o céu azul, mas o vento espanta alegremente as nuvens esgotadas de chover; o ar é fino, a luz é clara, a manhã é assanhada, com uma alegria de convalescente que pela primeira vez, depois de longa doença, sai a passear entre as árvores, o mar e as montanhas azuis.
Parece que estamos em maio ou setembro, num desses dias cambiantes e leves em que as folhas têm um brilho mais feliz. E sinto prazer em andar pela calçada larga da Rua do Passeio, em espiar as grandes vitrinas coloridas de presentes de Natal. (Não quero comprar nada, não preciso ganhar mais nada, não é verdade que recebi na minha porta a graça juvenil de uma rosa amarela?)
A calçada está cheia de gente, e é doce a gente se deixar ir andando à toa. Na Rua Senador Dantas vejo livros, camisas, aparelhos elétricos, discos, fuzis submarinos, gravatas; e os cartazes dizem que tudo é muito barato e fácil de comprar, os cartazes me fazem ofertas especiais para levar agora e só começar a pagar em fevereiro... Muito obrigado, muito obrigado, mas não preciso de nada. Entretanto, gosto de ver essa fartura de coisas: fico parado numa porta de mercearia contemplando reluzentes goiabadas e frascos de vinho, bebidas e gulodices de toda a espécie que vieram de terras longes se oferecerem a mim.
Mas de repente houve alguma coisa — a visão de um muro, o som de uma vitrola distante, algum rosto no meio da multidão? —, alguma coisa que me devolveu ao meu ser antigo. Sou um rapaz magro nesta mesma rua, sou o verdadeiro estudante de 1929 e talvez cruze numa esquina, sem conhecê-la ainda, aquela que há de ser a minha amada, e tire do bolso a minha carteirinha da Faculdade para ter direito ao abatimento no cinema. Mas logo, por um instante, sou o homem dramático e silencioso de 1938, e caminho carregado de angústia por essa calçada que, entretanto, é a mesma de hoje — há o vento palpitando nos vestidos coloridos de mulheres finas que sorriem com dentes muito brancos entre os lábios úmidos. E vou andando, tomo um café, sinto uma grande ternura pela cidade grande onde outrora te amei tanto, tanto, oh! para sempre perdida Lenora.
Lenora... E me dá uma humildade entre o povo, completo o dinheiro da entrada de um menino que quer ir ao cinema, espero um bonde, ajudo uma senhora gorda a subir com seu embrulho, ela agradece e sorri, é cinquentona e pobre, mas seu sorriso é bom, ela e eu somos cidadãos da mesma cidade e antes de saltar ela me desejará boas-entradas. Vem o condutor, tem cara de alemão e é gordo, mas ágil e paciente, todos pagam sua passagem na boa ordem civil e cordial. Um homem conduz uma gaiola dentro do bonde, todos querem ver o passarinho — é um pintassilgo, diz ele.
Quieto, vou repetindo sem voz, para mim mesmo, teu nome, Lenora — perdida, para sempre perdida, mas tão viva, tão linda, batendo os saltos na calçada, andando de cabelos ao vento dentro da minha cidade e de minha saudade, Lenora.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

A engolidora de almas

Em um poema de 1915, a poeta russa Marina Tsvetáieva fala de dois sóis que a atormentam. Eles se espelham, “um – no teu céu (o de deus), outro – no meu peito”. A duplicação do sol define um abismo. Ela se pergunta: “Como esses dois sóis – algum dia terei cura?”. A presença do fogo atravessa toda a poesia de Marina. Não só seus versos: mobiliza sua existência, como constatamos em suas confissões. Reunidas por Tzvetan Todorov em Vivendo sob o fogo (Martins Editora, tradução de Aurora Bernardini), elas conduzem o leitor através do clarão do ser.
Os poetas gelados agarram-se, por vezes, às ideias do francês Paul Valéry. Ideias como esta, colhida em Monsieu Teste: “Considerar suas emoções como tolices, debilidades, inutilidades, imbecilidades, imperfeições – como o enjoo”. Há aí uma confusão entre o sentimentalismo e a afetação e o grande redemoinho das emoções primitivas com que Marina Tsvetáieva (1892-1941) trabalha. Os poetas gelados leem as ideias de Valéry como se fossem sagradas. Mas, no mesmo Monsieur Teste, ele nos alerta: “As ideias são, para mim, meios de transformação”. Afirma ele que uma ideia é “um meio de transformar uma questão”. Elas não são, portanto, mandamentos ou pedras. Como nos diz Marina, a ideia é um fogo que só existe enquanto arde.
Sigo a obsessão de Marina pelas chamas e chego à imagem dos engolidores de fogo, que, nos circos e nas feiras, tragam suas labaredas. Também Marina fez da poesia um instrumento de colheita das ardências do mundo. “Serei fogo”, ela reafirma em 1921. E não se cansa de exclamar: “É tão bom viver no meio do fogo!”. Não era uma fuga do real, mas uma maneira de devorá-lo. “Eu nunca escrevo, sempre transcrevo”, ela definia sua literatura. Em outra carta, revela a expressão que gostaria de ler em seu túmulo: “Estenógrafa do Ser”. E mais nada.
Rigorosa taquígrafa da alma, Marina não considerava suas emoções tolices, debilidades, imbecilidades, mas, antes disso, saltos sobre o real. Seus versos são conquistas não de superfícies geladas ou de palavras vazias, mas dos ardentes segredos que constituem a alma das coisas. Ela duvidava, até, que seus poemas merecessem o nome de literatura. “A literatura? Não!”, escreveu, em 1920. “Não a literatura – a autodevoração pelo fogo”.
Em seus breves, mas intensos, 49 anos de vida, Marina atravessou duas guerras mundiais e uma revolução, a de Outubro. Seu marido se engajou nas fileiras dos brancos para combater os bolcheviques. Uma de suas filhas morreu de fome e de inanição. A família se exilou. Quando, enfim, retornaram a Moscou, foram mais uma vez perseguidos. Atordoada pela invasão alemã de 1941, Marina chega a seu limite e comete suicídio. A mulher é mais fraca que sua poesia.
Em carta ao poeta Boris Pasternak, Marina faz uma distinção entre os poetas e aqueles que escrevem versos. Conheceu muitas pessoas que escreviam versos. “Escreviam admiravelmente seus poemas ou (mais raramente) escreviam poemas admiráveis. Isso é tudo.” Não admitia, porém, chamá-los de poetas. “A marca da labuta, que é a do poeta, não a vi em ninguém: ela chameja a uma versta de distância!”
Marina não tinha pudor algum em afirmar a superioridade das confissões sobre os poemas. “O principal: meus cadernos de notas – minha paixão, porque são – o mais vivo.” Nos diários, sentia-se mais próxima das “almas dançantes”, como a da poeta alemã Bettina Brentano (1785-1859), em quem sempre se espelhou. Até os 13 anos de idade, Bettina não sabia o que era um espelho. Um dia, sentada ao lado das irmãs, viu, refletida em um painel, a imagem de um grupo de moças. Reconheceu as irmãs, mas não uma estranha menina de tranças que a observava “com olhos de fogo”. Não foi fácil entender que aquela menina era ela mesma. A imagem de si como golpe. A visão do mundo como um incêndio que avança. Bettina se torna o espelho de Marina.
Mas nem essas imagens consoladoras a salvam do medo. “Tenho medo – de tudo. Dos olhos, do escuro, dos passos e, mais que tudo – de mim mesma.” O medo é, em Marina, a consciência do fogo. De uma realidade interior que queima, em descompasso com a indiferença e dureza da realidade. “No fogo da vida me criaste,/ na estepe gelada me atiraste!”, ela escreve em 1920. Não podia adaptar-se a um mundo em que as guerras eram jogos, em que a morte era burocrática, em que as palavras eram blocos de gelo. Sua escrita incandescente absorve os restos de calor que resistem nas fendas do planeta. Estenógrafa do Ser, a ela cabia anotar e transcrever, antes que ele se perdesse, o brilho do humano.
Espelhando-se ainda em Bettina Brentano, Marina se definiu como “uma dançarina da alma”. Escreveu: “De que preciso neste mundo? De minha emoção, ponto mais alto de minha alma”. Falava não da emoção barata e chorosa que Paul Valéry repudiou, que é só lamento e sentimentalismo. Referia-se a algo mais denso, que se desdobra em almas – não o princípio espiritual, mas o feixe de afetos, paixões e ideias que agitam o homem. Escrever poesia, para Marina, era transcrever essa convulsão das almas. Era devorá-la, para depois cuspi-la em palavras.
Sentia-se uma “desclassificada”, isto é, alguém – por força da sensibilidade – fora “de qualquer casta, de qualquer profissão, de qualquer nível”. Como aceitar, então, o rótulo elegante de poeta? Não podia suportar o rito de “incensório, genuflexões, monumentos em vida”. Colocava-se, ainda, muito além dos miseráveis, que pelo menos têm uma perda a lamentar. “Atrás do imperador, há imperadores; atrás dos miseráveis – miseráveis; atrás de mim – o vazio.”
Eu lia, assombrado, as confissões de Marina quando, em um intervalo, encontrei-me com Antônio Torres. Sem perceber o que me dava, ele lembrou a célebre fórmula de James Joyce, expressa por Stephen Dedalus no Retrato do artista enquanto jovem. Lá estão os três pilares joyceanos para a literatura: “silêncio, exílio, astúcia”. Voltei a Marina Tsvetáieva. Nada mais silencioso que o crepitar de um fogo. Nenhuma sensação mais dolorosa de degredo do que a insuficiência das palavras. Só a astúcia dos poetas para fazer algo disso.
José Castello, in Sábados inquietos

Segundo consta

O mundo acabando,
podem ficar tranquilos.
Acaba voltando
tudo aquilo.
Reconstruam tudo
segundo a planta dos meus versos.
Vento, eu disse como.
Nuvem, eu disse quando.
Sol, casa, rua,
reinos, ruínas, anos,
disse como éramos.
Amor, eu disse como.
E como era mesmo?
peguei as cinco estrelas
do céu uma a uma
elas estrelas não vieram
mas na minha mão
todas elas
ainda me perfuma.
Paulo Leminski

A morte vai nos surpreender antes do paraíso

Algo, alguém, algum espírito nos perseguia, a todos nós, através do deserto da vida, e estava determinado a nos apanhar antes que alcançássemos o paraíso. Naturalmente, agora que reflito sobre isso, trata-se apenas da morte: a morte vai nos surpreender antes do paraíso. A única coisa pela qual ansiamos em nossos dias de vida, e que nos faz gemer e suspirar e nos submetermos a todos os tipos de náuseas singelas, é a lembrança de uma alegria perdida que provavelmente foi experimentada no útero e que somente poderá ser reproduzida (apesar de odiarmos admitir isso) na morte.”
Jack Kerouac, in On the road

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Vida subjetiva

A vida subjetiva, na própria medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de um saber; ela escapa, em princípio, ao conhecimento.”
Soren Kierkegaard

Um instante fugaz

Eu ia andando por uma rua movimentada quando, em direção oposta à minha, para o meu lado, um hippie apareceu. Ele me olhou, antes distraído e, depois, demonstrando grande surpresa, fixo. E riu para mim. Então ri para ele. Ele fez menção de parar. Mas eu tinha hora marcada, além de ter, em largo sentido, caminho próprio, e não parei. Mas como nos havíamos visto já de longe, e cada vez mais perto, nós nos vimos bem. Foi um encontro muito profundo.
De que rimos nós? Do nosso encontro que era de alegria. Da tolice do mundo também.
Imagino que, se eu parasse, eu diria: oi! E ele responderia: oi! Ou melhor, como era um hippie estrangeiro, ele falaria em inglês: hi! (pronuncia-se: rai) E me perguntaria: Who are you? (Quem é você?) Eu diria: I am (eu sou). Ele me perguntaria: como é que chamam você, que número você tem? Eu responderia: meu número é Clarice, e o seu? Ele diria o dele. Aposto que seria John. Tinha cara de.
John, eu nunca esquecerei você. Nem com o passar dos anos. Porque nós fomos eternos naquele instante. Foi um instante apenas mas nele fizemos um comentário do mundo e de nós próprios. Meu irmão.
Esse, tenho certeza, não fumava maconha: tinha em si a capacidade de êxtase, como eu. Há os que já têm o LSD em si, sem precisar tomá-lo. John, você vem de uma família, como eu. E precisou, como eu, fazer do mundo também sua família. Mas por que tanta surpresa ao me ver, John? Você devia saber que eu existo. Desculpe eu não ter parado, como você queria. Eu não podia, acredite.
Tão diferente do que me aconteceu um dia desses. Um dia desses eu estava num táxi que parou diante do sinal vermelho. Um outro táxi, paralelo ao meu, tinha como motorista um homem de seus 30 anos, com passageiro dentro. Eu olhava inteiramente distraída para o ar, sem perceber que o que estava olhando era uma pessoa. Essa pessoa olhou para mim, fixou-me mais e inesperadamente piscou o olho para mim. Desviei o olhar. Tão cinema mudo, isto. E tão barato (não o cinema mudo em si). Não é que esse motorista tenha me ofendido. Mas ele era tão inútil. E queria me inutilizar também. Eu nunca deixo.
Enquanto que John me deixou plena e útil.
John, onde é que você dorme? Eu ainda não sou tão livre: preciso de uma casa e de uma cama para dormir. E não sei dormir na casa dos outros. Tem que ser a minha. Ou então um hotel. Você teria dinheiro para uma viagem? Acho que sim, você estava com um traje hippie bonito e essas coisas custam caro.
John, num momento de muito desespero eu pedi a Deus que me arranjasse uma ajuda. E a ajuda veio: um homem que não conheço me telefonou. Aí eu chorei ao telefone. Ele disse: não chore que chorar enfraquece. Eu disse: mas às vezes é como a chuva de que se precisa quando tem estiagem demais e tudo fica muito seco. Eu lhe pedi para me telefonar de novo às seis da tarde. Ele disse que não podia. Mas às seis em ponto me telefonou. Eu já não estava desesperada, até rimos. No dia seguinte ele me telefonou de novo. Conversamos. Por conta própria ele disse que ia fazer um juramento: o de jamais contar a ninguém que me conhecia. Eu disse: se você precisar contar, conte, não se prenda a um juramento. Ele disse: não, eu juro porque é por demais sagrado.
John, eu li que a angústia é a vertigem da liberdade. No entanto eu estou tendo essa vertigem, mas sem angústia. Como é que se explica? Eu estou séria, mas por dentro estou sorrindo. Não sei de quê. É que viver me faz sorrir. É um sorriso misterioso. Vem de florestas interiores, de lagos e açudes e montanhas e céu. Sou toda misteriosa, John. Você é mais claro que eu. Você é um riso, um olhar de surpresa. Até sempre.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

Shakespeare

A Coletânea era um corredor ocupado por livros, revistas e jornais, em um ponto nobre da Rua da Praia, diante da Praça da Alfândega e ao lado do Largo dos Medeiros. Lugar de encontro de intelectuais e leitores que marcou época na Porto Alegre dos anos 60, tinha em Quintana um visitador diário.
Arnaldo Campos, o dono, um dos livreiros mais respeitados da cidade, colecionador de edições históricas, estava por perto no dia em que uma jovem senhora ficou radiante ao reconhecer Quintana como o ilustre folheador ao seu lado. Observou-o algum tempo, aproximou-se. Aparentemente sem saber de que forma fazer a melhor abordagem, identificou-se como professora e foi fundo:
Poeta, o que devo ler para entender Shakespeare?
Com o dedo indicador preso no meio do livro que estava examinando, Quintana orientou, imperturbável e honestamente:
Shakespeare, minha filha!
Juarez Fonseca, in Ora bolas! - O humor de Mário Quintana

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Os politécnicos

Fui a São Paulo, a convite do Grêmio dos Politécnicos, bater um papo com os rapazes em sua Faculdade. Recusei-me a fazer uma palestra, pois sou homem de língua emperrada; mas os motivos para a minha ida, como me foram apresentados pelos futuros engenheiros paulistas, pareceram-me bastante válidos, além de modestos. Têm eles que a carreira escolhida oferece o perigo de canalizar o pensamento para problemas puramente tecnológicos, em prejuízo de uma humanização mais vasta, tal como a que pode ser adquirida em contato com o homem em geral e as artes em particular.
Há muito não me sentava diante de tantos moços, com um microfone na mão, para lhes responder sobre o que desse e viesse. “Quem sou eu”, perguntei-me, não sem uma certa amargura, “quem sou eu, que não sei sequer consertar uma tomada elétrica, para arrogar-me o direito de vir responder às perguntas destes jovens que amanhã estarão construindo obras concretas e positivas para auxiliar o desenvolvimento deste louco país?” Mas eles, aparentemente, pensavam o contrário, pois puseram-se a bombardear-me de perguntas que, falar verdade, não dependiam em nada de cálculos, senão de experiência, bom-senso e um grão de poesia. Providenciaram mesmo uma bonita cantorazinha de nome Mariana, que estreava na boate Cave (de onde partiram para a fama Almir Ribeiro e Morgana) para cantar coisas minhas e de Antônio Carlos Jobim: o que era feito depois de eu responder se acreditava ou não em Deus, como explicava a existência de mulheres feias e o que pensava de João Gilberto.
A homenagem foi simpática, mas no meio daquilo tudo comecei a ser tomado por uma sensação estranha. Aqueles rapazes todos que estavam ali, cada um com a sua personalidade própria - João gostando de romance Lolita, Pedro detestando; Luís preferindo mulatas, Carlos louras; Francisco acreditando em Karl Marx, Júlio em Jânio Quadros; Kimura preferindo filme de mocinho, Giovanni gostando mais de cinema francês - já não os tinha visto eu em outras circunstâncias, em outros tempos? Aquele painel de rostos desabrochando para a vida, aqueles olhos sequiosos ao mesmo tempo de amor e de conhecimento, não eram eles o primeiro plano de uma imagem que se ia perder no vórtice de uma perspectiva interminável, como num jogo de espelhos? Atrás de cada uma daquelas faces não havia o fotograma menor de outra face, como ela ávida de saber o porquê das coisas, e atrás dessa outra, e mais outra, e outra ainda? Vi-os, de repente, todos fardados me olhando, atentos às instruções de guerra que eu lhes dava em voz monótona: “Os três grupos decolarão em intervalos de cinco minutos, e deixarão cair sua carga de bombas nos objetivos A, B e C, tal como se vê no mapa. É favor acertarem os relógios...” Mariana cantava, um pouco tímida diante de tantos rapazes, a minha “Serenata do adeus”:

Ai, vontade de ficar mas tendo de ir embora...

Qual daqueles moços seria um dia ministro? Qual seria assassino? Quem, dentre eles, trairia primeiro o anjo de sua própria mocidade? Qual viraria grã-fino? Qual ficaria louco?
Tive vontade de gritar-lhes: “Não acreditem em mim! Eu também não sei nada! Só sei que diante de mim existe aberta uma grande porta escura, e além dela é o infinito - um infinito que não acaba nunca. Só sei que a vida é muito curta demais para viver e muito longa demais para morrer!”
Mas ao olhar mais uma vez seus rostos pensativos diante da canção que lhes falava das dores de amar, meu coração subitamente se acendeu numa grande chama de amor por eles, como se eles fossem todos filhos meus. E eu me armei de todas as armas da minha esperança no destino do homem para defender minha progênie, e bebi do copo que eles me haviam oferecido, e porque estávamos todos um pouco emocionados, rimos juntos quando a canção terminou. E eu fiquei certo de que nenhum deles seria nunca um louco, um traidor ou um assassino porque eu os amava tanto, e o meu amor haveria de protegê-los contra os males de viver.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

Gaiola de moscas

Zuzé Bisgate. Logo na entrada do mercado, bem por baixo da grande pahama se erguia sua banca. Quando a manhã já estava em cima, Zuzé Bisgate assentava os negócios. O que ele fazia? Alugava bisga, vendia o cuspo dele. A saliva de Zuzé tinha propriedades de lustrar sapatos.
É melhor que graxa, enquanto graxa nem há.
Além disso, o preço dele era mais favorável. Cada cuspidela saía a trezentos, incluindo o lustro. Maneira como ele procedia era seguinte: o cliente tirava o sapato e colocava o pé empeugado do cliente sobre uma fogueirita. O pé ficava ali apanhando uns fumos para purificar dos insectos infecciosos. Zuzé Bisgate pegava no sapato e cuspia umas tantas vezes sobre ele. Cada cuspidela contava na conta. Passava o lustro com um pano amarrado no próprio cotovelo. Razão do pano, motivo de esfregar com o cotovelo:
Dessa maneira a minha saliva me volta no corpo. É que este não é um cuspe qualquer, um produto industrioso desses. Não, isto é uma saliva bastantíssima especial, foi-me emprestada por Deus, digamos foi um pequeno projeto de apoio ao sector informal. É que Deus conhece-me bem, pá. Eu sou um gajo com bons contatos lá em cima.
Os clientes não se faziam enrugados. Às vezes até abichavam frente à banca dele. Fosse da saliva, fosse da conversa que ele lustrava. Verdade era que o negócio de Zuzé corria em bom caudal.
Quem não se dava bem com os cuspes era sua mulher Armantinha. Não se pode beijar aquela boca engraxadora dele, se lamentava. Prefiro beijar uma bota velha, concluía. Ou lamber uma caixa de graxa.
Armantinha sonhava para saltar frustração. Um dia, qualquer dia, haveria de beijar e ser beijada. Sonhava e resonhava. Lhe apetecia um beijo, água fazendo crescer outra água na boca. Lhe apetecia como um cacto sonha a nuvem. Como a ostra ela morria em segredo, como a pérola seu sonho se fabricava nos recônditos.
Avisaram o marido. Armantinha estava sonhando longe de mais. O homem respondeu em variações. Beijo é coisa de branco, quem se importa. E depois, minha boca cheira a coisa falecida. Quem se aflije com matéria morta? Só os da cidade. Nós, daqui, sabemos bem: é do podre que a terra se alimenta.
Acontece que Zuzé Bisgate se foi metendo nos copos, garrafas, garrafões. Tudo servia de líquido, Zuzé destilava até pedra. De toda a substância se pode espremer um alcoolzinho, dizia. Mais e mais ele desleixava a caixa de cuspos e lustros. Até que os clientes reclamaram: a saliva de Zuzé está ganhando ácidos, aquilo é bom é para de entupir as pias. E temendo pelos sapatos os demais se evitavam de frequentar a tenda banhada pela grande pahama.
Até Chico Médio, homem sempre calado, reclamou que a saliva dele lhe fez murchar os atacadores, pareciam agora cobras sem esqueleto vertebral. Pouco a pouco Zuzé perdeu toda a clientela e o negócio das salivas fechou.
Se decidiu então a mudar de ramo. Recordou, de seu pai, a máxima: a alma é o segredo de um negócio. Alma, era isso que se necessitava. E assim ele imaginou um outro negócio. E agora quem o vê, nos actuais dias, constata a banca com sua nova aparência. E Zuzé mais seu novo posto. Seu labor é um quase nada, coisa para inglês não ver.
Ali, na fachada, arregaça as calças, com cuidado para não as desvincar. Sempre com desvelo de burocrata, desembrulha um volume retirado das entranhas de sua banca: uma gaiola forrada a rede fina. Dentro voam moscas. Pois é o que ele vende: moscardos. Matéria viva e mais que viva — vital para o mortal cidadão. Pois, diz o Bisgate, cada um deve tratar as moscas que, depois de mortos, nos visitarão o túmulo.
São os nossos últimos acompanhantes...
A pessoa passa por ali, se debruça sobre o vendedor e escolhem as voadoras bastas, as mais coloridas que engalanarão o funeral:
Esta há-de ficar mesmo bem na sua cerimônia.
Ele convida o hesitante cliente a ir à banca ao lado, a banca da Dona Cantarinha. Para lavar as moscas, explica.
Lavar as moscas?
Sim, é lavagem a seco.
Armantinha cada vez mais se distancia daquela loucura. O marido se apronta é para grandes descansaços.
Ai nosso Senhor Jesus Cristão! Você, homem, você vende alguma coisa?
Faça as contas, mulher.
Que contas? Que contas se pode fazer sem números?
Ainda hoje vendi uma manada de moscas a esse tipo novo que chegou à aldeia.
Qual que chegou?
Esse gajo que montou banca lá nas traseiras do bazar. Uma banca que até mete as graças, chama-se Pinta-Boca.
O homem se chama Pinta-Boca?
Qual o homem! A banca se chama.
Armantinha se inflama logo de sonho. Já a boca dela se liquidesfaz. Sua boca pedia pintura como a cabeça lhe requeria sonho. E, logo nessa manhã, ela ronda a nova tenda, se apresenta ao novo vendedor. Ele se declina:
Sou Julbernardo, venho de lá, da cidade.
Banca Pinta-Boca. O nome faz jus. Na prateleira ele tem uma meia dúzia de bâtons com outras tantas cores. As mulheres se chegam e estendem os lábios. Julbernardo pede que escolham a coloração. Moda as brancas, vermelhudas das beiças. Uma pintadela 250 meticais.
Armantinha, já devidamente apresentada, ganha coragem e encomenda uma coloradela.
Aqui, se paga em adiantado.
Ela retirou as notas encarquilhadas do soutien. Vasculhou as largas mamas à procura dos papéis. Tinha seios tão grandes que nem conseguia cruzar os braços.
Está aqui seu dinheiro.
Não chega nem basta. Essa tabuleta do preço era na semana passada. Agora é 250 um lábio.
Um lábio?
Se for o de cima, o de baixo custa mais caro. Por causa que é maior.
Estou fracassada com você, Julbernardo. Vá, pinte o de cima, amanhã venho pintar o de baixo.
Está certo, eu vou pintar.
Julbernardo pegou no baton com habilidade de artista. Aquilo era obra para ser vista. Metade do povoado vinha assistir às pinturas. A gente seguia caladinha, aquilo era cena à prova de fala. Julbernardo metia um avental, ordenava à cliente que sentasse no tronco cortado do canhoeiro.
Armantinha obedecia ao ritual. Sentada, ergueu o rosto. Fechou os olhos, compenentrada em si. O pintador limpou as mãos no avental. Se debruçou sobre a tela viva e fez rodar o baton no ar antes de riscar a carne da cliente. Sentada no improvisado banco Armantinha deu largas ao sonho. O baton acariciava o lábio e tornava seu corpo misteriosamente leve, como se naquele toque se anulasse todo o peso dela.
Sonhava Armantinha e o sonho dela se apoderava. Nesse devaneio o baton se convertia em corpo e já Julbernardo se inclinava todo sobre ela e os lábios dele pousavam sobre a boca dela, trocando úmidas ternuras. Mundo e sonho se misturavam, os gritos da multidão ecoavam na gruta que era sua boca e, de repente, a voz raivosa de Zuzé também lhe esvoaça na cabeça.
E eis que Armantinha abre os olhos e ali, bem à sua frente, o seu marido se engalfinhava com Julbernardo. E murro e grito, com a gentalha rodopiando em volta. De repente, já um deles se apresenta de desbotar vermelhos. Os dois se misturam e uma faca rebrilha na mão de Zuzé. Depois, num sacão, se separam os dois corpos. Estão ambos ensanguentados. Julbernardo com o avental ensopado de vermelho dá dois passos e cai redondo. Num instante, uma multidão de moscas se avizinha. Zuzé, vitorioso, aponta a mulher:
Vê? Vê as moscas que vendi a esse cabrão?
Mas as moscas, em lugar de escolherem o tombado Julbernardo, circundam a cabeça de Zuzé. Alarmado, ele enxota-as. Em vão: já a moscardaria lhe pousa, vira e revira. Então, Zuzé Bisgate desce dos seus próprios joelhos e se derrama em pleno chão. O sangue se vê brotar de seu peito. Julbernardo desperta e se ergue, ante o espanto geral. Com mão corrige a mancha vermelha com que o baton esmagado enchera o seu branco avental.
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

Errar por conta própria

Cada um tem o direito de errar por conta própria, sem que ninguém lhe transmita os próprios erros.”
José Paulo Paes

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Vida nova

A nossa casa era na Rua da Palha, junto à de D. Clara, pessoa grave que tinha diversos filhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, A irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiarizou-se conosco, tomou conta dos arranjos da instalação. Espanou, esfregou, arrumou as cadeiras pretas, os armários, os baús cobertos de sola, enfeitados de brochas. Findos os trabalhos, ausentou-se. Até o nome dela se perdeu. Meu pai, transformado em comerciante, estabeleceu-se no Largo da Feira. Aí, num socavão triste, de que mais tarde me lembrei ao ver subterrâneos em folhetins, passou dias abrindo caixas e fardos, empilhando mercadorias, examinando faturas, calculando, a lápis, em pedaços de papel de embrulho. Esperei debalde vê-lo concluir esse exercício, voltar ao banco do alpendre e à vazante. Aproximava-me dele muitas vezes, com recados. E no caminho largo a princípio me retardava, contemplando as roseiras do jardim, as paredes brilhantes de azulejos, o sobradinho onde havia homens fardados.
Isso durou pouco. Minha mãe descobriu nódoas no chão, raspou o tijolo, apavorou-se ao ter notícia do que elas eram sangue de tuberculoso. Lavou muito as mãos, chorou, desesperou-se, convenceu-se de que as hemoptises velhas iam penetrá-la e matá-la. Fechou o quarto contaminado e resolveu mudar-se.
Algum tempo depois estávamos localizados, negócio e família, numa esquina, perto do Cavalo-Morto. Atrás da loja, de quatro portas, duas em cada frente, havia o armazém de ferragens e o depósito de milho, onde eu e minhas irmãs brincávamos. A um lado, a sala de visitas, as cavernas do casal e das meninas, a despensa e a cozinha. Um corredor separava a habitação do estabelecimento, desembocava na sala de jantar, larga e baixa. Aí bancos ladeavam a mesa grosseira, e uma cama de lona escondia-se num canto, a cama que me ofereceram quando larguei a rede, por causa das almas do outro mundo.
As almas vieram uma noite, quatro ou cinco, estirando-se e acocorando-se à entrada do corredor. Assustei-me, gritei, acordei toda a gente, descrevi as figuras luminosas que se moviam na escuridão, subindo, baixando. Quando subiam, as cabeças delas alcançavam o teto. Fui deitar-me noutro lugar e no dia seguinte obtive uma notoriedade que me envergonhou. Repetiram o fato, acreditaram nele, responsabilizaram-me por minudências de que não me recordava. Podia um ser tão miúdo inventar aquilo? Atordoava-me, queria evitar os exageros, dizer que a minha história não merecia importância, e receava desprestigiar-me. Eu tinha julgado perceber umas luzes — e as luzes tomavam corpo de repente, entravam nas conversas. Senti remorso, desejei reduzir as minhas almas. Assombrara-me à toa. Vinham-me, porém, dúvidas.
Afirmaram, desenvolveram o caso estranho — e por fim admiti a visão. Talvez não me houvesse enganado completamente. Não enxergara as claridades que se alongavam e encurtavam, mas devia ter visto qualquer coisa.
Esqueci pouco a pouco a aventura e apaguei-me, reassumi as proporções ordinárias. Ficou-me, entretanto, um resto de pavor, que se confundiu com os receios domésticos. Arrepios súbitos, cabelos eriçados, tonturas, se alguém me falava. Nas trevas das noites compridas consegui afugentar perigos enrolando-me, deixando apenas o rosto descoberto. Uma ponta de lençol envolvia a testa, rodeava a cara. Sentia-me assim protegido: nenhum fantasma viria ameaçar-me a boca, o nariz e os olhos expostos. Se o pano se soltava, enchia-me de terrores.
Era preciso que as orelhas e o couro cabeludo se escondessem, provavelmente por serem as partes mais sujeitas a acidentes. Talvez os duendes viessem magoá-las.
Vivíamos numa prisão, mal adivinhando o que havia na rua, enevoada longos meses. Conhecíamos o beco: da janela do armazém, trepando em rolos de arame, víamos, em dias de sol, matutos de saco no ombro, cavalos amarrados num poste grosso, transeuntes que se chegavam cautelosos ao muro, espiavam os arredores e se afastavam depois de molhar o tijolo vermelho.
A alguns passos, na outra esquina, uma casa semelhante à nossa. Três meninos, uma senhora magra, nervosa, um homem de pernas finas metidas em calças estreitas demais, pernas que lhe tinham rendido a alcunha. Desajeitado em cima delas, Teotoninho Sabiá piscava os olhos amarelos de ave, sacudia as grandes asas depenadas e bocejava um cacarejo inexpressivo. Observávamos pedaços de vida, namorávamos o oitão da outra gaiola, aberta, e tínhamos inveja imensa dos Sabiás pequenos, desejávamos correr e voar com eles.
Nos dias de inverno o beco se transformava num rego de água suja, onde se desfaziam complicados edifícios e navegavam barquinhos de papel, sob o comando de um garoto enlameado. A garoa crescia. A chuva oblíqua enregelava-nos. Uma cortina oscilante ocultava os móveis, as prateleiras da loja.
Os tecidos criariam mofo, os metais se oxidariam. Fechavam-se as portas e as janelas. As figuras moviam-se na sombra, indeterminadas.
Ia recolher-me à cama da sala de jantar, envolvia-me nas cobertas úmidas.
Enxergava a custo as poças do quintal, as manchas que se alargavam nas paredes, a telha escura, uma quina da prensa de farinha, velha e carunchosa, caída no alpendre. Havia um cheiro acre de lenha verde queimada; a fumaça da cozinha unia-se à poeira de água, engrossava a fuligem que tingia as teias de aranha. Enorme bica de madeira, um rio suspenso, transbordava nas trovoadas, com surdo rumor. Depois amansava, ficava dias e dias atirando pingos no chão, derramando além do copiar um esguicho leve e silencioso, que o vento agitava.
Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da Penha, vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível que morde como cachorro e, se pega um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que tinha era ocupar-me com o sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca os sinos me haviam impressionado.
Sapo cururu
Da beira do rio.
Não me bote na água, Maninha:
Cururu tem frio.
Cantiga para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio, de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio e gostava de ouvir os sapos.
Graciliano Ramos, in Infância

Vasta e profunda

A vida é tão imensamente vasta e profunda quanto este abismo estrelado acima de nós. Só se pode atirar um olhar a ele através desta minúscula abertura que é a nossa existência pessoal. E, por esta abertura, sentimos mais do que vemos. Por isso temos de nos certificar de que esta abertura está sempre limpa.”
Franz Kafka

Armadilha da memória

Um dia eu estava andando de carro com meu amigo Carlos Rodrigues Brandão, em Pocinhos, por uma estrada de terra. Aí ele começou uma conversa mole sobre a memória. Disse-me: “Rubem, estou agora seguindo a seguinte filosofia: eu não possuo aquilo de que me esqueci. O que é que você acha disso?”. Pensei: Eu me esqueci da coisa que possuo. Se me esqueci dela é como se ela não existisse para mim. Não vou usá-la nem sentirei a sua falta. E concluí: “Está certo: eu não possuo aquilo de que me esqueci”. Aí a fala mole do Brandão ficou rápida e concluiu: “Você se esqueceu de que eu lhe devo R$200,00. Portanto, você não os possui mais. Vou dá-los para a Soninha comprar tijolos...”. Soninha era uma amiga comum que estava lutando para construir sua casa. E assim ele o fez. E eu não pude reclamar porque havia acabado de concordar que não possuo aquilo de que me esqueci... Eu havia me esquecido de que o Brandão me devia R$200,00.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Agora posso praguejar

http://static.fnac-static.com/multimedia/PT/images_produits/PT/ZoomPE/1/4/6/9789723828641.jpg 

Tom estava silencioso também, com o jeito de quem está arrependido de ter revelado alguma coisa íntima. Apressou os passos e o pregador imitou-o. Já podiam vislumbrar o caminho. Uma cobra deslizou lentamente, vinda do algodoal, à beira da estrada. Tom parou perto dela.
Não é venenosa, vamo deixar ela em paz — falou.
Passaram ao lado da cobra e continuaram o caminho. A Leste, um fraco colorido surgiu e, quase repentinamente, a solitária luz do amanhecer espalhou-se pelo campo. Os algodoeiros reapareceram na sua plena roupagem verde e a terra em seu tom castanho cinzento. As faces dos homens perderam a cor pardacenta. O rosto de Joad parecia escurecer à medida que o dia clareava.
Essa é uma boa hora — disse Joad. — Quando eu era criança, gostava de levantar cedo e andar aqui pelo campos. Que é aquilo ali adiante?
Um comitê de cachorros rodeava uma cadela na estrada, prestando-lhe homenagens. Cinco machos, mestiços de pastor e galgo, cujas raças se misturaram e se confundiram graças à liberdade de que desfrutavam. Cada um deles farejava com delicadeza e depois, de pernas rígidas, andava em direção a um pé de algodão e molhava-o, levantando cerimoniosamente a perna traseira. Depois voltava, para cheirá-lo. Joad e o pregador pararam para observar a cena, e de repente Joad pôs-se a rir.
Puxa, que farra! — disse. Os cães, agora, reuniam-se, os dentes arreganhados. Rosnavam, rígidos, prontos para o combate. Um dos cães finalmente montou na cadela, e com o fato consumando-se, os outros se limitavam a ficar olhando, fixos, línguas pendentes, gotejando. Os dois homens seguiram o caminho.
Puxa! — exclamava Joad. — Que farra formidável! Sabe, eu acho que aquele cachorro que apanhou a cadela é o nosso Flash. Pensei que já tinha morrido. Vem, Flash! — e riu gostosamente. — Tá certo. Se alguém me chamasse nessa hora, também não ia. Isso me faz lembrar de uma coisa que aconteceu com o Willy Feeley, quando ele era um rapazinho ainda. O Willy era muito tímido. Bem, um dia ele pegou uma novilha para o touro dos Graves. Não tinha ninguém na casa dos Graves, só a Elsie, a filha dele, o senhor sabe? E a Elsie não é nada tímida, não tem nem um pouco de vergonha, aquela criatura. Willy ficou ali como um palerma, vermelho como um pimentão e sem coragem para falar. Aí, a Elsie disse: eu sei por que ocê veio pra cá. O touro tá lá atrás do celeiro. Bem, eles pegaram a novilha e deixaram ela perto do touro e sentaram no moirão da cerca pra ficar olhando. Não demorou, o Willy tava ficando daquele jeito. Elsie olhou pra ele e disse como se não fosse nada de mais: Que foi, Willy? O Willy tava que não conseguia ficar quieto. Meu Deus — disse ele —, até eu tô com vontade de fazer isso. E a Elsie disse: então faz, Willy. A novilha é tua.
O pregador riu brandamente.
Sabe, é uma boa coisa a gente não ser mais um pregador. Quando eu ainda era o reverendo Casy, ninguém contava histórias assim na minha presença, ou quando alguém contava, eu não podia rir, não ficava bem. E também não podia praguejar. Agora praguejo quando quiser; isso me faz um bem danado.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

terça-feira, 26 de julho de 2016

O tempo é um tecido invisível

Que os dois gêmeos participassem da lua-de-mel nobiliária dos pais não é coisa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a explicá-lo, mas acresce que, havendo o título produzido em outros meninos dois sentimentos opostos, um de estima, outro de inveja, Pedro e Paulo concluíram ter recebido com ele um mérito especial. Quando, mais tarde, Paulo adotou a opinião republicana nunca envolveu aquela distinção da família na condenação das instituições. Os estados de alma que daqui nasceram davam matéria a um capítulo especial, se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é grande, mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.
Machado de Assis, in Esaú e Jacó

Mundo pequeno

O perfume do rio, Iluminura de Martha Barros, filha de Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.
Manoel de Barros

Pensamento em ação

Aquele que se elevou acima da mendicância e, não contente em viver indolentemente de migalhas de opiniões imploradas, põe seu próprio pensamento em ação, a fim de encontrar e seguir a verdade, não deixará, seja o que for que mire, de ter a satisfação do caçador; cada momento dessa busca recompensará suas dores com algum prazer; e ele terá motivo para pensar que seu tempo não foi gasto em vão, mesmo quando não possa vangloriar-se de grandes conquistas.”
John Locke