quinta-feira, 30 de junho de 2016

A palavra

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento — e depois esqueci.
Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven — e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma coisa que eu disse distraído — talvez palavras de algum poeta antigo — foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

Fazer-se

Vivemos para tentar dizer quem somos. Lembro-me da frase de Albert Camus: “Se queres ser reconhecido, é só dizeres quem és”. Creio que não sabemos quem somos. O que alguém faz, no fundo, é muito mais importante do que o que sabe sobre si mesmo.
José Saramago, in As palavras de Saramago

História estranha

Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com sete anos de idade. Está com quarenta, quarenta e poucos. De repente dá com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a sua babá fazendo tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo. Reconhece a sua própria cara, reconhece o banco e a babá.
Tem uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no parque quando de repente aproximou-se um homem e... O homem aproxima-se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e olha nos seus olhos. Seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma coisa no peito. Que coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo.
Como eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer alguma coisa, mas não encontra o que dizer. Apenas abraça a si mesmo, longamente. Depois sai caminhando, chorando, sem olhar para trás.
O garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se reconheceu. E fica pensando, aborrecido: quando eu tiver quarenta, quarenta e poucos anos, como eu vou ser sentimental!
Vivendo e...
Eu sabia fazer pipa e hoje não sei mais. Duvido que se hoje pegasse uma bola de gude conseguisse equilibrá-la na dobra do dedo indicador sobre a unha do polegar, quanto mais jogá-la com a precisão que tinha quando era garoto.
Outra coisa: acabo de procurar no dicionário, pela primeira vez, o significado da palavra “gude”.
Quando era garoto nunca pensei nisso, eu sabia o que era gude. Gude era gude.
Juntando-se as duas mãos de um determinado jeito, com os polegares para dentro, e assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo bonito que inclusive variava de tom conforme o posicionamento das mãos. Hoje não sei mais que jeito é esse. Eu sabia a fórmula de fazer cola caseira. Algo envolvendo farinha e água e muita confusão na cozinha, de onde éramos expulsos sob ameaças. Hoje não sei mais. A gente começava a contar depois de ver um relâmpago e o número a que chegasse quando ouvia a trovoada, multiplicado por outro número, dava a distância exata do relâmpago. Não me lembro mais dos números.
Ainda no terreno dos sons: tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela rachasse de um certo jeito, dava um razoável pistom em miniatura. Nunca mais encontrei a tal folha. E espremendo-se a mão entre o braço e o corpo, claro, tinha-se o chamado trombone axilar, que muito perturbava os mais velhos. Não consigo mais tirar o mesmo som. É verdade que não tenho tentado com muito empenho, ainda mais com o país na situação em que está.
Lembro o orgulho com que consegui, pela primeira vez, cuspir corretamente pelo espaço adequado entre os dentes de cima e a ponta da língua de modo que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser mirado. Com prática, conseguia-se controlar a trajetória elíptica da cusparada com uma mínima margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo feito requereria complicados cálculos de balística, e eu provavelmente só acertaria a frente da minha camisa. Outra habilidade perdida.
Na verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. É vivendo e desaprendendo.
Não falo daquelas coisas que deixamos de fazer porque não temos mais as condições físicas e a coragem de antigamente, como subir em bonde andando - mesmo porque não há mais bondes andando. Falo da sabedoria desperdiçada, das artes que nos abandonaram.
Algumas até úteis. Quem nunca desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto para acertar em algum alvo contemporâneo, bem no olho, e depois sair correndo? Eu já.
Luís Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola

Algumas perguntas a um “homem bom”

Bom, mas para que?
Sim, não és venal, mas o ralo
que sobre a casa sai também
Não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas, o que disseste?
És de boa fé, dás a tua opinião.
Que opinião?

Toma coragem
contra quem?
És cheio de sabedoria
Pra quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?

Escuta pois: nós sabemos
que és nosso inimigo. Por isso vamos
Encostar-te a paredão. Mas em consideração
dos teus méritos e das tuas boas qualidades
Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com
Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com
Uma boa pá debaixo de terra boa.
Bertolt Brecht

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Sorte contrária

A sorte contrária não diminui senão os homens que se deixaram enganar pela prosperidade.”
Sêneca, in Consolação a minha mãe Hélvia

Lítost: uma palavra (quase) intraduzível

Lítost é algo entre o remorso, o pesar e a compaixão. É uma dor profunda que você sente diante de sua própria mediocridade ou falta de habilidade. É quase um tormento da alma. O escritor tcheco Milan Kundera já tentou explicar o significado da expressão em “O livro do riso e do esquecimento”. E disse ainda que não consegue imaginar como outros povos conseguem compreender a alma sem entender o verdadeiro sentido de lítost. Em português, o mais próximo que se chega disso é a famosa “dó”. Também existe um adjetivo derivado da palavra - lítostivý, que significa “pessoa que se emociona muito, não aguenta crítica leve e leva tudo para o lado pessoal”.
Fonte: revista Superinteressante

Micaela

Na guerra dos índios, que fez ranger as montanhas dos Andes com dores de parto, Micaela Bastidas não teve descanso nem consolo. Essa mulher de pescoço de pássaro percorria as terras arranjando mais gente e enviava à frente novas hostes e escassos fuzis, a luneta que alguém tinha perdido, folhas de coca e milho verde. Galopavam os cavalos, incessantemente, levando e trazendo através das serras suas ordens, salvo-condutos, relatórios e cartas. Numerosas mensagens enviou a Túpac Amaru, apressando-o a lançar suas tropas sobre Cusco de uma vez por todas, antes que os espanhóis fortalecessem as defesas e se dispersassem, desanimados, os rebeldes. Chepe, escrevia, Chepe, meu muito querido: Bastantes advertências te dei...
Puxada pelo rabo de um cavalo, entra Micaela na Praça Maior de Cusco, que os índios chamam Praça dos Prantos. Ela vem dentro de um saco de couro, desses que carregam mate do Paraguai. Os cavalos arrastam também, rumo ao cadafalso, Túpac Amaru e Hipólito, o filho dos dois. Outro filho, Fernando, olha.
Eduardo Galeano, in Mulheres

A alegria mansa

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda tentar definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão diurna da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor.
Mas como é que me consolo dessa simples e tranquila alegria? É que não estou habituada a não precisar de consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.
Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.
Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça com a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com essa pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes.
E vejo que não há o latejar da dor. Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade.
Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei – e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo a Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo é uma alegria mansa.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Os olhos fechados do diabo do advogado

O doutor pousou a paciência na palma da mão. O tempo se compridava, a consulta já excedia seu próprio valor. Voltou a olhar a mulher sentada à sua frente. Tinha deixado de lhe ouvir desde há minutos. Sua distração se concentrara nas pernas da dona que cruzavam e contracruzavam. Havia ali demasiada carne para pouco tecido. Resignado, o advogado voltou aos deveres da escuta. A mulher avançava as razões de ter deixado seu esposo.
Meu marido ressona.
Ora, isso é um motivo? Há mais gente a ressonar do que a dormir.
Sim, senhor doutor. Mas este meu marido ressona ao contrário.
Ao contrário?
Sim, ressona só quando está acordado.
O doutor pensou: isto é mulher de fé e vinagre. E pediu mais matéria, mais fundamento. Mas a cliente peregrinava por discurso tão inútil como óculo em mão de cego:
O senhor olhe bem para mim. Acha que já caduquei? Não, não precisa dizer nada. A resposta está à vista nos seus olhos, doutor. Mas esse meu marido é uma alma pernada. Se o visse: altivo, empertigordo. Mas só da gola para cima. Porque, nos pisos inferiores, da cintura para...
Desculpe, minha senhora. Mas esses detalhes...
Detalhes? Mas são esses detalhes que fazem filhos! O senhor me desculpe mas o senhor nasceu foi de um detalhe, doutor... Intimidade não me deixa intimidada. O lixo começa é no nosso nariz. Mas voltando ao marido, antes que esfrie. Se soubesse como ele era namoradiço. Não havia noite, doutor. Como é que ele ficou-se assim? Eu já pensei, doutor. Sabe o que ele diz: que eu não lhe dou vontade porque passo a vida a chorar. Pode ser essa uma razão? Sim, é verdade, eu gosto muito de chorar. Não posso ficar um dia sem me derramar. Mas, para ele, para o meu ex-antigo-marido isso nunca foi motivo de desistência. Ele antes me subia, sem escorregar nas minhas lágrimas. Só agora é que não visita meu corpo. E sabe por quê? Sabe por que ele ficou assim? Foi por ele me beijar com olhos fechados. Sim, é verdade, ele me beijava com os olhos todos fechados. O doutor, me perdoe, mas como é que o senhor beija?
Como é que eu beijo? Que disparate…
Não diga que o senhor não beija, doutor? Se não quiser não responda. Mas o senhor bem sabe: um homem não pode nunca beijar de olhos fechados...
Eu sei o que se diz sobre isso, que se perde destino e alma, essas coisas... Mas eu não me preocupo com isso. Aliás, não fecho os olhos.
Nem nunca feche, doutor. Se não perde caminho de regresso.
O doutor jurista voltou a fixar a elegância com que a senhora se cruzava no respectivo o seu assento. Ela, de repente, se calou. Ficou assim, em pausa. Depois, chegou a cadeira dela mais para a frente e murmurou:
Vá, doutor: não comece a encobrir o meu marido. Não faça de diabo do advogado...
É ao contrário, minha senhora.
Ao contrário, vamos ver depois. Sabe doutor, tenho estado a olhar os seus olhos. O senhor costuma chorar?
Eu? Chorar?
Sim, sem vergonha. Confesse.
E, dizendo isto, ela saiu da sua cadeira e se sentou na secretária. Seus joelhos tocavam o doutor responsável. A mulher passou os dedos pelo rosto dele e disse:
Aposto que o senhor não sabe chorar direito. Chorar tem as suas técnicas, doutor. Eu tenho muita certeza neste assunto. Me formei em tristezas, sou cursada. A dor o que é? A dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura, para chegar a um outro lado. E esse lado é uma parte de nós que não conhecemos. Eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...
A mulher descia agora da secretária e se anichou no colo do advogado. O homem, equivocado, se deixou. Parecia que ele nela se abandonava. A mulher prosseguia seus avanços:
Eu lhe vou dar aulas de choro. Não faça essa cara. Homem chora, sim. Só que tem uma própria maneira de fazer. Vou-lhe ensinar os procedimentos do choro.
Mas eu, minha senhora, com a franqueza...
Com a franqueza, com a fraqueza. Me escute, aprenda. Não há que ter vergonha. Primeiro, faz o seguinte: o doutor junta no peito não aquela imediata e justificada tristeza. Faz muito mal chorar uma tristeza de cada vez. Em cada momento a gente tem que chorar todas as tristezas de todas as vidas. É preciso chamar as antigas amarguras, juntar todas aflições. Faz conta construímos um dique, grande, para estancar as águas. Aqui, está a ver? Deixe-me pôr a mão no seu peito. Vá. Desabotoe a camisa, doutor. Sim, aqui. É aqui que vão inchar os afluentes e rios até começar uma inundação. De repente, o senhor vai ver: tudo se rebenta e águas jorram. O choro é uma paixão: a gente acaba e estamos cansados, como os corpos que fizeram amor.
O respeitoso legislador já estava mais inclinado que um poente. A gravata dançava, desasteada, na mão da cliente. Um sapato dela, inexplicável, se refastelava em cima do computador. A senhora ajustou horizontalidade sobre o jurista.
Me diga, doutor: o senhor quer chorar comigo agora? Não, não tenha receio. É que há um segundo mandamento na ciência da tristeza. Nunca se deve chorar sozinho. Isso faz muito mal, dá muito prejuízo para a tristeza. Chorar isolado chama os maus espíritos. Se quiser abater uma lágrima então chore juntinho com alguém, os dois em afinamento.
Ela puxou o rosto dele de encontro ao seu entreaberto decote. A si mesma ela mais se desabotoou. Nos seios, ela sentiu o úmido dos lábios dele. Mais que isso, ela sentiu as lágrimas, volumosas aguinhas que lhe desciam. Eram tão gordas que lhe formigaram pelo corpo, cocegosas. E os dois foram cumprindo o código das leis que mandam que todo o corpo seja um copo: inclinado se vaza sobre o chão. Aqueles dois, se morressem naquele instante, não seria em imoral mas imortal posição.
E foi aquele quadro que viu, em abismada surpresa, a secretária do doutor, ao abrir a porta do consultório. O jurista e sua cliente, em braços mútuos, ambos em derramados prantos. Por que choravam dessa inundada maneira, a secretária não entendeu. O mais a chocou foi ver como o doutor consumava seus beijos: de olhos fechados, mais fechados que a porta que ela empurrou para se separar do espanto.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

terça-feira, 28 de junho de 2016

Todos os contrastes estão no homem

Já então os dois gêmeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em São Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que saíssem formados e prontos, um para defender o direito e o torto da gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem.”
Machado de Assis, in Esaú e Jacó

Castelo de ego

Entro no bradesco, retiro a senha, sento numa cadeira e espero chegar a minha vez. Abro um livro de contos do Rubem Fonseca e saco que duas garotas estão me olhando. “não é possível. será que fiquei bonito depois de velho? que droga essa garotada tá usando?” penso na minha, viro a página do conto “O cobrador” e converso baixinho comigo mesmo “esse velho tem uma usina de ódio dentro de si. Rubem Fonseca é um dos velhos que mais soube trabalhar a raiva na narrativa ficcional brasileira” aí o cochicho das duas aumenta. “vai lá com ele. a professora não vai acreditar!” olho para os lados achando que tem algum astro teen perto de mim, mas só vislumbro velhos tristes e aposentados implorando por empréstimos. “vou lá, peraí. me dá uma caneta e um papel” diz a mais afoita com os olhos castanhos e cabelo parecido com a da falecida cantora de jazz Amy Winehouse. “oi, você poderia me dar um autógrafo? minha professora adora seus livros. Minha mãe também gosta.” “que bom! sou mais lido por mulheres mais jovens. Elas tem mais sensibilidade que homens. vou fazer o seguinte: vou dedicar um poema pra sua professora, tudo bem?” escrevo um poeminha bonitinho e assino embaixo “com carinho… diego moraes” entrego o papel, a minha senha apita no guichê e escuto a outra dando um puxão de orelha na sósia da Amy: “Falei que não era ele! falei que o Milton Hatoum é branco e muito mais velho”. O gerente me dá bom dia e sinto um castelo de ego desmoronando dentro de mim.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

Sorriem

Fizeram bem os Deuses em determinar que o pobre também soubesse dar grandes risadas. Nas cabanas não se ouve apenas lamento e choro, mas também muita gargalhada, vinda do coração. Até os pobres, cumpre confessá-lo, até os pobres riem muitas vezes, quando teriam antes motivo para chorar.”
Móricz Zsimond

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Insondável, mas compreensível

Saber que existe algo insondável, sentir a presença de algo profundamente racional, radiantemente belo, algo que compreendemos apenas em forma rudimentar - esta é a experiência que constitui a atitude genuinamente religiosa. Neste sentido, e neste sentido somente, eu pertenço aos homens profundamente religiosos.”
Albert Einstein

Café sem açúcar

Vou acordar cedo, ligar a cafeteira
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
pra ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim — hoje é sexta — ele que se engane pra sempre no fio de seu ipod.
Angélica Freitas

Pai contra mãe

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: “gratificar-se-a generosamente”, — ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o. ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum a tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade, fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
Leia o conto completo de Machado de Assis aqui.

Praias no inverno

As praias, no inverno, são mais bonitas. Vocês já viram uma vaca coberta de carrapatos? É algo de dar dó... Pois assim são as praias no verão: os milhares de pessoas são carrapatos que infestam as areias brancas. No inverno, as praias são lisas, solitárias. Quase ninguém. Parece que os homens têm medo da solidão. Gostam mesmo é do falatório, do agito, do som... Prefiro a música do mar e do vento porque ela faz eco na minha alma. Não se ouvem vozes humanas. Apenas o pio dos pássaros. E os pensamentos vêm mansamente. Águas-vivas mortas – seria inútil jogá-las no mar novamente. Eram bonitas vivas, flutuando transparentes...Caranguejos de olhos saltados, andando de lado, fugindo para os buracos na areia. Parecem-se com certas pessoas que não conseguem andar para frente... Catar conchinhas... Eis aí uma deliciosa brincadeira para quem deseja ser escritor. A alma é um grande mar que vai depositando conchinhas no pensamento. É preciso guardá-las. Quem deseja ser escritor há de aprender com as crianças a catar conchinhas, pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e guardá-los num caderninho. De Camus, o livro que mais amo – e por isso mesmo releio sempre – são os seus Cadernos da juventude. Ali ele anotava o voo dos pássaros, uma trovoada, uma nesga azul no céu de tempestade, uma citação que lhe vinha à cabeça, um diálogo entre marido e mulher. Nietzsche também colecionava conchinhas que ele transformava em aforismos. O problema com os aprendizes é que eles pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que torna a conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém a cata da areia e a mostra para quem não a viu: “Veja...”. Literatura é mostrar conchinhas…
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Cortês, hoje

Quando jovem, a intolerância era uma das minhas características básicas; devia ser insuportável. Além disso, a grande timidez levava-me a ser orgulhoso, desdenhoso e ríspido. Não que agora seja muito melhor, mas que aprendi a ser cortês, ou melhor, agora me são indiferentes muitas coisas que antes não eram.”
Jorge Luís Borges

O tempo, inconsumível, nosso melhor alimento



O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo.
Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível.
O tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores(...)”
Raduan Nassar, in Lavoura arcaica

Arena

É visível que não há espanto
nem na formosura do olhar.
Certo que não há como antever
o silêncio na boca de teu pai.
Canalha, uma dose de cinismo
o que há para ser gol, a falta de
dias e dias sem escrever
e o que há para ser, feito
a morte, por nenhuma bagatela.
Estou grudado em sua pele
sua joia é sem juízo.
Silenciosa, bem-vinda é a vida
que lhe obriga a andar de quatro.
E o que lhe resta é tudo isso:
a máscara do adeus – pão & circo.
André Luiz Pinto da Rocha

sábado, 25 de junho de 2016

Poeira

No mundo visível, a Via Láctea é um minúsculo fragmento; dentro desse fragmento, o sistema solar é uma poeirinha infinitesimal, e dessa poeira o nosso planeta é um grão microscópico. Sobre esse grão, insignificantes conglomerados de carvão e água impura, de complicada estrutura, com propriedades físicas e químicas um tanto fora do comum, rastejam durante alguns anos, até se dissolverem de novo nos elementos que os compõem.”
Bertrand Russell

Entre duas noites

Diz-se de Machado: um escritor de fina ironia. Sempre se repete isso. Muito se fala a respeito dessa ironia, apontada como marca da estética machadiana. Estratégia de pudor e de elegância – como as reverências dos senhores de pincenê nos salões cariocas do século XIX. Mas a ironia não se reduz ao sarcasmo inteligente, não é só o pudor que se disfarça em duplo sentido. A ironia é uma interrogação. Ali onde a palavra, poderosa, reluz, ela desmascara a presença do opaco.
A ironia é, antes de tudo, o lado instável da língua. Incerteza que me acompanha enquanto releio as Memórias póstumas de Brás Cubas (editora Globo, prefácio de Abel Barros Baptista). Machado é difícil porque é irônico? Ou é difícil porque, sob os brocados da ironia, ele desmascara a indecência da dor? Sua literatura cava um inferno de perguntas. Vejam Brás Cubas: é um personagem que se esquiva e que se desvia. Sua inquietação é só um jogo de espírito? Certamente não. Há uma dor que ele carrega. A ironia não é só um disfarce que facilita, por delicadeza, a aproximação da verdade; ela é uma pinça incômoda que a repuxa e a aperta. A ironia com um grito de dor? É o próprio Cubas, no capítulo 41, quem responde: “A dor que se dissimula dói mais”.
Na ironia, dizemos uma coisa para dizer outra. Somos sutis e nos sentimos inteligentes. O que parece um disfarce ou uma proteção, porém, é mais um escândalo. Com ela, Machado investe contra as facilidades de pensamento. Se há uma vantagem em escrever memórias desde a fronteira da morte, como faz Brás Cubas, é que isso estanca a dança das ilusões. Já não existe o apoio das modas, dos consensos, das circunstâncias. Nem a leveza do transitório nem a proteção elegante do mundano. Nada.
Morto (fora de si ou, pelo menos, fora do próprio corpo) Brás Cubas, aí sim, cai em si. A narrativa de sua vida é isto: um arremate. Não que isso estanque o sangramento das perguntas. Morto, ainda assim Brás Cubas permanece no inconcluso. Escreve na esperança de uma solução que, porém, não virá. Creio que no centro das Memórias póstumas de Brás Cubas está a Teoria do Nariz, que ele desenvolve no capítulo 49. Para livrar-se do circunstancial e do externo, o homem deve contemplar o próprio nariz, Cubas sugere. Só assim “embeleza-se no invisível, apreende o impalpável”. Para ilustrar sua tese, ele narra a fábula do chapeleiro. Um chapeleiro se mortifica com o sucesso do rival. Sofre, até que, por exaustão, seus olhos se detêm no próprio nariz. Só então, quando se afasta da imagem enganosa do outro e se restringe a seus limites anatômicos, ele cai em si e se equilibra. A fábula do chapeleiro leva Brás Cubas a concluir que duas forças governam o homem: o amor (que garante a procriação) e o nariz (última fronteira da harmonia interior). Ironia ou destino?
Amigo de infância e pregador de uma filosofia da miséria, Quincas Borba (ao trazer de volta um “passado roto, abjeto”) reaparece para denunciar a ineficácia de suas defesas. De nada adianta agarrar-se a um amor (Virgília), de nada adianta proteger-se com a capa sutil da dissimulação. Mesmo na embriaguez da paixão, mesmo na elegância da linguagem, a miséria continua. Borba cria o humanitismo, “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os sistemas”. Para isso, não parte da tradição nem do bom senso, mas da vida real. A vida, ele diz, começa na fase estática, grande magma anterior à criação; prossegue na fase expansiva, na qual as coisas proliferam; e chega, enfim, à fase dispersiva, em que o homem aparece com sua cauda de palavras. Homem-pavão: a ironia como a mais nobre das plumas. Mas nada disso o protege do incerto. A dispersão está nas memórias. Está na literatura. Já no prólogo que escreveu para a quarta edição das Memórias póstumas, de 1899, a última que lançou em vida, Machado de Assis fala de seu livro como “uma obra difusa”. Mesmo depois de morto, o homem não se livra da instabilidade. De nada servem o túmulo solene, o busto de bronze, o epitáfio em versos. Nada se fixa.
Diz Machado, com razão, que seu livro “é e não é” um romance. O livro trafega entre o Sim e o Não. Impossível escolher. Lembro aqui de Eugênia, a Vênus Manca, amor fugidio de Cubas, com seus olhos lúcidos e sua boca fresca – bela, mas coxa. “Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio”, ele anota. Eugênia é o enigma. E, diz Brás Cubas, “quando não se resolve um enigma, o melhor é sacudi-lo para fora da janela”. É o que ele faz, e de nada adianta também. O difícil não é esconder-se sob a frase elegante, mas sustentar a pinça do paradoxo. Escolha que me cabe, também, como leitor. Desistir de qualquer solução. Dispensar a ilusão de um sistema ou teoria que explique o livro. “Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda”, Cubas me adverte. E em seguida desabafa: “Que melhor não era dizer as coisas lisamente, sem todos estes solavancos!”. Mas seria possível? E isso seria realmente dizer?
Iludimo-nos, acreditando que memórias, biografias, confissões solucionam e fecham o passado. Que nada. Machado nos leva a ver, ao contrário, como a reconstituição do passado é atordoante. Não só atordoante: como ela conduz a formas ainda mais graves de desconhecimento. Para se defender de seus críticos do futuro (nós? eu?), Brás Cubas tenta explicar o inexplicável. Lamenta-se: “Valha-me Deus, é preciso explicar tudo!”. Nem as boas palavras nem o desabafo sincero o salvam.
No fecho do romance, o narrador de Machado ainda se apega a um consolo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Escreveu suas memórias, mas não se livrou da esperança de uma solução! Seu desamparo me faz lembrar de Pozzo, o odiento (e irônico) personagem de Samuel Beckett, em Esperando Godot. Ele sintetiza com palavras firmes não só a aflição de Brás Cubas, mas o tormento de todos nós: “O nascimento ocorre sobre um túmulo, o dia brilha um instante, depois surge novamente a noite”. A vida é só um fio de luz. E é com isso que se lê.
José Castello, in Sábados inquietos

Tartle: uma palavra (quase) intraduzível

Você está numa balada com um amigo. Entre um drinque e outro, uma velha conhecida sua se aproxima e você se sente na obrigação de apresentar os dois. O problema é que você não lembra exatamente se o nome dela é Beatriz ou Gabriela e está sem jeito de perguntar. Você sente um calafrio e fica muito constrangido, agora que vai ter que falar o nome da moça, correndo o risco de errar e passar vexame. Ok, o sentimento pode não ser tão exagerado assim. Mas ele tem nome: tartle.
Fonte: revista Superinteressante

Uma corrente

O homem se imagina um cidadão livre e protegido deste mundo pois a ele está preso por uma corrente longa ao ponto de lhe permitir completa liberdade de movimento por todo espaço terreno, mas não tão longa que lhe permita ultrapassar seus limites. Ao mesmo tempo, no entanto, pode sentir-se também um cidadão livre e protegido do mundo celestial, ao qual se vê ligado por uma corrente semelhante. Assim sendo, ele se vê contido pela corrente que o prende ao céu toda vez que pretenda dirigir-se à Terra, ocorrendo o inverso quando deseje alcançar o firmamento. Ocorre, porém, que todas as possibilidades estão diante dele, e bem sabe disso, pois se recusa a aceitar o impasse decorrente da contenção original.”
Franz Kafka

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Quem é teu inimigo?

O que tem fome e te rouba
o último pedaço de pão chama-o teu inimigo.
Mas não saltas ao pescoço
de teu ladrão que nunca teve fome.
Bertolt Brecht

A Deus e ao Diabo também

Ela então me contou seus pecados; primeiro o primeiro, quando ainda era mocinha; depois o mais feio, que foi uma coisa que ela não queria, foi resistindo, mas você compreende, chegou a um ponto em que não dava mais jeito. O pior é que nessa ocasião tinha um rapaz de quem ela gostava muito e queria ser fiel a ele; “foi sujeira”, confessa, “foi sujeira minha”; mas a verdade é que a coisa veio devagar, foi aceitando presentes, depois não sabia o que seria mais vigarista: negar-se ou dar-se; aliás tinha uma simpatia sincera pelo sujeito; mas gostar mesmo era do outro. E contou mais algumas coisas. Disse uma palavra feia a respeito de si mesma e pediu minha opinião:
Não é verdade? — me olhando nos olhos.
Calei-me; ela insistiu, eu fiz uma evasiva meiga:
Você é um amor.
Então, meu Deus, ela se pôs filosófica. Esticou o longo corpo no sofá, sustentou a cabeça nas mãos:
Esta vida...
E disse coisas; mas sempre queria saber minha opinião. Que eu era um homem vivido, eu sabia as coisas, era um escritor. Ponderei que essas coisas quem sabe melhor é padre; de preferência padre velho, que já ouviu muita história, sabe dar conselho. Disse que não; que padre, ela já sabe o que padre vai dizer, de maneira que não adianta; “não gosto de padres”.
Mas você não é católica?
Era, mas não gostava de padres. Isto é, conheceu um padre que era formidável, aliás, era um frade. “Qual é a diferença?” Dei uma resposta vaga, ela fez “ahn...” e virou-se, ergueu uma longa perna no ar, em um movimento perfeito: “Preciso voltar a fazer ballet , eu ando muito preguiçosa.”
Depois, com o olho triste, confessou que às vezes danava a pensar no futuro, tinha medo. Notei:
— “Pensava no futuro e tinha medo.” Isto é um verso de Augusto dos Anjos, você disse quase igual.
Ficou encantada em ter dito uma coisa parecida com o verso de um poeta; pensei em dizer que ela fazia poesia como monsieur Jordan fazia prosa, mas a citação era muito trivial e, no caso, daria muito trabalho explicar. Agora ela estava deitada com as mãos atrás da cabeça (os seios quase sumiam) e erguendo as pernas fazia flexões de joelho, perfeitas.
Quanto livro você tem aí! Eu sou tão ignorante! Precisava ler muitos livros.
Ergueu-se, tirou um livro da estante. Era Soviet Economic Aid, de Berliner. Pegou outro, era O fantasma da inflação, de Humberto Bastos. Olhou as capas, comentou apenas:
Eu sou burra...
Por que você usa esse penteado assim?
Então ela confessou que tinha a testa muito feia. Aliás achava que tinha muitas coisas feias.
Eu sou cheia de complexos.
Eu disse com sinceridade:
Você devia toda manhã agradecer a Deus, ajoelhada, tudo o que Ele lhe deu.
Ela riu, ensaiou uns passos de ballet , elevou no ar um pé nu:
A Deus ou ao Diabo?
Ao Diabo também.
Sem interromper o exercício, ela me olhou de lado:
Você é gozado.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

Céu e Inferno

A mente está em seu próprio lugar, e em si mesma. Pode fazer um Céu do Inferno, um Inferno do Céu”.
John Milton

Águuuuua!


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Caía sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de berro dágua incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas. Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de um homem traído e desgraçado:
Águuuuua!
Imundo, asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados, alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda riam às gargalhadas. O berro dágua de Quincas logo se espalhou como anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique, da Calçada a Itapoã. Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior ternura, dizia-lhe Berrito por entre os dentes mordedores.
Também naquelas casas pobres das mulheres mais baratas, onde vagabundos e malandros, pequenos contrabandistas e marinheiros desembarcados encontravam um lar, família e o amor nas horas perdidas da noite, após o mercado triste do sexo, quando as fatigadas mulheres ansiavam por um pouco de ternura, a notícia da morte de Quincas Berro Dágua foi a desolação e fez correr as lágrimas mais tristes. As mulheres choravam como se houvessem perdido parente próximo e sentiam-se de súbito desamparadas em sua miséria. Algumas somaram suas economias e resolveram comprar as mais belas flores da Bahia para o morto. Quanto a Quitéria do Olho Arregalado, cercada pela lacrimosa dedicação das companheiras de casa, seus gritos cruzavam a ladeira de São Miguel, morriam no largo do Pelourinho, eram de cortar o coração. Só encontrou consolo na bebida, exaltando, entre goles e soluços, a memória daquele inesquecível amante, o mais terno e louco, o mais alegre e sábio. Relembraram fatos, detalhes e frases capazes de dar a justa medida de Quincas. Fora ele quem cuidara, durante mais de vinte dias, do filho de três meses de Benedita, quando esta teve de internar-se no hospital. Só faltara dar à criança o seio a amamentar. O mais fizera: trocava fraldas, limpava cocô, banhava o infante, dava-lhe mamadeira. Não se atirara ele, ainda há poucos dias, velho e bêbedo, como um campeão sem medo, em defesa de Clara Boa, quando dois jovens transviados, filhos da puta das melhores famílias, quiseram surrá-la numa farra no castelo de Viviana? E que hóspede mais agradável na grande mesa na sala de jantar na hora do meio-dia... Quem sabia histórias mais engraçadas, quem melhor consolava das penas de amor, quem era como um pai ou como um irmão mais velho? Pelo meio da tarde, Quitéria do Olho Arregalado rolou da cadeira, foi conduzida ao leito, adormeceu com suas recordações. Várias mulheres decidiram não buscar nem receber nenhum homem naquela noite, estavam de luto. Como se fosse quinta ou sexta-feira santa.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua