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quinta-feira, 30 de junho de 2016
A palavra
Tanto
que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não imaginar que,
sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de
conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas.
Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
Às
vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se
disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com
a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de
fazer alguma coisa boa.
Agora
sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca
saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e
distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento —
e depois esqueci.
Tenho
uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não
cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse
com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a
gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que
arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário
cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma
transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
Um
dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma
pequena frase melódica de Beethoven — e o canário começou a
cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do
velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
Alguma
coisa que eu disse distraído — talvez palavras de algum poeta
antigo — foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de
alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito
distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse
bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres
choupanas e as suas remotas esperanças.
Rubem
Braga,
in Ai
de ti, Copacabana
Fazer-se
Vivemos
para tentar dizer quem somos. Lembro-me da frase de Albert Camus: “Se
queres ser reconhecido, é só dizeres quem és”. Creio que não
sabemos quem somos. O que alguém faz, no fundo, é muito mais
importante do que o que sabe sobre si mesmo.
José
Saramago,
in As
palavras de Saramago
História estranha
Um
homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com sete
anos de idade. Está com quarenta, quarenta e poucos. De repente dá
com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde está a sua
babá fazendo tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo.
Reconhece a sua própria cara, reconhece o banco e a babá.
Tem
uma vaga lembrança daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no
parque quando de repente aproximou-se um homem e... O homem
aproxima-se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e
olha nos seus olhos. Seus olhos se enchem de lágrimas. Sente uma
coisa no peito. Que coisa é a vida. Que coisa pior ainda é o tempo.
Como
eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. O homem tenta dizer
alguma coisa, mas não encontra o que dizer. Apenas abraça a si
mesmo, longamente. Depois sai caminhando, chorando, sem olhar para
trás.
O
garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. Também se
reconheceu. E fica pensando, aborrecido: quando eu tiver quarenta,
quarenta e poucos anos, como eu vou ser sentimental!
Vivendo
e...
Eu
sabia fazer pipa e hoje não sei mais. Duvido que se hoje pegasse uma
bola de gude conseguisse equilibrá-la na dobra do dedo indicador
sobre a unha do polegar, quanto mais jogá-la com a precisão que
tinha quando era garoto.
Outra
coisa: acabo de procurar no dicionário, pela primeira vez, o
significado da palavra “gude”.
Quando
era garoto nunca pensei nisso, eu sabia o que era gude. Gude era
gude.
Juntando-se
as duas mãos de um determinado jeito, com os polegares para dentro,
e assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo bonito que inclusive
variava de tom conforme o posicionamento das mãos. Hoje não sei
mais que jeito é esse. Eu sabia a fórmula de fazer cola caseira.
Algo envolvendo farinha e água e muita confusão na cozinha, de onde
éramos expulsos sob ameaças. Hoje não sei mais. A gente começava
a contar depois de ver um relâmpago e o número a que chegasse
quando ouvia a trovoada, multiplicado por outro número, dava a
distância exata do relâmpago. Não me lembro mais dos números.
Ainda
no terreno dos sons: tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela
rachasse de um certo jeito, dava um razoável pistom em miniatura.
Nunca mais encontrei a tal folha. E espremendo-se a mão entre o
braço e o corpo, claro, tinha-se o chamado trombone axilar, que
muito perturbava os mais velhos. Não consigo mais tirar o mesmo som.
É verdade que não tenho tentado com muito empenho, ainda mais com o
país na situação em que está.
Lembro
o orgulho com que consegui, pela primeira vez, cuspir corretamente
pelo espaço adequado entre os dentes de cima e a ponta da língua de
modo que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser mirado. Com
prática, conseguia-se controlar a trajetória elíptica da cusparada
com uma mínima margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo feito
requereria complicados cálculos de balística, e eu provavelmente só
acertaria a frente da minha camisa. Outra habilidade perdida.
Na
verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. É vivendo e
desaprendendo.
Não
falo daquelas coisas que deixamos de fazer porque não temos mais as
condições físicas e a coragem de antigamente, como subir em bonde
andando - mesmo porque não há mais bondes andando. Falo da
sabedoria desperdiçada, das artes que nos abandonaram.
Algumas
até úteis. Quem nunca desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto
para acertar em algum alvo contemporâneo, bem no olho, e depois sair
correndo? Eu já.
Luís
Fernando Veríssimo,
in Comédias
para se ler na escola
Algumas perguntas a um “homem bom”
Bom,
mas para que?
Sim, não és venal, mas o ralo
que sobre a casa sai também
Não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas, o que disseste?
Sim, não és venal, mas o ralo
que sobre a casa sai também
Não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas, o que disseste?
És
de boa fé, dás a tua opinião.
Que opinião?
Que opinião?
Toma
coragem
contra quem?
És cheio de sabedoria
Pra quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?
contra quem?
És cheio de sabedoria
Pra quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?
Escuta
pois: nós sabemos
que és nosso inimigo. Por isso vamos
Encostar-te a paredão. Mas em consideração
dos teus méritos e das tuas boas qualidades
Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com
Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com
Uma boa pá debaixo de terra boa.
que és nosso inimigo. Por isso vamos
Encostar-te a paredão. Mas em consideração
dos teus méritos e das tuas boas qualidades
Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com
Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com
Uma boa pá debaixo de terra boa.
Bertolt
Brecht
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Sorte contrária
“A
sorte contrária não diminui senão os homens que se deixaram
enganar pela prosperidade.”
Sêneca,
in
Consolação a minha mãe Hélvia
Lítost: uma palavra (quase) intraduzível
Lítost é algo entre o remorso, o pesar
e a compaixão. É uma dor profunda que você sente diante de sua
própria mediocridade ou falta de habilidade. É quase um tormento da
alma. O escritor tcheco Milan Kundera já tentou explicar o
significado da expressão em “O livro do riso e do esquecimento”.
E disse ainda que não consegue imaginar como outros povos conseguem
compreender a alma sem entender o verdadeiro sentido de lítost.
Em português, o mais próximo que se chega disso é a famosa “dó”.
Também existe um adjetivo derivado da palavra - lítostivý,
que significa “pessoa que se emociona muito, não aguenta crítica
leve e leva tudo para o lado pessoal”.
Fonte:
revista Superinteressante
Micaela
Na
guerra dos índios, que fez ranger as montanhas dos Andes com dores
de parto, Micaela Bastidas não teve descanso nem consolo. Essa
mulher de pescoço de pássaro percorria as terras arranjando mais
gente e enviava à frente novas hostes e escassos fuzis, a luneta
que alguém tinha perdido, folhas de coca e milho verde. Galopavam os
cavalos, incessantemente, levando e trazendo através das serras suas
ordens, salvo-condutos, relatórios e cartas. Numerosas mensagens
enviou a Túpac Amaru, apressando-o a lançar suas tropas sobre Cusco
de uma vez por todas, antes que os espanhóis fortalecessem as
defesas e se dispersassem, desanimados, os rebeldes. Chepe,
escrevia, Chepe, meu muito querido: Bastantes advertências te
dei...
Puxada
pelo rabo de um cavalo, entra Micaela na Praça Maior de Cusco, que
os índios chamam Praça dos Prantos. Ela vem dentro de um saco de
couro, desses que carregam mate do Paraguai. Os cavalos arrastam
também, rumo ao cadafalso, Túpac Amaru e Hipólito, o filho dos
dois. Outro filho, Fernando, olha.
Eduardo
Galeano, in Mulheres
A alegria mansa
Pois
a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa
coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e
essa coisa que não quero ainda tentar definir é uma luz tranquila
dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um
pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em
lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase
palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão diurna da
dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É
um modo mais leve e mais silencioso de existir.
Mas
estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da
angústia e da dor.
Mas
como é que me consolo dessa simples e tranquila alegria? É que não
estou habituada a não precisar de consolo. A palavra consolo
aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la,
ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia
mais como pensamento.
Vou
então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando
na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não
tenho dor a consolar.
Ah,
eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que
se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se
pareça com a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à
janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a
chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir.
Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com essa pergunta, estou
apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de
antes.
E
vejo que não há o latejar da dor. Apenas isso: chove e estou vendo
a chuva. Que simplicidade.
Nunca
pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva
cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não
porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da
chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não
tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e
forçadamente o caminho que tomei – e teria sido sempre o que
realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove.
Nem sequer agradecendo a Deus ou à natureza. A chuva também não
agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em
outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um
corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não
ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso que se poderia
chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas
vivo é uma alegria mansa.
Clarice
Lispector, in A descoberta do mundo
Os olhos fechados do diabo do advogado
O
doutor pousou a paciência na palma da mão. O tempo se compridava, a
consulta já excedia seu próprio valor. Voltou a olhar a mulher
sentada à sua frente. Tinha deixado de lhe ouvir desde há minutos.
Sua distração se concentrara nas pernas da dona que cruzavam e
contracruzavam. Havia ali demasiada carne para pouco tecido.
Resignado, o advogado voltou aos deveres da escuta. A mulher avançava
as razões de ter deixado seu esposo.
— Meu
marido ressona.
— Ora,
isso é um motivo? Há mais gente a ressonar do que a dormir.
— Sim,
senhor doutor. Mas este meu marido ressona ao contrário.
— Ao
contrário?
— Sim,
ressona só quando está acordado.
O
doutor pensou: isto é mulher de fé e vinagre. E pediu mais matéria,
mais fundamento. Mas a cliente peregrinava por discurso tão inútil
como óculo em mão de cego:
— O
senhor olhe bem para mim. Acha que já caduquei? Não, não precisa
dizer nada. A resposta está à vista nos seus olhos, doutor. Mas
esse meu marido é uma alma pernada. Se o visse: altivo,
empertigordo. Mas só da gola para cima. Porque, nos pisos
inferiores, da cintura para...
—
Desculpe, minha senhora. Mas esses
detalhes...
—
Detalhes? Mas são esses detalhes que
fazem filhos! O senhor me desculpe mas o senhor nasceu foi de um
detalhe, doutor... Intimidade não me deixa intimidada. O lixo começa
é no nosso nariz. Mas voltando ao marido, antes que esfrie. Se
soubesse como ele era namoradiço. Não havia noite, doutor. Como é
que ele ficou-se assim? Eu já pensei, doutor. Sabe o que ele diz:
que eu não lhe dou vontade porque passo a vida a chorar. Pode ser
essa uma razão? Sim, é verdade, eu gosto muito de chorar. Não
posso ficar um dia sem me derramar. Mas, para ele, para o meu
ex-antigo-marido isso nunca foi motivo de desistência. Ele antes me
subia, sem escorregar nas minhas lágrimas. Só agora é que não
visita meu corpo. E sabe por quê? Sabe por que ele ficou assim? Foi
por ele me beijar com olhos fechados. Sim, é verdade, ele me beijava
com os olhos todos fechados. O doutor, me perdoe, mas como é que o
senhor beija?
— Como
é que eu beijo? Que disparate…
— Não
diga que o senhor não beija, doutor? Se não quiser não responda.
Mas o senhor bem sabe: um homem não pode nunca beijar de olhos
fechados...
— Eu
sei o que se diz sobre isso, que se perde destino e alma, essas
coisas... Mas eu não me preocupo com isso. Aliás, não fecho os
olhos.
— Nem
nunca feche, doutor. Se não perde caminho de regresso.
O
doutor jurista voltou a fixar a elegância com que a senhora se
cruzava no respectivo o seu assento. Ela, de repente, se calou. Ficou
assim, em pausa. Depois, chegou a cadeira dela mais para a frente e
murmurou:
— Vá,
doutor: não comece a encobrir o meu marido. Não faça de diabo do
advogado...
— É
ao contrário, minha senhora.
— Ao
contrário, vamos ver depois. Sabe doutor, tenho estado a olhar os
seus olhos. O senhor costuma chorar?
— Eu?
Chorar?
— Sim,
sem vergonha. Confesse.
E,
dizendo isto, ela saiu da sua cadeira e se sentou na secretária.
Seus joelhos tocavam o doutor responsável. A mulher passou os dedos
pelo rosto dele e disse:
—
Aposto que o senhor não sabe chorar
direito. Chorar tem as suas técnicas, doutor. Eu tenho muita certeza
neste assunto. Me formei em tristezas, sou cursada. A dor o que é? A
dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura,
para chegar a um outro lado. E esse lado é uma parte de nós que não
conhecemos. Eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...
A
mulher descia agora da secretária e se anichou no colo do advogado.
O homem, equivocado, se deixou. Parecia que ele nela se abandonava. A
mulher prosseguia seus avanços:
— Eu
lhe vou dar aulas de choro. Não faça essa cara. Homem chora, sim.
Só que tem uma própria maneira de fazer. Vou-lhe ensinar os
procedimentos do choro.
— Mas
eu, minha senhora, com a franqueza...
— Com
a franqueza, com a fraqueza. Me escute, aprenda. Não há que ter
vergonha. Primeiro, faz o seguinte: o doutor junta no peito não
aquela imediata e justificada tristeza. Faz muito mal chorar uma
tristeza de cada vez. Em cada momento a gente tem que chorar todas as
tristezas de todas as vidas. É preciso chamar as antigas amarguras,
juntar todas aflições. Faz conta construímos um dique, grande,
para estancar as águas. Aqui, está a ver? Deixe-me pôr a mão no
seu peito. Vá. Desabotoe a camisa, doutor. Sim, aqui. É aqui que
vão inchar os afluentes e rios até começar uma inundação. De
repente, o senhor vai ver: tudo se rebenta e águas jorram. O choro é
uma paixão: a gente acaba e estamos cansados, como os corpos que
fizeram amor.
O
respeitoso legislador já estava mais inclinado que um poente. A
gravata dançava, desasteada, na mão da cliente. Um sapato dela,
inexplicável, se refastelava em cima do computador. A senhora
ajustou horizontalidade sobre o jurista.
— Me
diga, doutor: o senhor quer chorar comigo agora? Não, não tenha
receio. É que há um segundo mandamento na ciência da tristeza.
Nunca se deve chorar sozinho. Isso faz muito mal, dá muito prejuízo
para a tristeza. Chorar isolado chama os maus espíritos. Se quiser
abater uma lágrima então chore juntinho com alguém, os dois em
afinamento.
Ela
puxou o rosto dele de encontro ao seu entreaberto decote. A si mesma
ela mais se desabotoou. Nos seios, ela sentiu o úmido dos lábios
dele. Mais que isso, ela sentiu as lágrimas, volumosas aguinhas que
lhe desciam. Eram tão gordas que lhe formigaram pelo corpo,
cocegosas. E os dois foram cumprindo o código das leis que mandam
que todo o corpo seja um copo: inclinado se vaza sobre o chão.
Aqueles dois, se morressem naquele instante, não seria em imoral mas
imortal posição.
E
foi aquele quadro que viu, em abismada surpresa, a secretária do
doutor, ao abrir a porta do consultório. O jurista e sua cliente, em
braços mútuos, ambos em derramados prantos. Por que choravam dessa
inundada maneira, a secretária não entendeu. O mais a chocou foi
ver como o doutor consumava seus beijos: de olhos fechados, mais
fechados que a porta que ela empurrou para se separar do espanto.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
terça-feira, 28 de junho de 2016
Todos os contrastes estão no homem
“Já
então os dois gêmeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em São
Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que
saíssem formados e prontos, um para defender o direito e o torto da
gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes
estão no homem.”
Machado
de Assis, in
Esaú
e Jacó
Castelo de ego
Entro
no bradesco, retiro a senha, sento numa cadeira e espero chegar a
minha vez. Abro um livro de contos do Rubem Fonseca e saco que duas
garotas estão me olhando. “não é possível. será que fiquei
bonito depois de velho? que droga essa garotada tá usando?” penso
na minha, viro a página do conto “O cobrador” e converso
baixinho comigo mesmo “esse velho tem uma usina de ódio dentro de
si. Rubem Fonseca é um dos velhos que mais soube trabalhar a raiva
na narrativa ficcional brasileira” aí o cochicho das duas aumenta.
“vai lá com ele. a professora não vai acreditar!” olho para os
lados achando que tem algum astro teen perto de mim, mas só
vislumbro velhos tristes e aposentados implorando por empréstimos.
“vou lá, peraí. me dá uma caneta e um papel” diz a mais afoita
com os olhos castanhos e cabelo parecido com a da falecida cantora de
jazz Amy Winehouse. “oi, você poderia me dar um autógrafo? minha
professora adora seus livros. Minha mãe também gosta.” “que
bom! sou mais lido por mulheres mais jovens. Elas tem mais
sensibilidade que homens. vou fazer o seguinte: vou dedicar um poema
pra sua professora, tudo bem?” escrevo um poeminha bonitinho e
assino embaixo “com carinho… diego moraes” entrego o papel, a
minha senha apita no guichê e escuto a outra dando um puxão de
orelha na sósia da Amy: “Falei que não era ele! falei que o
Milton Hatoum é branco e muito mais velho”. O gerente me dá bom
dia e sinto um castelo de ego desmoronando dentro de mim.
Diego
Moraes, in ursocongelado.tumblr.com
Sorriem
“Fizeram
bem os Deuses em determinar que o pobre também soubesse dar grandes
risadas. Nas cabanas não se ouve apenas lamento e choro, mas também
muita gargalhada, vinda do coração. Até os pobres, cumpre
confessá-lo, até os pobres riem muitas vezes, quando teriam antes
motivo para chorar.”
Móricz
Zsimond
segunda-feira, 27 de junho de 2016
Insondável, mas compreensível
“Saber
que existe algo insondável, sentir a presença de algo profundamente
racional, radiantemente belo, algo que compreendemos apenas em forma
rudimentar - esta é a experiência que constitui a atitude
genuinamente religiosa. Neste sentido, e neste sentido somente, eu
pertenço aos homens profundamente religiosos.”
Albert
Einstein
Café sem açúcar
Vou
acordar cedo, ligar a cafeteira
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
pra ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim — hoje é sexta — ele que se engane pra sempre no fio de seu ipod.
pôr o pão na torradeira e sentar à mesa
e te odiar por ter me dito sorrindo
e te odiar por ter me dito chorando
que já não dá mais
e te odiar sobretudo por não ter me dito
que já não dá mais
vou odiar não me chamar johnny
e não ter uma arma de qualquer calibre
e não ter uma pistolinha que dispara água
e nem um bodoque de borracha envelhecida
pra ejetar essa coisa qualquer que ficou na garganta
vou pegar o café na cafeteira
encher a caneca e tomar sem açúcar
vou pegar o pão na torradeira
e cobri-lo com uns nacos de manteiga
não tenho tempo para ser
um poema de prévert
tomo meu café e saio
e na rua o ipê roxo
me lembra que o grande e nunca banal ciclo da vida veja só meu amigo
continua
e sobretudo deixa a mensagem clara quando alguém escorrega nas flores gosmentas caídas no chão e precisa ir ao pronto-socorro levar pontos no queixo
no ponto de ônibus tem sempre um rapaz
ouvindo qualquer coisa que soa como erasure
por mim — hoje é sexta — ele que se engane pra sempre no fio de seu ipod.
Angélica
Freitas
Pai contra mãe
A
escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a
outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por
se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o
ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A
máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes
tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para
respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício
de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos
vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí
ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas.
Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se
alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as
tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de
máscaras.
O
ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma
coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à
esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia
assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco
era pegado.
Há
meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem
todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem
pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era
apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o
mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade
moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de
contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem
conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro,
apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem aluguel, e iam
ganhá-lo fora, quitandando.
Quem
perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o
nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde
andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia,
vinha a promessa: “gratificar-se-a generosamente”, — ou
“receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia
em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,
vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor
da lei contra quem o acoutasse.
Ora,
pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre,
mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a
propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações
reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para
outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também,
ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia
bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido
Neves, — em família, Candinho, — é a pessoa a quem se liga a
história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o. ofício
de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não
aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele
chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu
cedo que era preciso algum a tempo para compor bem, e ainda assim
talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O
comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço
entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de
cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade, fiel de
cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do
império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de
obtidos.
Quando
veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas,
ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício.
Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o
ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe
custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal.
Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e
relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando
casasse, e o casamento não se demorou muito. Contava trinta anos,
Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e
cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas
os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho.
Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que
a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que
nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem
soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe
dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o
peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda
da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
Leia
o conto completo de Machado de Assis aqui.
Praias no inverno
As
praias, no inverno, são mais bonitas. Vocês já viram uma vaca
coberta de carrapatos? É algo de dar dó... Pois assim são as
praias no verão: os milhares de pessoas são carrapatos que infestam
as areias brancas. No inverno, as praias são lisas, solitárias.
Quase ninguém. Parece que os homens têm medo da solidão. Gostam
mesmo é do falatório, do agito, do som... Prefiro a música do mar
e do vento porque ela faz eco na minha alma. Não se ouvem vozes
humanas. Apenas o pio dos pássaros. E os pensamentos vêm
mansamente. Águas-vivas mortas – seria inútil jogá-las no mar
novamente. Eram bonitas vivas, flutuando transparentes...Caranguejos
de olhos saltados, andando de lado, fugindo para os buracos na areia.
Parecem-se com certas pessoas que não conseguem andar para frente...
Catar conchinhas... Eis aí uma deliciosa brincadeira para quem
deseja ser escritor. A alma é um grande mar que vai depositando
conchinhas no pensamento. É preciso guardá-las. Quem deseja ser
escritor há de aprender com as crianças a catar conchinhas,
pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e guardá-los
num caderninho. De Camus, o livro que mais amo – e por isso mesmo
releio sempre – são os seus Cadernos da juventude. Ali ele
anotava o voo dos pássaros, uma trovoada, uma nesga azul no céu de
tempestade, uma citação que lhe vinha à cabeça, um diálogo entre
marido e mulher. Nietzsche também colecionava conchinhas que ele
transformava em aforismos. O problema com os aprendizes é que eles
pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que torna a
conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém
a cata da areia e a mostra para quem não a viu: “Veja...”.
Literatura é mostrar conchinhas…
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
domingo, 26 de junho de 2016
Cortês, hoje
“Quando
jovem, a intolerância era uma das minhas características básicas;
devia ser insuportável. Além disso, a grande timidez levava-me a
ser orgulhoso, desdenhoso e ríspido. Não que agora seja muito
melhor, mas que aprendi a ser cortês, ou melhor, agora me são
indiferentes muitas coisas que antes não eram.”
Jorge
Luís Borges
O tempo, inconsumível, nosso melhor alimento
O
tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora
inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é
contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim;
o tempo está em tudo.
Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível.
O tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranquilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores(...)”
Raduan Nassar, in Lavoura arcaica
Arena
É
visível que não há espanto
nem
na formosura do olhar.
Certo
que não há como antever
o
silêncio na boca de teu pai.
Canalha,
uma dose de cinismo
o
que há para ser gol, a falta de
dias
e dias sem escrever
e
o que há para ser, feito
a
morte, por nenhuma bagatela.
Estou
grudado em sua pele
sua
joia é sem juízo.
Silenciosa,
bem-vinda é a vida
que
lhe obriga a andar de quatro.
E
o que lhe resta é tudo isso:
a
máscara do adeus – pão & circo.
André
Luiz Pinto da Rocha
sábado, 25 de junho de 2016
Poeira
“No
mundo visível, a Via Láctea é um minúsculo fragmento; dentro
desse fragmento, o sistema solar é uma poeirinha infinitesimal, e
dessa poeira o nosso planeta é um grão microscópico. Sobre esse
grão, insignificantes conglomerados de carvão e água impura, de
complicada estrutura, com propriedades físicas e químicas um tanto
fora do comum, rastejam durante alguns anos, até se dissolverem de
novo nos elementos que os compõem.”
Bertrand
Russell
Entre duas noites
Diz-se
de Machado: um escritor de fina ironia. Sempre se repete isso. Muito
se fala a respeito dessa ironia, apontada como marca da estética
machadiana. Estratégia de pudor e de elegância – como as
reverências dos senhores de pincenê nos salões cariocas do século
XIX. Mas a ironia não se reduz ao sarcasmo inteligente, não é só
o pudor que se disfarça em duplo sentido. A ironia é uma
interrogação. Ali onde a palavra, poderosa, reluz, ela desmascara a
presença do opaco.
A
ironia é, antes de tudo, o lado instável da língua. Incerteza que
me acompanha enquanto releio as Memórias
póstumas de Brás Cubas
(editora Globo, prefácio de Abel Barros Baptista). Machado é
difícil porque é irônico? Ou é difícil porque, sob os brocados
da ironia, ele desmascara a indecência da dor? Sua literatura cava
um inferno de perguntas. Vejam Brás Cubas: é um personagem que se
esquiva e que se desvia. Sua inquietação é só um jogo de
espírito? Certamente não. Há uma dor que ele carrega. A ironia não
é só um disfarce que facilita, por delicadeza, a aproximação da
verdade; ela é uma pinça incômoda que a repuxa e a aperta. A
ironia com um grito de dor? É o próprio Cubas, no capítulo 41,
quem responde: “A dor que se dissimula dói mais”.
Na
ironia, dizemos uma coisa para dizer outra. Somos sutis e nos
sentimos inteligentes. O que parece um disfarce ou uma proteção,
porém, é mais um escândalo. Com ela, Machado investe contra as
facilidades de pensamento. Se há uma vantagem em escrever memórias
desde a fronteira da morte, como faz Brás Cubas, é que isso estanca
a dança das ilusões. Já não existe o apoio das modas, dos
consensos, das circunstâncias. Nem a leveza do transitório nem a
proteção elegante do mundano. Nada.
Morto
(fora de si ou, pelo menos, fora do próprio corpo) Brás Cubas, aí
sim, cai em si. A narrativa de sua vida é isto: um arremate. Não
que isso estanque o sangramento das perguntas. Morto, ainda assim
Brás Cubas permanece no inconcluso. Escreve na esperança de uma
solução que, porém, não virá. Creio que no centro das Memórias
póstumas de Brás Cubas
está a Teoria do Nariz, que ele desenvolve no capítulo 49. Para
livrar-se do circunstancial e do externo, o homem deve contemplar o
próprio nariz, Cubas sugere. Só assim “embeleza-se no invisível,
apreende o impalpável”. Para ilustrar sua tese, ele narra a fábula
do chapeleiro. Um chapeleiro se mortifica com o sucesso do rival.
Sofre, até que, por exaustão, seus olhos se detêm no próprio
nariz. Só então, quando se afasta da imagem enganosa do outro e se
restringe a seus limites anatômicos, ele cai em si e se equilibra. A
fábula do chapeleiro leva Brás Cubas a concluir que duas forças
governam o homem: o amor (que garante a procriação) e o nariz
(última fronteira da harmonia interior). Ironia ou destino?
Amigo
de infância e pregador de uma filosofia da miséria, Quincas Borba
(ao trazer de volta um “passado roto, abjeto”) reaparece para
denunciar a ineficácia de suas defesas. De nada adianta agarrar-se a
um amor (Virgília), de nada adianta proteger-se com a capa sutil da
dissimulação. Mesmo na embriaguez da paixão, mesmo na elegância
da linguagem, a miséria continua. Borba cria o humanitismo, “sistema
de filosofia destinado a arruinar todos os sistemas”. Para isso,
não parte da tradição nem do bom senso, mas da vida real. A vida,
ele diz, começa na fase estática, grande magma anterior à criação;
prossegue na fase expansiva, na qual as coisas proliferam; e chega,
enfim, à fase dispersiva, em que o homem aparece com sua cauda de
palavras. Homem-pavão: a ironia como a mais nobre das plumas. Mas
nada disso o protege do incerto. A dispersão está nas memórias.
Está na literatura. Já no prólogo que escreveu para a quarta
edição das Memórias
póstumas, de 1899, a
última que lançou em vida, Machado de Assis fala de seu livro como
“uma obra difusa”. Mesmo depois de morto, o homem não se livra
da instabilidade. De nada servem o túmulo solene, o busto de bronze,
o epitáfio em versos. Nada se fixa.
Diz
Machado, com razão, que seu livro “é e não é” um romance. O
livro trafega entre o Sim e o Não. Impossível escolher. Lembro aqui
de Eugênia, a Vênus Manca, amor fugidio de Cubas, com seus olhos
lúcidos e sua boca fresca – bela, mas coxa. “Esse contraste
faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio”,
ele anota. Eugênia é o enigma. E, diz Brás Cubas, “quando não
se resolve um enigma, o melhor é sacudi-lo para fora da janela”. É
o que ele faz, e de nada adianta também. O difícil não é
esconder-se sob a frase elegante, mas sustentar a pinça do paradoxo.
Escolha que me cabe, também, como leitor. Desistir de qualquer
solução. Dispensar a ilusão de um sistema ou teoria que explique o
livro. “Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à
direita e à esquerda”, Cubas me adverte. E em seguida desabafa:
“Que melhor não era dizer as coisas lisamente, sem todos estes
solavancos!”. Mas seria possível? E isso seria realmente dizer?
Iludimo-nos,
acreditando que memórias, biografias, confissões solucionam e
fecham o passado. Que nada. Machado nos leva a ver, ao contrário,
como a reconstituição do passado é atordoante. Não só
atordoante: como ela conduz a formas ainda mais graves de
desconhecimento. Para se defender de seus críticos do futuro (nós?
eu?), Brás Cubas tenta explicar o inexplicável. Lamenta-se:
“Valha-me Deus, é preciso explicar tudo!”. Nem as boas palavras
nem o desabafo sincero o salvam.
No
fecho do romance, o narrador de Machado ainda se apega a um consolo:
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de
nossa miséria”. Escreveu suas memórias, mas não se livrou da
esperança de uma solução! Seu desamparo me faz lembrar de Pozzo, o
odiento (e irônico) personagem de Samuel Beckett, em Esperando
Godot. Ele sintetiza
com palavras firmes não só a aflição de Brás Cubas, mas o
tormento de todos nós: “O nascimento ocorre sobre um túmulo, o
dia brilha um instante, depois surge novamente a noite”. A vida é
só um fio de luz. E é com isso que se lê.
José
Castello, in Sábados
inquietos
Tartle: uma palavra (quase) intraduzível
Você
está numa balada com um amigo. Entre um drinque e outro, uma velha
conhecida sua se aproxima e você se sente na obrigação de
apresentar os dois. O problema é que você não lembra exatamente se
o nome dela é Beatriz ou Gabriela e está sem jeito de perguntar.
Você sente um calafrio e fica muito constrangido, agora que vai ter
que falar o nome da moça, correndo o risco de errar e passar vexame.
Ok, o sentimento pode não ser tão exagerado assim. Mas ele tem
nome: tartle.
Fonte:
revista Superinteressante
Uma corrente
“O
homem se imagina um cidadão livre e protegido deste mundo pois a ele
está preso por uma corrente longa ao ponto de lhe permitir completa
liberdade de movimento por todo espaço terreno, mas não tão longa
que lhe permita ultrapassar seus limites. Ao mesmo tempo, no entanto,
pode sentir-se também um cidadão livre e protegido do mundo
celestial, ao qual se vê ligado por uma corrente semelhante. Assim
sendo, ele se vê contido pela corrente que o prende ao céu toda vez
que pretenda dirigir-se à Terra, ocorrendo o inverso quando deseje
alcançar o firmamento. Ocorre, porém, que todas as possibilidades
estão diante dele, e bem sabe disso, pois se recusa a aceitar o
impasse decorrente da contenção original.”
Franz
Kafka
sexta-feira, 24 de junho de 2016
Quem é teu inimigo?
O
que tem fome e te rouba
o último pedaço de pão chama-o teu inimigo.
Mas não saltas ao pescoço
de teu ladrão que nunca teve fome.
o último pedaço de pão chama-o teu inimigo.
Mas não saltas ao pescoço
de teu ladrão que nunca teve fome.
Bertolt
Brecht
A Deus e ao Diabo também
Ela
então me contou seus pecados; primeiro o primeiro, quando ainda era
mocinha; depois o mais feio, que foi uma coisa que ela não queria,
foi resistindo, mas você compreende, chegou a um ponto em que não
dava mais jeito. O pior é que nessa ocasião tinha um rapaz de quem
ela gostava muito e queria ser fiel a ele; “foi sujeira”,
confessa, “foi sujeira minha”; mas a verdade é que a coisa veio
devagar, foi aceitando presentes, depois não sabia o que seria mais
vigarista: negar-se ou dar-se; aliás tinha uma simpatia sincera pelo
sujeito; mas gostar mesmo era do outro. E contou mais algumas coisas.
Disse uma palavra feia a respeito de si mesma e pediu minha opinião:
— Não
é verdade? — me olhando nos olhos.
Calei-me;
ela insistiu, eu fiz uma evasiva meiga:
— Você
é um amor.
Então,
meu Deus, ela se pôs filosófica. Esticou o longo corpo no sofá,
sustentou a cabeça nas mãos:
— Esta
vida...
E
disse coisas; mas sempre queria saber minha opinião. Que eu era um
homem vivido, eu sabia as coisas, era um escritor. Ponderei que essas
coisas quem sabe melhor é padre; de preferência padre velho, que já
ouviu muita história, sabe dar conselho. Disse que não; que padre,
ela já sabe o que padre vai dizer, de maneira que não adianta; “não
gosto de padres”.
— Mas
você não é católica?
Era,
mas não gostava de padres. Isto é, conheceu um padre que era
formidável, aliás, era um frade. “Qual é a diferença?” Dei
uma resposta vaga, ela fez “ahn...” e virou-se, ergueu uma longa
perna no ar, em um movimento perfeito: “Preciso voltar a fazer
ballet , eu ando muito preguiçosa.”
Depois,
com o olho triste, confessou que às vezes danava a pensar no futuro,
tinha medo. Notei:
—
“Pensava no futuro e tinha medo.”
Isto é um verso de Augusto dos Anjos, você disse quase igual.
Ficou
encantada em ter dito uma coisa parecida com o verso de um poeta;
pensei em dizer que ela fazia poesia como monsieur Jordan fazia
prosa, mas a citação era muito trivial e, no caso, daria muito
trabalho explicar. Agora ela estava deitada com as mãos atrás da
cabeça (os seios quase sumiam) e erguendo as pernas fazia flexões
de joelho, perfeitas.
—
Quanto livro você tem aí! Eu sou tão
ignorante! Precisava ler muitos livros.
Ergueu-se,
tirou um livro da estante. Era Soviet Economic Aid, de
Berliner. Pegou outro, era O fantasma da inflação, de
Humberto Bastos. Olhou as capas, comentou apenas:
— Eu
sou burra...
— Por
que você usa esse penteado assim?
Então
ela confessou que tinha a testa muito feia. Aliás achava que tinha
muitas coisas feias.
— Eu
sou cheia de complexos.
Eu
disse com sinceridade:
— Você
devia toda manhã agradecer a Deus, ajoelhada, tudo o que Ele lhe
deu.
Ela
riu, ensaiou uns passos de ballet , elevou no ar um pé nu:
— A
Deus ou ao Diabo?
— Ao
Diabo também.
Sem
interromper o exercício, ela me olhou de lado:
— Você
é gozado.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
Céu e Inferno
“A
mente está em seu próprio lugar, e em si mesma. Pode fazer um Céu
do Inferno, um Inferno do Céu”.
John
Milton
Águuuuua!
Google Imagens
Caía
sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos
botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se
bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta
da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais
completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais
aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a
procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as
nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava
em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não
que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena
contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de
berro dágua incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas.
Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa
do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem
auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando
de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu
para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a
placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda
em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de
um homem traído e desgraçado:
–
Águuuuua!
Imundo,
asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados,
alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda
riam às gargalhadas. O berro dágua de Quincas logo se espalhou como
anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique,
da Calçada a Itapoã. Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde
então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior
ternura, dizia-lhe Berrito por entre os dentes mordedores.
Também
naquelas casas pobres das mulheres mais baratas, onde vagabundos e
malandros, pequenos contrabandistas e marinheiros desembarcados
encontravam um lar, família e o amor nas horas perdidas da noite,
após o mercado triste do sexo, quando as fatigadas mulheres ansiavam
por um pouco de ternura, a notícia da morte de Quincas Berro Dágua
foi a desolação e fez correr as lágrimas mais tristes. As mulheres
choravam como se houvessem perdido parente próximo e sentiam-se de
súbito desamparadas em sua miséria. Algumas somaram suas economias
e resolveram comprar as mais belas flores da Bahia para o morto.
Quanto a Quitéria do Olho Arregalado, cercada pela lacrimosa
dedicação das companheiras de casa, seus gritos cruzavam a ladeira
de São Miguel, morriam no largo do Pelourinho, eram de cortar o
coração. Só encontrou consolo na bebida, exaltando, entre goles e
soluços, a memória daquele inesquecível amante, o mais terno e
louco, o mais alegre e sábio. Relembraram fatos, detalhes e frases
capazes de dar a justa medida de Quincas. Fora ele quem cuidara,
durante mais de vinte dias, do filho de três meses de Benedita,
quando esta teve de internar-se no hospital. Só faltara dar à
criança o seio a amamentar. O mais fizera: trocava fraldas, limpava
cocô, banhava o infante, dava-lhe mamadeira. Não se atirara ele,
ainda há poucos dias, velho e bêbedo, como um campeão sem medo, em
defesa de Clara Boa, quando dois jovens transviados, filhos da puta
das melhores famílias, quiseram surrá-la numa farra no castelo de
Viviana? E que hóspede mais agradável na grande mesa na sala de
jantar na hora do meio-dia... Quem sabia histórias mais engraçadas,
quem melhor consolava das penas de amor, quem era como um pai ou como
um irmão mais velho? Pelo meio da tarde, Quitéria do Olho
Arregalado rolou da cadeira, foi conduzida ao leito, adormeceu com
suas recordações. Várias mulheres decidiram não buscar nem
receber nenhum homem naquela noite, estavam de luto. Como se fosse
quinta ou sexta-feira santa.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua