terça-feira, 31 de maio de 2016

A vida, plenamente

 Quando se compreende plenamente a vida, não se fica angustiado por ter de morrer.”
Franz Kafka

Elas se calaram

Os holandeses cortam o tendão de Aquiles do escravo que foge pela primeira vez, e quem insiste fica sem a perna direita; mas não há jeito de evitar que se difunda a peste da liberdade no Suriname.
O capitão Molinay desce pelo rio até Paramaribo. Sua expedição volta com duas cabeças. Foi preciso decapitar as prisioneiras, porque já não podiam se mover inteiras através da selva. Uma se chama Flora, a outra Sery. Elas ainda têm os olhos pregados no céu. Não abriram a boca apesar dos açoites, do fogo e das tenazes incandescentes, teimosamente mudas como se não tivessem pronunciado palavra alguma desde o remoto dia em que foram engordadas e untadas de óleo e lhes rasparam os cabelos desenhando-lhes nas cabeças estrelas e meias-luas, para vendê-las no mercado de Paramaribo. Todo o tempo mudas, Flora e Sery, enquanto os soldados lhes perguntavam onde se escondiam os negros fugidos: elas olhavam o céu sem piscar, perseguindo nuvens maciças como montanhas que andavam lá no alto, à deriva.
Eduardo Galeano, in Mulheres

O Realismo nas artes plásticas no Brasil

Descanso da modelo (1882), de José Ferraz de Almeida Júnior

O guardador de rebanhos - XXXVI

E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

Minha terra: poeirenta e terrivelmente seca

Eu tinha treze ou catorze anos quando saí pela primeira vez da província de Aragão. Convidado por amigos da família que passavam o verão em Vega de Pas, perto de Santander, no norte da Espanha, descobri maravilhado, atravessando o País Basco, uma paisagem nova, inesperada, totalmente antagônica à que eu conhecia até então. Vi nuvens, chuva, florestas assombradas pela bruma, musgo úmido nas pedras. Impressão deliciosa que nunca irá me abandonar. Sou um apaixonado pelo norte, o frio, a neve e as grandes torrentes das montanhas.
A terra do Baixo Aragão é fértil, mas poeirenta e terrivelmente seca. Podíamos passar um ano, ou até mesmo dois, sem ver nuvens ameaçadoras no céu impassível. Quando por acaso um cúmulo temerário despontava acima das montanhas, vizinhos, empregados de uma mercearia, vinham bater a nossa casa, sobre cujo telhado erguia-se a empena de um pequeno observatório. Dali, observavam por horas a fio a aproximação da nuvem e diziam, balançando tristemente a cabeça: “Vento sul. Vai passar longe”. Tinham razão. A nuvem se afastava sem agradecer à terra com uma única gota de chuva.
Num ano de seca angustiante, na aldeia vizinha de Castelserás, a população, padres à frente, organizou uma procissão – una rogativa – para implorar aos céus um aguaceiro. Nuvens escuras acumulavam-se nesse dia sobre a aldeia. A prece parecia quase desnecessária.
Desafortunadamente, as nuvens se dispersaram antes do fim da procissão, e o sol ardente reapareceu. Então os sacripantas que encontramos em todos os vilarejos se apoderaram da estátua da Virgem que puxava o cortejo e, atravessando uma ponte, atiraram-na no rio Guadalope.
Em minha aldeia, onde nasci em 22 de fevereiro de 1900, pode-se dizer que a Idade Média se estendeu até a Primeira Guerra Mundial. Sociedade isolada, estática, com as diferenças entre as classes bem demarcadas. O respeito e a subordinação do povo trabalhador aos senhores, os grandes proprietários, pareciam imutáveis, fortemente arraigados nos antigos costumes. A vida se desenrolava horizontalmente, sempre a mesma, organizada e ritmada pelos campanários da igreja do Pilar. Os sinos anunciavam as cerimônias religiosas (missas, vésperas, ângelus) e os acontecimentos da vida cotidiana com o dobre fúnebre conhecido como “toque de agonia”. Quando um morador do vilarejo chegava às portas da morte, um sino badalava langorosamente para ele: um sino grande, profundo e grave para o último embate de um adulto, um sino de bronze mais leve para a agonia de uma criança. Nos campos, nas trilhas, nas ruas, as pessoas paravam e se perguntavam: “Quem será que está morrendo?”.
Luis Buñuel, in Meu último suspiro

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Cuidadoso

O cristão vive jurando que nunca fará aquilo de novo. O homem civilizado apenas resolve que será mais cuidadoso da próxima vez.”
H. L. Mencken

A máquina extraviada

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou — não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas — quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.
A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.
Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.
A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. É claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.
As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.
Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.
Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.
Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.
Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.
Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.
A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.
Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.
Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo? Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
José J. Veiga, in Os cem melhores contos brasileiros do século

Fluxo e refluxo

Quando você ama alguém, você não o ama o tempo todo exatamente da mesma forma, de momento a momento. Isto é impossível. É até mesmo uma mentira fingir que sim. Ainda assim, é exatamente o que a maioria de nós quer. Temos tão pouca fé no fluxo da maré e resistimos, aterrorizados, ao seu refluxo, temendo que ela não retorne jamais. Insistimos na permanência, na duração, na continuidade, embora a vida só continue se fluir, arriscar-se, libertar-se. Assim também é o amor.”
Larrow Lindbergh

Um curso de vida heroico

Uma vida feliz é impossível: o máximo que o homem pode atingir é um curso de vida heroico. Este o possui aquele que luta por um bem destinado a todos contra dificuldades gigantescas, vencendo por fim, mas recebendo pouca ou nenhuma recompensa por seu esforço.”
Schopenhauer 

domingo, 29 de maio de 2016

O analfabeto político

O pior analfabeto
É o analfabeto político,
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.

Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e o lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht

O velho e o mar, de Aleksandr Petrov



THE OLD MAN AND THE SEA (O VELHO E O MAR). Rússia/Canadá/Japão, 1999. Direção de Aleksandr Petrov. Ganhador do Oscar em 2000 como melhor curta animado, a adaptação do clássico de Ernest Hemingway, O Velho e o Mar é uma obra-prima do animador russo Alexander Petrov. O curta com pouco mais de 20 minutos de duração, demorou pouco mais de 2 anos para ser produzido, pois Petrov pintou a óleo e fotografou cada um dos 29 mil frames em quadros de vidro. Para quem não sabe, O Velho e o Mar foi o último livro publicado de Ernest Hemingway e conta a história de um velho pescador que decide enfrentar o alto mar em busca de um peixe gigante.

Sobre o ouvir

O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica reconhecer que somos meio cegos... Vemos pouco, vemos torto, vemos errado. Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! Para se ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões. Minhas opiniões! É claro que eu acredito que as minhas opiniões são a expressão da verdade. Se eu não acreditasse na verdade daquilo que penso, trocaria meus pensamentos por outros. E se falo é para fazer com que aquele que me ouve acredite em mim, troque os seus pensamentos pelos meus. É norma de boa educação ficar em silêncio enquanto o outro fala. Mas esse silêncio não é verdadeiro. É apenas um tempo de espera: estou esperando que ele termine de falar para que eu, então, diga a verdade. A prova disto está no seguinte: se levo a sério o que o outro está dizendo, que é diferente do que penso, depois de terminada a sua fala eu ficaria em silêncio, para ruminar aquilo que ele disse, que me é estranho. Mas isso jamais acontece. A resposta vem sempre rápida e imediata. A resposta rápida quer dizer: “Não preciso ouvi-lo. Basta que eu me ouça a mim mesmo. Não vou perder tempo ruminando o que você disse. Aquilo que você disse não é o que eu diria, portanto está errado...”.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Tudo turbulindo


Mas, de seguinte, eu pensei! se matarem a velha Duzuza, pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma decisão, e eu abri sete janelas! ― Disso que você disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso... ― eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava! ― Já sei que você esteve com a moça filha dela... ― ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade! que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.
E eu quase gritei! ― Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...
Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas palmas. ― Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste confim de gerais?! ― ele baixo exclamou. E tive ira. ― Dou! ― falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava:
Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai... ― ele disse ― não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim.
Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: ― Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três tranços. ― Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe! ― foi o que eu disse. E, fechando, quase gritei: ― Por mim, pode cheirar que chegue o manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!...
Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. E tinha nôjo maior daquela Ana Duzuza, que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu quase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, ir lá, por mim, reduzir a velha ― só não podia maltratar era Nhorinhá, que, ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Vander Lee - Onde Deus possa me ouvir




Sabe o que eu queria agora, meu bem...?
Sair chegar lá fora e encontrar alguém
Que não me dissesse nada
Não me perguntasse nada também
Que me oferecesse um colo ou um ombro
Onde eu desaguasse todo desengano
Mas a vida anda louca
As pessoas andam tristes
Meus amigos são amigos de ninguém.

Sabe o que eu mais quero agora, meu amor?
Morar no interior do meu interior
Pra entender porque se agridem
Se empurram pro abismo
Se debatem, se combatem sem saber.

Meu amor...
Deixa eu chorar até cansar
Me leve pra qualquer lugar
Aonde Deus possa me ouvir
Minha dor...
Eu não consigo compreender
Eu quero algo pra beber
Me deixe aqui pode sair.

Adeus...

sábado, 28 de maio de 2016

Terão que me adivinhar

Que insondável mistério é o ser humano! Quanto mais vivo e convivo – a observar sãos e doentes – mais se irraiga no meu espírito a convicção de que nunca consegui conhecer verdadeiramente nenhum. O que dizemos e o que fazemos pouco ou nada revelam de nós. Por mim falo. Converso, escrevo páginas maciças de confissão, atuo, pareço transparente. E quem um dia quiser saber o que fui terá de me adivinhar”.
Miguel Torga    

Paixões e sofrimentos

Viver com suas paixões é também viver com seus sofrimentos – que são delas o contrapeso, o corretivo, o equilíbrio e a compensação. Quando um homem aprendeu – e não no papel – a ficar sozinho na intimidade de seu sofrimento, a vencer seu desejo de fugir, a ilusão que outros podem partilhar, restam-lhes poucas coisas para aprender.”
Albert Camus

O credo do poeta

Meu propósito era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho apenas um tipo claudicante de credo. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente é para os outros.
Aliás, acho que todas as teorias poéticas são meras ferramentas para escrever um poema. Suponho que haja tantos credos, tantas religiões, quantos são os poetas. Embora no final eu diga sobre os meus gostos e desgostos no tocante à escrita da poesia, acho que vou começar com algumas memórias pessoais, não só de escritor, mas também de leitor.
Tenho para mim que sou essencialmente um leitor. Como sabem, eu me aventurei na escrita; mas acho que o que li é muito mais importante que o que escrevi. Pois a pessoa lê o que gosta – porém não escreve o que gostaria de escrever, e sim o que é capaz de escrever.
Jorge Luis Borges

A crítica como aventura

Clarice Lispector dizia: “Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem”. Falava, assim, da posição dupla do escritor, que se resume em uma ideia: a de sujeito. Sujeito é aquele que age – o sujeito de uma sentença, por exemplo. Mas é também, e paradoxalmente, aquele que está submisso a algo. Isto é, preso (sujeito) a forças que lhe escapam, que o submetem e que nele se inscrevem. Ou melhor: que nele se escrevem. A palavra sujeito vem do latim subjectu, o que significa “posto debaixo”.
Arrisco-me a seguir a pista de Clarice e dizer: “Não é o leitor quem lê um livro, é o livro que o lê”. E, claro, falo da literatura, e não dos textos científicos, compêndios técnicos ou escritos sagrados. Ao contrário destes, que se baseiam em conceitos, aferições e dogmas, a literatura se define pela liberdade e se volta para o enigma. Mira o que não se pode ver. E, por isso, “sofre” do que tenta ver.
Mas, se a literatura encara o enigma, e se o escritor (penso agora com Julio Cortázar) é aquele que rompe as barreiras da realidade, se é assim, que papel resta ao crítico literário? Sua tarefa não se reduz à crítica de conceitos, à aferição de estratégias e à contestação de dogmas. Muito menos à avaliação do bem escrito e do bom gosto. O crítico, mesmo o mais bem equipado dos teóricos, mesmo o mais bem treinado especialista, é antes de tudo um leitor. E, como qualquer leitor, encontra-se em posição de espanto e de desamparo. Está submetido (sujeito) ao golpe da leitura.
Hoje de manhã, em Maceió, regi uma oficina de leitura. À saída, em voz trêmula como se me revelasse um segredo, uma mulher me disse: “Confesso que estou tonta. Mas eu sei: isso quer dizer que, de fato, eu li Clarice”. Lemos juntos, linha a linha, palavra a palavra, “O ovo e a galinha”. Não foi fácil. Perdi a conta das vezes que já li o conto de Clarice, mas voltei, eu também, a me atordoar. Eu, crítico literário? Em um grupo de vinte pessoas, eu era só mais um – mais um a sofrer dos efeitos da literatura.
Por certo, “O ovo e a galinha” que li não é o mesmo que minha aluna leu. O que li em Maceió esta manhã não é o mesmo que li, há seis meses, em um seminário em Curitiba. Cada vez que o leio, existe um “O ovo e a galinha” diferente. E também eu sou outro leitor. O que me autoriza, então, a ostentar minha leitura como superior? Toda leitura é íntima, subjetiva, secreta – e um crítico não está livre disso. Não serão as armas da teoria nem os escudos reluzentes dos títulos que irão poupá-lo do choque que é ler. Se eles o salvam, é porque ele não leu. Sem entrega, não só não há literatura: não há leitor.
Escrevo isso que se chama de crítica literária, mas não me considero um especialista. Embora, desde menino, desde as primeiras leituras de Bandeira, de Vinicius, de Defoe, de Lobato, desde então, eu “sofra” de literatura – como se sofre de uma alergia ou de uma fobia. Sou um amador: vejo-me não só como um não profissional (amador), embora ganhe meu pão do que leio e escrevo, mas também como alguém que ama (amador), que sofre de uma paixão e a exercita. É desse lugar incerto que leio; é dessa posição movediça que escrevo o que, por falta de outra palavra, chamam (pois eu mesmo não chamo) de crítica literária.
Ler é estabelecer laços secretos com uma escrita. É fazer o que Cortázar chamava de “conexões inexplicáveis” com as palavras. Dizia ele que a literatura é um tipo de possessão. Afirmava, por exemplo, ter escrito seu O jogo da amarelinha fora de si. As forças lhe fugiam. “Minha mulher me dava colo, me levava para tomar um pouco de sopa”, relatou. Ora, essas tensões extremas não se alijam de um texto. Se o leitor pragmático e profissional as descarta, joga fora o coração da escrita.
Escrever é perfurar a realidade. Ler é lançar-se nesse rombo, deixar-se cair (sucumbir) na grande aventura da escrita. Antes de ser uma técnica ou um saber, a literatura é aventura. O leitor é aquele que se aventura no coração do outro. Por isso, diz a crítica canadense Claire Varin, a leitura dos grandes escritores é uma espécie de telepatia. Uma comunicação à distância entre dois espantos. Diz Claire que, quando lemos Clarice, ou Cortázar, ou Pessoa, ou bem “somos” esses escritores, ou não lemos coisa alguma.
É verdade: o escritor é também aquele que inventa uma ordem, na esperança de aplacar o caos da existência. João Cabral se interessava por lâminas e por facas: para ele, escrever era talhar, na esperança de chegar ao osso das coisas. Dizia: “Escrevo porque tenho que me agarrar a uma ordem, já que minha cabeça é um caos”. Todo escritor inventa um método, o que não o livra do fracasso. Diz Garcia-Roza: “Uma ficção não é um problema, é um enigma. Um problema pede uma solução, um enigma não tem solução”. Clarice sugeriu que o escritor é aquele que lança a palavra como isca, na esperança de capturar o real. Mas, no fim, ele fica mesmo (e só) com as palavras.
Criticar, em consequência, não pode ser fechar ou reduzir. Se a crítica é alguma coisa, ela é a contemplação do enigma. O crítico deve se expor ao grande clarão da leitura. Eu sei: é preciso coragem. Os sistemas, diz Ernesto Sabato, são sempre “sistemas de tranquilidade”, que nos consolam, criando a ilusão de uma resposta. Mas em literatura não existe paz nem existem respostas. A literatura é o mundo das perguntas. A um crítico só resta perguntar também – ou estará em outro mundo.
Se é verdade, como sugere Cabral em “Uma faca só lâmina”, que o poeta é aquele que, através do corte, trabalha com a ausência e o deserto; se é verdade, como diz Clarice em “O ovo e a galinha”, que o escritor é uma espécie de agente secreto (secreto inclusive para si mesmo) que age em nome de uma esfera desconhecida; se isso é verdade, então o que resta à crítica senão sincronizar com esse desamparo e aceitar a aventura? Caminhar pelas incertezas do deserto, expor-se à luz atordoante das palavras, engajar-se em uma missão desconhecida: só isso pode ser a crítica. Ou ela não passará de uma fuga.
José Castello, in Sábados inquietos

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada - I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
Imagens são palavras que nos faltaram.
Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar! Pensar é uma pedreira.
Estou sendo. Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
Manoel de Barros

Desculpa, foi engano

De boa esperando a ligação de um jornalista e o celular toca. Atendo e a primeira coisa que escuto é um cara completamente bêbado perguntando “E aí, matou ou não matou?” tomei um susto. “caralho! que jornalista sensacionalista da porra. Vou desistir dessa porra. Vou cancelar essa entrevista” pensei. Aí o cara torna a perguntar “matou ou não matou?” dou uma respirada funda e respondo: “cara, nunca matei. Não sei o que te falaram, mas sou uma pessoa boa. Esse é o problema da fama na internet. Criam personagens da gente. Viramos uma caricatura tenebrosa. É a parte mais chata de fazer autoficção ou escrever em primeira pessoa. Não gosto de matar nem barata.” Aí o cara gritou “quem tá falando?!” dou uma suspirada aliviado e respondo tirando onda “Rubem Fonseca. Escritor e delegado de polícia” o cara pediu desculpa e disse assim nervoso e morrendo de medo: “Desculpa, autoridade. Liguei errado. Liguei prum amigo pra saber se ele já matou o porco pra gente comer assado”. Tá bom, malandrão. Vou cair na tua conversa. Quem tem cu, tem medo. Espero que ele acredite que sou mesmo Rubem Fonseca e não Diego Moraes. Porque o mestre Rubão mora em condomínio com cerca elétrica e segurança privada. Já Diego Moraes não passa de um fodido que mora na periferia. Minha única segurança é a literatura e dois vira-latas.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

Hospitais azuis

Certa vez dei uma conferência sobre García Lorca, anos depois de sua morte, e um dos espectadores me perguntou:
- Porque o senhor disse na Ode a Federico que por ele “pintam de azul os hospitais”?
- Olhe, companheiro - respondi -, fazer perguntas desse tipo a um poeta é como perguntar a idade das mulheres. A poesia não é uma matéria estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e inexistentes. De qualquer modo tratarei de responder-lhe com sinceridade. Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, em direção à liberdade e à alegria. A presença de Federico, sua magia pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo ao seu redor. Meu verso provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o sortilégio de sua influência e se verem convertidos subitamente em belos edifícios azuis.
Federico teve uma antevisão de sua morte. Certa vez que voltava de uma tournée teatral me chamou para contar um fato muito estranho. Com os artistas de “La Barraca” tinha chegado a um povoado longínquo de Castilla, acampando nas redondezas. Fatigado pelas preocupações da viagem, Federico não conseguia dormir. Ao amanhecer levantou-se e saiu a vagar sozinho pelos arredores. Fazia frio, esse frio de punhal que Castilla reserva para o viajante, para o forasteiro. A névoa se desprendia em massas brancas e convertia tudo em sua dimensão fantasmagórica.
Um grande gradil de ferro oxidado, estátuas e colunas em ruínas, caídas entre as folhas secas. Deteve-se na porta de uma antiga propriedade. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam a solidão mais penetrante. Federico sentiu-se subitamente oprimido pelo que viria daquele amanhecer, por algo confuso que ali tinha que acontecer. Sentou-se num capitel tombado.
Um carneiro pequenino começou a pastar entre as ruínas e sua aparição era como um pequeno anjo de névoa que humanizava subitamente a solidão, caindo como uma pétala de ternura sobre a solidão do lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
De súbito um bando de porcos entrou também no recinto. Eram quatro ou cinco animais escuros, porcos negros semi-selvagens com fome feroz e patas de pedra.
Federico presenciou então uma cena espantosa. Os porcos lançaram-se sobre o cordeiro e, ante o horror do poeta, despedaçaram-no e o devoraram.
Esta cena de sangue e solidão fez com que Federico ordenasse a seu teatro ambulante continuar imediatamente o caminho.
Ainda transido de horror, três meses antes da guerra civil, Federico me contava esta história terrível.
Vi depois, cada vez com maior clareza, que aquele acontecimento foi a representação antecipada de sua morte, a premonição de sua incrível tragédia.
Federico García Lorca não foi fuzilado; foi assassinado. Naturalmente ninguém podia pensar que o matariam algum dia. De todos os poetas da Espanha era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino pela sua alegria maravilhosa. Quem poderia crer que tivesse sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão inexplicável?
Aquele crime foi para mim o acontecimento mais doloroso de uma longa luta. A Espanha sempre foi um campo de gladiadores, uma terra com muito sangue. A praça de touros, com seu sacrifício e sua elegância cruel, repete - ornamentado festivamente - o antigo combate mortal entre a sombra e a luz.
A Inquisição encarcera Frei Luís de León, Quevedo padece em seu calabouço, Colón caminha com grilhões nos pés. E o espetáculo máximo foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento a los Caídos com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre prisões escuras e incontáveis.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Banho (rural)

De cabaça na mão, céu nos cabelos
à tarde era que a moça desertava
dos arenzés de alcova. Caminhando

um passo brando pelas roças ia
nas vingas nem tocando; reesmagava
na areia os próprios passos, tinha o rio

com margens engolidas por tabocas,
feito mais de abandono que de estrada
e muito mais de estrada que de rio

onde em cacimba e lodo se assentava
água salobre rasa. Salitroso
era o também caminho da cacimba

e mais: o salitroso era deserto.
A moça ali perdia-se, afundava-se
enchendo o vasilhame, aventurava

por longo capinzal, cantarolando:
desfibrava os cabelos, a rodilha
e seus vestidos, presos nos tapumes

velando vales, curvas e ravinas
(a rosa de seu ventre, sóis no busto)
libertas nesse banho vesperal.

Moldava-se em sabão, estremecida,
cada vez que dos ombros escorrendo
o frio d'água era carícia antiga.

Secava-se no vento, recolhia
só noite e essências, mansa carregando-as
na morna geografia de seu corpo.

Depois, voltava lentamente os rastos
em deriva à cacimba, se encontrava
nas águas: infinita, liquefeita.

Então era a moça regressava
tendo nos olhos cânticos e aromas
apreendidos no entardecer rural.
Zila Mamede

Chatos metafísicos

A conversa continua e a moça, apoiada nos tantos poemas de Quintana sobre a morte, insiste em interrogá-lo sobre essas questões de céu, infinito, eternidade.
Ele [Quintana] aproveita:
Acho que o céu deve ser muito chato, porque lá tem chatos de todos os séculos. Talvez seja melhor aqui, pois aqui a gente só aguenta os chatos da geração da gente.
Juarez Fonseca, in Ora bolas - O humor de Mário Quintana

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Argumentos que provam

Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.”
Clarice Lispector

A tábua dos princípios

Eu me considero o náufrago de um barco que afunda. A pessoa está a ponto de se afogar, mas há uma tábua a que se agarra. É a tábua dos princípios. Todo o resto pode desmoronar, mas, agarrado a ela, o náufrago chegará a uma praia. E, depois, com essa tábua, poderá construir outro barco, evitando cometer os erros de antes. Com esse barco tentará chegar a outro porto.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Acerca de ignorantes e estúpidos

Os homens nascem ignorantes, não estúpidos. Eles se tornam estúpidos pela educação.”
Bertrand Russell

Juana aos quarenta e dois

Lágrimas da vida inteira, brotadas do tempo e da pena, empapam a sua cara. No fundo, no triste, vê nublado o mundo. Derrotada, diz adeus.
Vários dias durou a confissão dos pecados de toda a sua existência frente ao impassível, implacável padre Antonio Núfiez de Miranda, e todo o resto será penitência. Com tinta de seu sangue escreve uma carta ao Tribunal Divino, pedindo perdão.
Já não navegarão suas velas leves e suas quilhas graves pelo mar da poesia. Sor Juana Inês de la Cruz abandona os estudos humanos e renuncia às letras. Pede a Deus que lhe dê como presente o esquecimento e escolhe o silêncio, aceita-o, e assim perde a América a sua melhor poetisa.
Pouco sobreviverá o corpo a este suicídio da alma. Que se envergonha a vida de durar-me tanto
Eduardo Galeano, in Mulheres

O custo de pensar (trecho)

Google Imagens

Apesar de suas muitas diferenças, todas as espécies humanas têm em comum várias características que as definem. Mais notadamente, os humanos têm o cérebro extraordinariamente grande em comparação com o de outros animais. Mamíferos pesando 60 quilos têm um cérebro com tamanho médio de 200 centímetros cúbicos. Os primeiros homens e mulheres, há 2,5 milhões de anos, tinham cérebros de cerca de 600 centímetros cúbicos. Sapiens modernos apresentam um cérebro de 1200 a 1400 centímetros cúbicos. Os cérebros dos neandertais eram ainda maiores.
Que a evolução devesse selecionar cérebros maiores pode nos parecer óbvio. Somos tão apaixonados por nossa inteligência superior que presumimos que, em se tratando de capacidade cerebral, mais deve ser melhor. Mas, se fosse assim, a família dos felídeos também teria produzido gatos capazes de fazer cálculos, e porcos teriam a esta altura lançado seus próprios programas espaciais. Por que cérebros gigantes são tão raros no reino animal?
O fato é que um cérebro gigante é extremamente custoso para o corpo. Não é fácil de carregar, sobretudo quando envolvido por um crânio pesado. É ainda mais difícil de abastecer. No Homo sapiens, o cérebro equivale a 2 ou 3% do peso corporal, mas consome 25% da energia do corpo quando este está em repouso. Em comparação, o cérebro de outros primatas requer apenas 8% de energia em repouso. Os humanos arcaicos pagaram por seu cérebro grande de duas maneiras. Em primeiro lugar, passaram mais tempo em busca de comida. Em segundo lugar, seus músculos atrofiaram. Como um governo desviando dinheiro da defesa para a educação, os humanos desviaram energia do bíceps para os neurônios. Dificilmente pensaríamos que essa é uma boa estratégia para a sobrevivência na savana. Um chimpanzé não pode ganhar uma discussão com um Homo sapiens, mas pode parti-lo ao meio como uma boneca de pano.
Hoje, nosso cérebro grande é uma vantagem, porque podemos produzir carros e armas que permitem nos locomovermos mais rápido que os chimpanzés e atirar neles de uma distância segura em vez de enfrentá-los em um combate corpo a corpo. Mas carros e armas são um fenômeno recente. Por mais de 2 milhões de anos, as redes neurais dos humanos continuaram se expandindo, mas, com exceção de algumas facas de sílex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram muito pouco proveito disso. Então, o que impulsionou a evolução do enorme cérebro humano durante esses 2 milhões de anos? Francamente, nós não sabemos.
Outro traço humano singular é que andamos eretos sobre duas pernas. Ao ficar eretos, é mais fácil esquadrinhar a savana à procura de animais de caça ou de inimigos, e os braços, desnecessários para a locomoção, são liberados para outros propósitos, como atirar pedras ou sinalizar. Quanto mais coisas essas mãos eram capazes de fazer, mais sucesso tinham os indivíduos, de modo que a pressão evolutiva trouxe uma concentração cada vez maior de nervos e músculos bem ajustados nas palmas e nos dedos. Em consequência, os humanos podem realizar tarefas complexas com as mãos. Em particular, podem produzir e usar ferramentas sofisticadas. Os primeiros indícios de produção de ferramentas datam de aproximadamente 2,5 milhões de anos atrás, e a manufatura e o uso de ferramentas são os critérios pelos quais os arqueólogos reconhecem humanos antigos.
Mas caminhar com a coluna ereta tem lá suas desvantagens. O esqueleto de nossos ancestrais primatas se desenvolveu durante milhões de anos para sustentar uma criatura que andava de quatro e tinha uma cabeça relativamente pequena. Adaptar-se a uma posição ereta foi um grande desafio, sobretudo quando a estrutura precisou sustentar um crânio extragrande. A humanidade pagou por sua visão elevada e suas mãos habilidosas com dores nas costas e rigidez no pescoço.
As mulheres pagaram ainda mais. Um andar ereto exigia quadris mais estreitos, constringindo o canal do parto – e isso justamente quando a cabeça dos bebês se tornava cada vez maior. A morte durante o parto se tornou uma grande preocupação para as fêmeas humanas. As mulheres que davam à luz mais cedo, quando o cérebro e a cabeça do bebê ainda eram relativamente pequenos e maleáveis, se saíam melhor e sobreviviam para ter mais filhos. Em consequência, a seleção natural favoreceu nascimentos precoces. E, de fato, em comparação com outros animais, os humanos nascem prematuramente, quando muitos de seus sistemas vitais ainda estão subdesenvolvidos. Um potro pode trotar logo após o nascimento; um gatinho deixa a mãe para buscar alimento por conta própria com poucas semanas de vida. Os bebês humanos são indefesos e durante muitos anos dependem dos mais velhos para sustento, proteção e educação.
Esse fato contribuiu enormemente para as extraordinárias habilidades sociais da humanidade e, ao mesmo tempo, para seus peculiares problemas sociais. Mães solitárias dificilmente conseguiam obter comida suficiente para sua prole e para si mesmas tendo crianças necessitadas sob seus cuidados. Criar filhos requeria ajuda constante de outros membros da família e de vizinhos. É necessária uma tribo para criar um ser humano. A evolução, assim, favoreceu aqueles capazes de formar fortes laços sociais. Além disso, como os humanos nascem subdesenvolvidos, eles podem ser educados e socializados em medida muito maior do que qualquer outro animal. A maioria dos mamíferos sai do útero como cerâmica vidrada saindo de um forno – qualquer tentativa de moldá-los novamente apenas irá rachá-los ou quebrá-los. Os humanos saem do útero como vidro derretido saindo de uma fornalha. Podem ser retorcidos, esticados e moldados com surpreendente liberdade. É por isso que hoje podemos educar nossos filhos para serem cristãos ou budistas, capitalistas ou socialistas, belicosos ou pacifistas.
Presumimos que um cérebro grande, o uso de ferramentas, uma capacidade superior de aprender e estruturas sociais complexas são vantagens enormes. Parece óbvio que esses atributos tornaram a humanidade o animal mais poderoso da Terra. Mas os humanos desfrutaram de todas essas vantagens por 2 milhões de anos, durante os quais continuaram sendo criaturas fracas e marginais. Assim, humanos que viveram há 1 milhão de anos, apesar de seus cérebros grandes e ferramentas de pedra afiadas, viviam com medo constante de predadores, raramente caçavam animais grandes e subsistiam principalmente coletando plantas, pegando insetos, capturando animais pequenos e comendo a carniça deixada por outros carnívoros mais fortes.
Um dos usos mais comuns das primeiras ferramentas de pedra foi abrir ossos para chegar até o tutano. Alguns pesquisadores acreditam que esse foi nosso nicho original. Assim como os pica-paus se especializam em extrair insetos dos troncos das árvores, os primeiros humanos se especializaram em extrair o tutano dos ossos. Por que o tutano? Bem, suponhamos que você esteja observando um bando de leões abater e devorar uma girafa. Você espera pacientemente até eles terminarem. Mas ainda não é a sua vez, porque primeiro as hienas e os chacais – e você não ousa se meter com eles – reviram as sobras. Só então você e seu bando ousam se aproximar da carcaça, olhando com cuidado à sua volta, e explorar o único tecido comestível que restou.
Yuval Noah Harari, in Sapiens – Uma breve história da humanidade