segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Bilhões de anos

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Onde estive eu, durante esse tempo imenso, bilhões de anos, que vão do big bang até o meu nascimento? Os religiosos vão dizer que estive no céu, alma desencarnada, à espera do meu nascimento. Eles não entenderam a minha pergunta. Quando digo “eu” estou me referindo a uma memória que esse bolso chamado “eu” guarda dentro de si. O fato é que, desses bilhões de anos, não tenho a menor memória. Se tivesse, eu teria memória também da enorme espera – eu, esperando durante bilhões de anos... Mas não. Para mim, o mundo foi criado quando eu nasci. O big bang aconteceu para mim quando minha mãe me pariu. Foi grande a demora? Custou-me esperar bilhões de anos? Não. Foi menos que um segundo. E agora, que a morte se aproxima, sei que vou voltar para o lugar onde estive. De novo, a espera vai ser grande? Não. Não esperarei mais que um segundo... Como disse o poeta ao Menino Jesus: “Até que nasça qualquer dia que tu sabes qual é...”.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Estranhamentos

Nada me causou mais estranhamento, na infância ou depois, do que visitar as casas dos meus vizinhos — primeiro e definitivo contato com a alteridade. As plantas dos sobrados eram idênticas, mas a ocupação variava: na casa do Henrique, por exemplo, a televisão estava onde deveria ficar a mesa de jantar, a mesa de jantar onde deveria estar o sofá, o quarto dele era onde, lá em casa, ficava o quarto dos meus pais e vice-versa. Sem falar na casa do Rodrigo, onde os pratos eram azuis. Como poderiam não saber que pratos são brancos?
Tinha pena dos outros, hereges, vivendo errado.
Dentro, nossa casa era toda branca, mas por fora era de uma tonalidade meio marrom, meio rosa. Um dia, perguntei à minha mãe que cor era aquela.
Terracota.”
Não gostei. Senti que nosso lar era de alguma forma conspurcado por uma cor com terra no nome.
Antonio Prata, in Nu, de botas

Inocência e deboche

A ignorância é a verdadeira inocência. O maior pensador é o maior debochado.”
Fernando Pessoa

Vergonha de viver

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se estou citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)
E para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar? Apresentar-se com fingida segurança de quem sabe quanto vale em dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado e excessivamente humilde.
O que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de repente cheio de audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que parece contundente. Mas logo depois, espantado, sente-se mal, julga imerecido o aumento, fica todo infeliz.
Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação deserta. Donde se telefonava para a fazenda que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida.
Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.
Nessa fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos, sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e muita fome.
Lá estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei um xeque-mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com enorme espanto que o ouvi dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha timidez. E ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito você.”
De 12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão branco cozido na água e sal. Era o castigo de minha desenvoltura de tímida.
E quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.
Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.
Aos nove anos escrevi uma peça de teatro de três atos, que coube dentro de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava de amor aos nove precoces anos.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Tolerância

Devemos encarar com tolerância toda loucura, fracasso e vício dos outros, sabendo que encaramos apenas nossas próprias loucuras, fracassos e vícios. Pois elas são os fracassos da humanidade à qual também pertencemos. Assim temos os mesmos fracassos em nós. Não devemos nos indignar com os outros por esses vícios apenas por não aparecerem em nós naquele momento.”
Arthur Schopenhauer, in Parerga e Paralipomena

O guardador de rebanhos - VI

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!…
Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa

Medo de errar

A gente é a soma das nossas decisões.”
É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do súper. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer o que se chama por aí de expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega-3, com limão. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível. Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E, com ela, o medo de errar.
Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (Magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim dos dias. Era a maionese tradicional.
Hoje existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem e mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não os ter. Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo?
A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o pânico de crescer.
Hoje, todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse sete. Quem tem 28, parece 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade?
Só nos tornamos adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e depois conviver em paz com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte. Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos.
Martha Medeiros, in A graça da coisa

Excludentes

Talvez estivesse ensinando ao filho que as escolhas são excludentes, para todo sim existe um não.”
Irvin D. Yalom, in A cura de Schopenhauer

O conselho de família


O conselho de família não durou muito tempo. Discutiam na mesa de um restaurante na Baixa dos Sapateiros. Pela rua movimentada passava a multidão, álacre e apressada. Bem em frente, um cinema. O cadáver ficara entregue aos cuidados de uma empresa funerária, propriedade de um amigo do tio Eduardo. Vinte por cento de abatimento. Tio Eduardo explicava:
Caro mesmo é o caixão. E os automóveis, se for acompanhamento grande. Uma fortuna. Hoje não se pode nem morrer.
Ali por perto haviam comprado uma roupa nova, preta (a fazenda não era grande coisa, mas, como dizia Eduardo, para ser comida pelos vermes estava até boa demais), um par de sapatos também pretos, camisa branca, gravata, par de meias. Cuecas não eram necessárias. Eduardo anotava num caderninho cada despesa feita. Mestre na economia, seu armazém prosperava.
Nas mãos hábeis dos especialistas da agência funerária, Quincas Berro Dágua ia voltando a ser Joaquim Soares da Cunha, enquanto os parentes comiam peixada no restaurante e discutiam sobre o enterro. Discussão mesmo só houve em torno de um detalhe: de onde sair o caixão.
Vanda pensara levar o cadáver para casa, realizar o velório na sala, oferecendo café, licor e bolinhos aos presentes, durante a noite. Chamar padre Roque para a encomendação do corpo. Realizar o enterro pela manhã cedo, de tal maneira que pudesse vir muita gente, colegas de Repartição, velhos conhecidos, amigos da família. Leonardo opusera-se. Para que levar o defunto para casa? Para que convidar vizinhos e amigos, incomodar um bocado de gente? Só para que todos eles ficassem recordando as loucuras do finado, sua vida inconfessável dos últimos anos, para expor a vergonha da família ante todo mundo? Como sucedera naquela manhã na Repartição. Não se havia falado noutra coisa. Cada um sabia uma história de Quincas e a contava entre gargalhadas. Ele próprio, Leonardo, nunca imaginara que o sogro houvesse feito tantas e tais. Cada uma de arrepiar... Sem levar em conta que muitas daquelas pessoas acreditavam Quincas morto e enterrado ou bem vivendo no interior do Estado. E as crianças? Veneravam a memória de um avô exemplar, descansando na santa paz de Deus, e, de repente, chegariam os pais com o cadáver de um vagabundo debaixo do braço, atiravam com ele no nariz dos inocentes. Sem falar na trabalheira que iam ter, na despesa a aumentar, como se já não bastasse a do enterro, da roupa nova, do par de sapatos. Ele, Leonardo, estava necessitando de um par de sapatos, no entanto mandara botar meia-sola nuns velhíssimos para economizar. Agora, com aquele desparrame de dinheiro, quando poderia pensar em sapatos novos?
Tia Marocas, gordíssima, adorando a peixada do restaurante, era da mesma opinião:
O melhor é espalhar que ele morreu no interior, que chegou um telegrama. Depois a gente convida para a missa de sétimo dia. Vai quem quiser, a gente não é obrigada a dar condução.
Vanda suspendeu o garfo:
Apesar dos pesares, é meu pai. Não quero que seja enterrado como um vagabundo. Se fosse seu pai, Leonardo, você gostava?
Tio Eduardo era pouco sentimental:
E o que ele era senão um vagabundo? E dos piores da Bahia. Nem por ser meu irmão posso negar…
Tia Marocas arrotou, o bucho farto, o coração também:
Coitado do Joaquim... Tinha bom gênio. Não fazia nada por mal. Gostava dessa vida, é o destino de cada um. Desde menino era assim. Uma vez, tu lembra, Eduardo?... quis fugir com um circo. Levou uma surra de arrancar o pêlo – bateu na coxa de Vanda a seu lado, como a desculpar-se. – E tua mãe, minha querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse que queria ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha graça. Ninguém achou graça. Vanda fechara o rosto, obstinava-se:
Não estou defendendo ele. Muito nos fez sofrer, a mim e a minha mãe, que era mulher de bem. E a Leonardo. Mas nem por isso quero que seja enterrado como um cão sem dono. O que é que iriam dizer quando soubessem? Antes de dar pra doido, era pessoa considerada. Deve ser enterrado direito.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua

Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.


Parágrafo único:

O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII


Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII

Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X


Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Thiago de Mello
Santiago do Chile, abril de 1964

Uma era de cegueira espiritual


Ah! É difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tantos anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.”
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

Vida agitada e tumultuosa

(…) eu começo, a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar.”
Jean-Jacques Rousseau, in A nova Heloísa

O indiano dos ovos de ouro

Lá vem Abdalah, o monhé da Muchatazina.
Sabia-se que era ele, o próprio, pelo tilintar que saía do cuecão dele. Diziam que o gajo tinha ouro dentro dos tomates. Me desculpem a descortesia da palavra. Dizem, quem pode jurar? Os boatos viajam à velocidade do escuro. Façamos o gosto à voz: aceitemos que o monho tinha a tomatada recheada. Suponhamos que os ditos dele pesavam uns quilates. Se acredito, eu? Sei lá. Minha crença é um pássaro. Sou crente só em chuva que cai e esvai sem deixar prova.
Aceitei assim perseguir essa estória do Abdalah. Sou metido em alheiação, gosto do dito e do não dito. Me deram o caso para que lhe desvendasse os acasos. Cada crime mortífero esconde quantas vidas?
Sempre que há sangue as versões correm, em inventanias. O povo fabricou as mais múltiplas explicações. O monhé, sabendo da revolução, tinha transferido sua riqueza para os órgãos. Melhor banco que aquele? Outra versão: tinha sido feitiço. Suspeitas maiores inclinavam em Sarifa Daúdo. Ela, com certeza. Mulher estranha, fechada em duas paredes, ela era origem da desformidade do indiano.
Me aconselharam começar por Sarifa, com quem o fulano tinha estreado amores. Sarifa era sua primeira prima, a quem ele deitou olho de mel. Dizem que primeiro namorisco vem sempre de primo e prima. Também eu rimei com elas, também as primas me deram primazias.
Me endereço a casa da moça. Continua solteira, é uma dor ver tal beleza sem prova nem proveito. Acompanho seus magros gestos, servindo o chá com que me anfitriou. Em certas mulheres nos encanta a concha, noutras o mar. Sarifa se tinha desmulherado, ela retirara o gosto do gesto. Agora, nem concha, nem mar.
Lhe peço, enfim, que fale de Abdalah. Agora, até seus olhos se vazam, negras espirais se enrolando em búzios. Mas a lembrança lá veio, chegada em vozícula quase insonora. Afinal, o namoro correra às maravilhas. O amor é como a vida: começa antes de ter iniciado. Mas o que é bom tem pressa de terminar. Sombra eterna só dentro do caracol. A moça era conflituosa, uma escaramoça? Nem por isso, ela tinha grandes habilidades de silêncio. O nó gordo estava nele, o Abdalah.
Mas porquê, Sarifa? Qual o motivo dele se desmotivar?”
Ela corrigiu uma lágrima no convexo da mão. O indiano batia— lhe? Lombava-a? Não, pelo menos não aparentava violências. Homem que morde não ladra? O senhor é capaz de encostar sofrimento em mulher?
Vou perguntar de novos modos: o senhor já amou uma mulher, com paixão de verdade e jura?”
Não me saiu nenhuma voz. Eu vinha ali despachar pergunta. Posto perante o espelho de uma interrogação me sentia como o lagarto que acha que os outros bichos é que são animais. Já à saída ainda escutei:
Foi tudo por causa do dinheiro.
Desfiz um passo atrás. Mas ela não voltou a falar. Lavava as chávenas com espantável lentidão. Suas mãos acariciavam o vidro por onde eu havia bebido. Senti como se ela me tocasse os lábios e me retirei nesse embalo de ilusão.
Me dirigi para casa, sem vontade de caminho. Demorei em coisas nenhumas.
Nisto, uma estrelícia, simples flor, me deflagra os olhos. O vendedor me cativa a atenção, agitando a crista laranja da flor. Comprar? Para quê, para quem? Mas, sem saber, inexplicável, eu desbolso dinheiros. As mãos se ridicularizam com a intransitiva flor. Chego a casa e a flor se extravaganta ainda mais. Nunca eu tinha encenado flor em jarra.
Sentado, frente a uma cerveja deixo entrar em mim a voz: preciso é de mulher. Necessito de um acontecimento de nascência, uma lucinação. Careço de um lugar para esperar, sem tempo, sem mim. Devia haver um feminino para ombro. Porque ombra era o nome único que merecia o encosto daquela mulher.
Manhã seguinte, regressei a casa de Sarifa movido não sei se por gosto de a rever se por obrigação de profissão. A mulher nem levantou cabeça: assim, olhos no chão me revelou sobre Abdalah. O homem só fazia amor, depois de espalhar por debaixo dos lençóis uma matilha de notas. ãs vezes, eram meticais, outras randes. Só lhe vinham as quenturas quando, previamente, cumpria este ritual. Se deitava de costas, as mãos a acariciar o lençol, os olhos cifrando-se no infinito. Sarifa ficava com sentimento de que ela não existia. Com a desvalorização da moeda o ardor dele variava. ãs vezes, demorava a ser homem, másculo e maiúsculo.
Uma noite, porém, não conseguiu. Começou-se a enervar. Levantou os lençóis, inspecionou as notas. Lhe nasceu, então, a lancinante suspeita: as notas eram falsas. Alguém havia retirado as verdadeiras para, em seu lugar, espalhar imitações.
Sarifa, foi você?”
A prima, ao princípio, nem entendeu. Um murro carregado de raiva lhe enegreceu as vistas e aclarou o pensamento: havia suspeita sobre os dinheiros. O indiano bateu, rebateu. Sarifa ficou estendida. Vaziando sangue. Quem a apanhou no chão foi o tio Banzé, homem dado a espiritações. Refez a sobrinha, passou-lhe uma demão nas mazelas e correu a engasganar o indiano. Você foi longe e de mais, meu velho. Você mistura amor e cifrão?” Lhe espetou o indicador na costela e ameaçou:
Pois eu lhe vou seguir os sonhos a ver o que vai sair deles!”
O desafio era o seguinte: tio Banzé iria visitar os próximos sonhos do indiano, nas dez seguintes noites. Caso dinheiro somasse mais que mulher então uma maldição recairia sobre Abdalah.
De Abdalah te transformo em abadalado!”
Não chegou a haver dez noites. Na sétima já o indiano sofria de um peso extra no baixo do ventre. O homem nunca mais visitou Sarifa, nunca mais amou nenhuma mulher. E agora, que ele perdeu acesso a namoros, seus sonhos se destinam unicamente em mulheres. O ouro lhe entrou nos ditos, a mulher lhe saiu dos devaneios. A punição do sonho é aquela que mais dói. Pergunte-se a Abdalah, o indiano dos ovos de ouro.
Mia Couto, in Contos do Nascer da Terra

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Tortura

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Uma estranha consequência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado. Com efeito, se ambos são submetidos ao suplício, o primeiro tem tudo contra si, uma vez que ou confessa o delito e é condenado, ou é declarado inocente, mas sofreu uma pena não merecida; ao passo que, um caso é favorável ao culpado quando, resistindo à tortura com firmeza, deverá ser absolvido como inocente, trocando uma pena maior por uma menor. O inocente, portanto, só tem a perder e o culpado a ganhar.”
Cesare Beccaria, in Dos delitos e das penas

A iniciação

Fernando tinha forçado a janelinha com a chave de fenda e abrira a porta do Renault. Depois, apagara a luz vermelha do freio e ligara o motor com um fio de arame. Com fita isolante e esparadrapo, pedacinhos negros e pedacinhos brancos, Pancho mudara os números da chapa: o cinco virou três, o oito virou seis, o seis virou nove.
O vento empurrava as ondas violentamente contra o cais e multiplicava o ruído da maré alta por toda a Cidade Velha. Uivou a sirena de um barco; por alguns segundos, vocês ficaram paralisados e com os nervos à flor da pele. O Gato Romero olhou o relógio. Eram duas e meia da manhã – em ponto.
Você não tinha comido nada desde o meio-dia e sentia borboletas no estômago. O Gato explicara que é melhor com a barriga vazia, e que convém também esvaziar os intestinos, porque pode entrar chumbo, e você sabe... O vento, vento de janeiro, soprava quente, como saído da boca de um forno, e todavia um suor gelado grudava a camisa em seu corpo. A sonolência paralisava sua língua e os braços e as pernas, mas não era sonolência de sono. A boca tinha ficado seca, e você sentia uma moleza tensa, uma doçura carregada de eletricidade. Do espelinho do Renault pendia um diabinho de arame, que dançava com o tridente na mão.
Depois, você não reconheceu a própria voz quando escutou-a dizer: “Se mexe, e eu te queimo”, deixando cair como marteladas uma sílaba atrás da outra, nem seu próprio braço quando afundou o cano da Beretta no pescoço do guarda, nem suas próprias pernas quando foram capazes de sustentá-lo sem tremer e de correr sem perceberem que uma delas, a perna esquerda, tinha um furo calibre trinta e oito que atravessava o músculo e jorrava sangue. Você foi o último a sair, esvaziou três pentes de balas antes de se meter no automóvel em movimento e a cada curva tudo caía e levantava e tornava a cair e a levantar, os pneus mordiam as sarjetas, ficavam atrás as fileiras de árvores e as caras dos edifícios e os brilhos dos faróis; arrastados pelo vento, os pedaços do mundo se atropelavam e se confundiam e voavam em rajadas escuras. E só então, quando você ficou enrolado como um novelo, arquejando no banco de trás, descobriu, extenuado e sem assombro, que a primeira vez da violência é como a primeira vez em que se faz o amor.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

A última sessão de fotos de Marilyn Monroe


Em junho de 1962, seis semanas antes de sua morte, Marilyn Monroe posou pela última vez para a revista Vogue. Em entrevista, o fotógrafo Bert Stern compartilhou suas memórias da atriz: “Eu não pensei que ela fosse bonita como parecia ser. Pensei que ela fosse mais velha... e quando a conheci, eu disse: ‘Você é linda’ e ela respondeu: ‘Que gentileza sua!’.”


Em pouco mais de três dias de sessão em um hotel privado em Los Angeles, Stern tirou em torno de 1000 fotos de Marilyn. “Quando a conheci, senti que precisava fotografá-la, e acredito que ela tenha pensado da mesma maneira. Nós não nos conhecíamos antes disso, mas se você fotografa alguém que você não conhece e gosta dessa pessoa, então vocês conhecem muito bem um ao outro. E se você transmitir esse sentimento na fotografia, ele estará lá. Eu acho que isso é a fotografia: o sentimento de conhecer alguém muito bem. Amor à primeira vista.”


Stern “não pensava que ela fosse morrer seis semanas depois que as fotos foram feitas. Mas talvez esta seja a razão para um sentimento de tragédia, alguma coisa triste e nostálgica transmitida em uma das fotos, em que ela está com a mão no rosto. Foi a foto principal no artigo da Vogue. E pouco tempo depois, ela morreu... Foi sua última sessão.” 







Para sobreviver

A vida não é mais que uma sucessão contínua de oportunidades para sobreviver.”
Gabriel García Márquez

Leitura literária

Andei pensando muito antes de fazer o Movimento por um Brasil Literário. Conversava muito com o pessoal da Fundação Nacional do Livro sobre como a escola não pode ser a única responsável pela formação do leitor. A escola não pode e nem dá conta disso. Se a criança chega em casa e não encontra nem o pai, nem a mãe, nem avó lendo, como é que a escola quer que ela leia? Ela não vê isso acontecendo na vida. Achei que era preciso mobilizar toda uma sociedade em função da leitura literária. Não deixar exclusivamente na mão da escola uma tarefa que não pode ser somente dela. Precisamos de uma sociedade inteira envolvida nesse trabalho de formação de leitor. Não quis chamar de plano de leitura, projeto de leitura. Eu queria um movimento de leitura, com pessoas que acreditam que a literatura é boa, faz bem, com quem possa ajudar, indicar um livro, fazer um grupo de leitura. Quem pode fazer isso pode entrar no nosso movimento, pode entrar no site (www.brasilliterario.org.br). Temos contatos que vão informando o que está acontecendo. É todo mundo que acredita nisso. Não há cobrança nem avaliação. Não quis nada disso, quis um movimento livre. O movimento é uma coisa organizada, tem uma organização interna, um fluxo. Todo mundo que estiver embalado nessa confiança na literatura, que a literatura pode fazer uma sociedade mais bonita, menos corrupta, mais reflexiva, mais crítica. Pode fazer uma sociedade mais cheia de compaixão, de respeito mútuo. Acho que a literatura tem a função de tornar a sensibilidade mais aguçada. As pessoas mais intuitivas, mais prontas para as minúcias, para os retalhos, como diz o Manoel de Barros, para os restos, para as pequenas coisas. A literatura pode nos ajudar muito.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Palestra no Teatro do Paiol, Curitiba – PR

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Talento X Gênio

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Talento é quando um atirador atinge um alvo que os outros não conseguem. Gênio é quando um atirador atinge um alvo que os outros não veem.”
Arthur Schopenhauer, in O mundo como vontade e representação

Acredito nas noites

Tu, escuridão da qual descendo
de ti gosto mais que da labareda:
ela reduz
o mundo em que reluz
a uma espécie de círculo
fora do qual nenhum ser a conhece.
já a escuridão, em si tudo contém:
formas e flamas e animais, e eu
– assim como também ela reúne
pessoas e potências…
e pode ser isto: uma grande força
a se mover nos subúrbios de mim…
Acredito nas noites.
Rainer Maria Rilke

Dono de si mesmo

- Você chama o ontem de passado?
- E não pertence ao passado o que acontece neste mesmo instante? As pessoas superficiais são as únicas que tem a necessidade de anos para desembaraçar-se de uma emoção. Um homem dono de si mesmo pode dar fim a um desgosto com a mesma facilidade com que inventa um prazer. Não quero sentir-me à mercê das minhas emoções. Quero experimentá-las, gozá-las e dominá-las.”
Oscar Wilde, in O retrato de Dorian Gray

Feriados

Definir não é bom, mas contando com meus quase vinte anos escrevendo anonimamente e escancaradamente – posso dizer que fazer literatura é prolongar feriados. A minha sensação é sempre de ter criado um domingo de páscoa ou finados quando viro a página ou aperto a tecla de ponto final. O sentimento é de ressaca quando terminamos algo que só amenizará ou aumentará o buraco na vida de alguém. Hoje mesmo li um conto triste de um amigo e perguntei baixinho para meu cão: “hoje é domingo? Esse conto abriu um vazio tão grande dentro de mim que parece feriado” meu cachorro latiu três vezes e saiu abanando o rabo para o quintal. Não há um dia que não abra minha pasta do computador e pergunte por dentro: “esse conto é para fechar buracos ou para arrombá-los mais?”.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

O sucesso do HQ brasileiro no mercado europeu

Marcello Quintanilha: melhor HQ policial em Angoulême por "Tungstênio"
Marcello Quintanilha: melhor HQ policial em Angoulême por "Tungstênio"

Após anos centrando esforços na milionária indústria de quadrinhos dos Estados Unidos, os autores brasileiros estão mais reconhecidos e interessados do que nunca no ainda pouco explorado e tradicional mercado europeu de HQs. Em março, a coleção “Romance Gráfico Brasileiro”, da editora portuguesa Polvo, ganha seu 12º volume. Dentre os títulos da série está o aclamado “Tungstênio”, obra de Marcello Quintanilha premiada com o troféu de melhor HQ policial na mais recente edição do Festival de Angoulême, na França, a mais tradicional premiação de quadrinhos do mundo.
Idealizador e responsável pela coleção “Romance Gráfico Brasileiro”, iniciada em 2013, o editor português Rui Brito diz que a presença intensa de elementos da cultura brasileira somada a tramas universais e estilos variados é o que há de melhor na leva mais recente de quadrinhos produzidos no Brasil. "É um momento caracterizado por uma notável explosão criativa nos quadrinhos brasileiros. Um dos elementos comuns ligando quase todos os títulos que publiquei é a brasilidade. Outro, é a diversidade de estilos", analisa o editor.


Título brasileiro mais premiado e elogiado pela crítica especializada nos últimos anos, “Tungstênio” saiu em Portugal e na França em 2015, logo após o lançamento do livro no Brasil. Quintanilha diz acreditar que, além da efervescência atual da produção brasileira de quadrinhos, há uma predisposição dos editores europeus à pluralidade de suas publicações. “Eles sempre estiveram abertos à diversidade de propostas apresentadas. Desenhistas de diferentes nacionalidades sempre estiveram presentes nos grandes mercados. É provável que a diversidade de nacionalidades se torne ainda maior”.

Um paulista, uma carioca
Com previsão de lançamento em março em Portugal, "Klaus" será o mais novo lançamento da coleção da editora Polvo. De autoria do quadrinista paulistano Felipe Nunes, o álbum foi publicado no Brasil em novembro de 2014 e deu ao autor o Troféu HQMix 2015 de Novo Talento Desenhista. “Não fiz o quadrinho pensando em ser publicado fora do Brasil. Até por ter sido meu primeiro livro, tinha anseio de fazer para sair aqui, para que todo mundo pudesse ver e eu mostrasse a minha cara”, explica Nunes.


No final de 2015 ele lançou seu segundo título, o também elogiado “Dodô”, já tendo em mente a possibilidade de ver seu trabalho chegar na Europa. “Ano passado fiz um esforço de traduzir os dois livros e imprimi algumas cópias para presentear autores gringos que visitaram o país em convenções. Também tenho tentado expandir meus contatos com outros quadrinistas de fora e feito algumas conversas sobre sair por lá. Acho que tem muita gente com potencial de ser publicado fora do mercado nacional”.
Atualmente morando na França, em Angoulême, onde frequenta uma residência artística na qual está realizando uma HQ autobiográfica sobre seus anos como estudante de medicina, a quadrinista carioca Cynthia Bonacossa tem convivido diariamente com artistas de outras nacionalidades e conversado com frequência com editores franceses. Segundo ela, a receptividade a trabalhos vindos do Brasil não é distinta do fascínio por títulos de quaisquer outros países, mas há fatores que podem gerar interesse.
Tem algumas editoras mais francófonas, que só publicam coisas francesas, e outras mais abertas. Os franceses são bem abertos a conhecer a arte de outros lugares. Eles têm curiosidade. Histórias mais roots, como as de subúrbio do Quintanilha, talvez cativem um pouco mais, por serem mais exóticas para os leitores daqui. Talvez sejam temáticas que aticem a curiosidade deles, algo parecido com o interesse de ‘Cidade de Deus’, não tão urbanas e autobiográficas”, explica a autora. Ainda assim, Cynthia reitera que conversou com editores locais que mostram interesse em sua HQ, mesmo ela não contendo características e elementos da ideia francesa considerados típicos do Brasil.
Interesse pelos brasileiros
Dono da editora Veneta, editor original de "Tungstênio" no Brasil e responsável por outros títulos brasileiros sendo exportados para a Europa, Rogério de Campos vê um padrão no sucesso de algumas obras nacionais que recentemente chegaram nos tradicionais mercados de quadrinhos de França e Portugal. “O Quintanilha está conquistando as coisas dentro dos termos dele, com o desenho dele, as histórias dele, as idéias dele. Não está adaptando isso e aquilo para se adequar ao mercado internacional. Quando descobriram o ‘Cumbe’, de Marcelo D'Salete, esse interesse aumentou ainda mais. O sucesso surpreendente de ‘Zumbis Para Colorir’, de Juscelino Neco - cujos direitos foram adquiridos por editoras da França, Itália, Portugal, Finlândia, Taiwan e EUA - também ajudou”.
Na avaliação de Rogério de Campos, a agitação do mercado nacional de quadrinhos, a qualidade crescente do que tem sido publicado no Brasil e o interesse europeu nas obras brasileiras são elementos já notados há muito tempo pelos autores daqui. A importância maior da premiação de Quintanilha em Angoulême e a chegada cada vez mais constante de títulos brasileiros no continente europeu servem principalmente para chamar atenção do público para o momento extraordinário dos quadrinhos brasileiros. “Fora do Brasil, o interesse pelo quadrinho brasileiro de autor já é bem grande. E o prêmio de Angoulême talvez seja mais importante para o mercado editorial e a mídia brasileira perceberem a importância que os quadrinhos brasileiros adquiriram nesses últimos anos”.

Acesse aqui a matéria completa da entretenimento.uol.com.br

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O pavão

E considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial.
Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

O náufrago náugrafo

a letra A a
funda no A
tlântico e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento
assim
fundo e me afundo
de todos os náufragos
náugrafo
o náufrago
mais
profundo.
Paulo Leminski

Eliane Elias - Chega De Saudade



Que grande pianista e intérprete! E DESCONHECIDA NO BRASIL! Mas foi a única brasileira a vencer um Grammy 2016, com seu disco Made in Brazil, que foi o escolhido na categoria de melhor álbum de jazz latino. Por tudo isso, E EM RECONHECIMENTO, repliquei esse vídeo no blog. Vale a pena conferir outros vídeos no Youtube.

O primeiro grande conto-do-vigário

Em seu Tesouro da fraseologia brasileira, o professor Antenor Nascentes, num período que talvez não seja dos mais brilhantes desse mestre do idioma, mas que, em todo caso, esclarece o assunto, define “conto-do-vigário” como: “Modalidade de furto na qual o ladrão conta à futura vítima (o otário) uma história complicada de grande quantidade de dinheiro (originariamente entregue pelo vigário de sua freguesia) aí presente dentro de um embrulho (o paco), dinheiro esse que ele deseja confiar provisoriamente, por comodidade ou necessidade, a uma pessoa honesta em troca de algum dinheiro miúdo de que precisa no momento. Burla, logro, intrujice.”
A modalidade é conhecida no Brasil, onde houve o inesquecível caso do mineiro que comprou um bonde, instalou-se nele e sentiu por algum tempo a glória de ser proprietário de um grande semovente, só verificando o logro em que caíra quando se pôs a dar ordens ao motorneiro. O Rio é um grande centro de vigaristas, por isso mesmo que recebe vastos contingentes provincianos, gente simples e de boa-fé que vai na charla desse outro vasto contingente de malandros de que está cheia a cidade.
Foi meu amigo o poeta João Cabral de Melo Neto quem primeiro me chamou a atenção para isto que se pode dizer constitui o primeiro grande conto-do-vigário da história. É provável que tenha havido antecedentes, mas o conto-do-vigário em questão pode ser considerado o pai de todos, de vez que seu autor foi Rodrigo Dias de Vivar, herói popular espanhol, a quem, pela bravura em campo de batalha, cognominaram El Campeador. Isso, no século XI.
A burla está na grande epopéia, espanhola, e quem quiser pode verificar com os próprios olhos. Dá-se que o Cid, intrigado por elementos da Corte que, de inveja, o indispuseram com don Afonso, viu-se na contingência de sair de Burgos e acampar com seus homens num arraial cerca da cidade. Foi quando sobreveio Martín Antolínez (seu parceiro no conto-do-vigário) não só para confortá-lo moralmente como para oferecer-lhe seus serviços. O Cid propôs então o conto:

Con vuestro consejo - bastir quiero dos arcas
inchamosla d'arena - ca bien serán pesadas,
cubiertas de guadalmeci - e bien enclavadas.

Em resumo: o Cid queria que seu amigo construísse duas arcas bem bonitas, forradas de couro e pregadas a belos cravos, que as enchesse de areia e...

Por Raquel e Vidas - vayádesme privado
quando en Burgos me vedaron compra - y el rey me a ayrado,
non puedo traer e laver - ca mucha es pesado,
empenar gelo he -por lo quefore guisado;
de noche lo lieven - que non lo vean cristianos.
Veálo el Criador - con todos los santos,
yo más non puedo - e amidos lo ago.

Para quem não entende o castelhano arcaico (eu também não entendo tudo não, não pensem ...) o que o Cid disse foi o seguinte: para Antolínez ir procurar dois usurários locais, Raquel e Vidas, e dizer-lhes que, como ele não podia comprar nada em Burgos, por estar sob a ira do rei, nem levar suas arcas carregadas de despojos, por serem muito pesadas - se não topariam que ele, o Cid, as empenhasse por um dinheirinho qualquer. A coisa tinha de ser feita à noite, para que nenhum cristão visse nada, porque o Criador, esse ia ver mesmo de qualquer maneira, com todos os seus santos: aliás, ele o Cid passava o conto-do-vigário porque não tinha mesmo outro jeito, era forçado.
Raquel e Vidas, por ganância, sabedores de que o Cid tinha colhido grandes despojos em suas lutas contra os mouros e o rei de Granada, toparam o negócio. Vieram à tenda do Cid e levaram as duas arcas em troca de um pago de seyscientos marcos. Muito obsequioso, Antolínez ainda o ajudou no transporte e cobrou um par de calças de comissão.
O conto-do-vigário foi, assim, completo, inteiramente dentro da definição de Antenor Nascentes: com o ladrão (o Cid - e que a literatura me perdoe chamá-lo assim, ao grande herói), o otário (no caso dois) e o paco (as arcas cheias de areia). Não podia ter sido mais perfeito, nem de espírito mais carioca.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor