domingo, 31 de janeiro de 2016

Passeio suburbano

Encontrei uma menina
que me perguntou se era verdade que iam demolir aquele belíssimo pé de figueira.
Não, ela não disse belíssimo...
Foi por uma questão de ritmo que acrescentei aqui esse adjetivo inútil.
Feliz de quem vive ainda no mundo dos substantivos: o resto é literatura...
Sorri-lhe cumplicemente
(e tristemente)
porque me lembro que em meio ao quintal lá de casa havia uma paineira enorme (ultrapassava em altura o primeiro andar de meu quarto)
Quando florescia, era uma glória!
Talvez fosse ela que impediu que meus sonhos de menino solitário
tenham sido todos em preto-e-branco.
Uma glória... Até que um dia
foi posta abaixo
simplesmente
porque prejudicava o desenvolvimento das árvores [frutíferas.
Ora, as árvores frutíferas!
Bem sabes, meninazinha, que os nossos olhos também precisam de alimento.
Mário Quintana

Consciência

Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas. Todos eles revelam possibilidades de chegar a ser homens, mas só quando vislumbram e aprendem a levá-las em parte à sua consciência, se é que se pode dizer que possuem uma...”
Hermann Hesse, in Demian

O encanto da novidade


“Rodolphe ouvira tantas vezes dizer tais coisas que elas nada mais tinham de original para ele. Emma assemelhava-se a todas as suas amantes; e o encanto da novidade, caindo pouco a pouco como uma veste, deixava ver a nu a eterna monotonia da paixão que sempre tem as mesmas formas e a mesma linguagem. Aquele homem tão experiente não distinguia mais a diferença dos sentimentos sob a igualdade das expressões. Porque lábios libertinos ou venais lhe haviam murmurado frases semelhantes, ele mal acreditava em sua candura; era preciso, pensava, descontar suas palavras exageradas, escondendo as afeições medíocres: como se a plenitude da alma não transbordasse algumas vezes nas metáforas mais vazias, já que ninguém pode algum dia exprimir exatamente suas necessidades ou seus conceitos, nem suas dores e já que a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos quando desejaríamos enternecer as estrelas.”
Gustave Flaubert, in Madame Bovary

O fogo sagrado

Alguns escritores entram na vida da gente com estardalhaço, arrancam portas, destroem preconceitos, iluminam regiões obscuras de nossa consciência com o poder das tempestades. Outros se instalam aos poucos, como se nos visitassem e a cada visita fossem demorando-se um pouco mais. Em lugar dos raios, trazem uma lâmpada de querosene, ou uma vela.
Friedrich Nietzsche invadiu minha adolescência com violência, estraçalhou minha fé romântica e messiânica. Mas passou, como um vento do Norte, e trouxe depois a longa chuva da melancolia. Dos escombros da fé, tratei de salvar um jeito enviesado de observar o mundo, em que misturo um niilismo reticente a um misticismo inócuo. Penso que o Nada é o destino final de todo o Universo, mas não deixo de parar, de vez em quando, em algumas estalagens que vendem ilusões de eternidade. Saio delas como o turista experimentado, consciente de ter comprado quinquilharias, mas e daí? Nas noites borrascosas, seu brilho falso sobre a cômoda será uma presença, e uma saudade.
Li Albert Camus na mesma época, imberbe, insciente da trapaça, do sabor do corpo, da satisfação do torna-viagem. Não houve espanto, mas uma ternura morna, mais uma simpatia que uma admiração. Seu estilo sóbrio e contido não encontrou eco nos meus arroubos, eu queria conhecer horizontes sombrios, como os de Dostoiévski, heroicos como os de Tolstói, delirantes como os de Edgar Allan Poe.
Depois, minhas ilusões foram se perdendo, e o argelino retornou, com um cigarro e um sorriso cínico nos lábios, a ofertar-me A queda, A peste, O estrangeiro. E descobri que era aquele o tom, o ritmo, a ambientação que eu gostaria de ter imprimido aos meus próprios textos. Como reconhecimento, coloquei o mesmo sol que bate na navalha do árabe assassinado por Meursault na foice que meu sem-terra empunha no centro da praça, em Porto Alegre, em Quem faz gemer a terra. Dois estrangeiros, sob um mesmo sol indiferente.
Só agora, quando o frio já começa a se aninhar nos meus ossos, descubro a coletânea de ensaios A inteligência e o cadafalso. Eu já conhecia O avesso e o direito, O homem revoltado, O mito de Sísifo, entre outras obras do desconfiado da vida. Reencontro a simplicidade profunda, cristalina, de que só são capazes aqueles escritores que não se deixam turvar pelos modismos e pelo desejo de parecer o que não são. O ensaio em que Albert Camus homenageia seu professor e mestre, Jean Grenier, é comovente. A descoberta da arte como um novo nascimento. “Uma frase se destaca do livro aberto, uma palavra ressoa ainda no cômodo, e de repente, em torno da palavra certa, da nota exata, as contradições se ordenam, a desordem deixa de existir. Ao mesmo tempo e já, como resposta a esta linguagem perfeita, um canto tímido, mais inábil, eleva-se na escuridão do ser.”
Por um instante, sinto-me feliz, responsável, artista. Em algum lugar, um jovem lerá este texto e sentirá dentro de si uma angústia, um sufoco, um ritmo, uma melodia. E um desejo insuperável de expressão. Na escuridão de seu ser, mais uma vez, o fogo sagrado elevará sua chama.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uso das palavras

Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas tem de significar o que há de mais discreto, de quase indizível.”
Rainer Maria Rilke, in Cartas a um jovem poeta

Neblina


A arte chinesa: já notaram que seus cenários aparecem sempre cobertos por neblinas? Estão lá porque a alma precisa delas... A vida é cheia de neblinas... Durante a Revolução Cultural, as neblinas foram proibidas. Revoluções são tempos de certezas. Palavras de ordem não toleram as brumas, pois é lá que moram os sonhos. Luminosidade total para tornar impossível sonhar. Pois os sonhos são testemunhos de que a alma se recusa a se tornar um pássaro engaiolado. Nenhum lugar protegido pela sombra, nenhum canto escuro, longe dos olhos, nenhum mistério. Visibilidade total. Os contornos devem ser definidos com clareza. Os sentidos devem ser declarados sem ambiguidades, sem intervalos em seus interstícios.
Ernst Bloch tem um denso parágrafo em que examina o sentido das utopias. Diz ele: “Se é verdade que as coisas comumente são vistas como elas são, não é, entretanto, um paradoxo absurdo colocar pelo menos uma ênfase igual no fato de poderem elas ser diferentes do que são. É por isto que a observação de Oscar Wilde de que “um mapa do mundo sem o país da Utopia não merece nem sequer uma olhadela”, não produz choque algum, exceto o choque do reconhecimento.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

Apaixonados invisíveis

Ela me visitava sem se preocupar muito com a discrição. Eu tinha consciência de que éramos descuidados, negligentes, principalmente num lugarejo como aquele. Mas não fiz nada a respeito. Dava para adivinhar que ia acontecer. No fundo, acho que torci para que acontecesse.
Schianberg escreve que é comum os amantes se tomarem por invisíveis. Apaixonados, ele diz, pensam que estão sempre a sós com o mundo. É um engano: estão apenas ofuscados pela luz que eles próprios emitem.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Vocês, os razoáveis

Oh! Essa gente sensata! - exclamei, sorrindo. - Paixão! Embriaguez! Loucura! Vocês, os razoáveis, permanecem tão calmos, tão indiferentes, condenando os bêbados, repelindo os tresloucados, e seguem seu caminho como um sacerdote e agradecem a Deus, como um fariseu, por Ele não os ter feito iguais aos outros. Mais de uma vez embriaguei-me, vivi paixões que me levaram à beira da loucura, e de nada me arrependo, pois dessa forma compreendi por que homens notáveis, de todos os tempos, que fizeram alguma coisa expressiva, alguma coisa grande, foram chamados de bêbados ou loucos. Entretanto, mesmo na vida mais comum, quando alguém realiza algo inesperado, diferente, é insuportável ouvirmos a acusação: “Esse homem está bêbado, está fora de si!”. Os homens sensatos são uma vergonha!”
Goethe, in Os sofrimentos do jovem Werther

Vegetariano

você precisa de um carro” ela disse. “você precisa de um tênis decente. Cortar o cabelo. Aparar essa barba horrível e correr. Correr, correr, o tempo passa, sabia?” e eu continuava olhando o gramado. A bola de futebol murcha ao lado do cachorro com sarna e o caminho do formigueiro levando pedaços de folhas. “você é um escritor incrível. Tens noção disso?” o pai dela abriu a porta e perguntou algo como “quer as linguiças de frango com pimenta? gosta de churrasco com molho de pimenta?” e as crianças pulavam com força na piscina. A água batia nos nossos pés junto com o sol que nos fazia lagrimar. “sei do seu romance. Tá bonito. Não precisa dedicar pra mim. Agora estou casada. Não quero que o Afrânio tenha ciúmes.” E o cheiro do churrasco enjoou meu estômago e levantei como um homem que iria morrer na guerra: “Tá bom, Vânia. Cuida-te.” E dei as costas como um filho que beija o rosto da mãe pela última vez antes de abraçar o mundo. E comecei a correr. A correr feito o retardado do Tom Hanks em Forrest Gump e senti pela primeira vez que o amor doía feito uma ferida cheia de pus e que só a literatura poderia desinflamar toda a saudade de Vânia. Até hoje passo mal com domingos e cheiro de carnes queimando. Ontem minha colega de trabalho me convidou para jantar um cordeiro em sua casa, mas fui cínico feito Judas: “desculpa, mas virei vegetariano”.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Volta em aberto


Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?
Paulo Leminski

Se tivessem sabido a tempo...

Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos, se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia.”
Gabriel García Márquez, in O amor nos tempos de cólera

Preocupação com “o que os outros vão pensar”

Outro pensamento que ajuda um escritor enquanto trabalha – deixe-o escrever seu romance “do jeito que ele gostaria de ver um romance escrito”. Isso ajuda muito a libertar você dos grilhões da dúvida de si mesmo e o tipo de falta de autoconfiança que leva a revisões demais, cálculos demais, preocupação com “o que os outros vão pensar”. Olhe para seu próprio trabalho e diga: “Este é um romance segundo o meu coração!”. Porque vai ser isso de qualquer jeito mesmo, e esse é o problema – é a preocupação que deve ser eliminada pelo bem da força individual. Apesar de todo esse conselho despreocupado, eu mesmo avancei devagar, hoje, mas não fui mal, trabalhando na versão final do capítulo. Estou um pouco enferrujado. Ah, e que grande palavrório eu poderia escrever esta manhã sobre meu temor de que não saiba escrever, de que seja ignorante e, pior de tudo, um idiota tentando fazer algo que não tenho a menor condição de fazer. Está na vontade, no coração! Pro inferno com essas dúvidas podres. Eu as desafio e cuspo nelas. Merde!
Jack Kerouac, in Diários de Jack Kerouac (1947-1954)

Os sábios têm duas línguas

Considerareis deplorável o fato do homem não ter asas para voar como os pássaros, ou quatro pés como os quadrúpedes, ou a fronte armada de chifres como o touro? Lamentareis a sorte de um belo cavalo, pelo fato de não ter aprendido gramática ou de não comer bem? Deplorareis um touro, pelo fato de não ser adestrado na palestra?
Portanto, assim como o cavalo não é infeliz por ignorar a gramática, assim também não o é o louco, pois a loucura é natural no homem. Se bem que, com Platão, o provérbio de Alcebíades diga que a verdade se encontra no vinho e nas crianças, contudo é a mim, particularmente, que convém esse elogio, porque, segundo o testemunho de Eurípedes, tudo o que o tolo encerra no coração ele o traz também impresso na cabeça e o manifesta nas palavras. Mas, os sábios, segundo o mesmo Eurípedes, têm duas línguas, uma para dizer o que pensam e a outra para falar conforme às circunstâncias: quando o querem, têm talento para fazer o preto aparecer como branco e o branco como preto, soprando com a mesma boca o calor e o frio e exprimindo com palavras exatamente o contrário do que sentem no peito.”

Erasmo de Rotterdam, in Elogio da loucura

Redes sociais e a ilusão dos milhares de amigos



O que alguns já desconfiavam agora foi referendado por um estudo. As redes sociais não nos permitem ter mais amigos, revela trabalho publicado na revista da Royal Society Open Science. O amigo aí, claro, é o “aliado, concorde. Caro, complacente, dileto, favorável. Dedicado, afeiçoado”, como está no dicionário, porque “seguidor” se chega fácil aos milhares.
Por outro lado, as redes possibilitaram conhecer melhor algumas pessoas que nos pareciam simpáticas, pluralistas e democráticas e se apresentam online exatamente o contrário de tudo isso. Você custa a acreditar na mudança e fica sem saber muito bem o que fazer diante da nova situação.

Segundo o estudo, o número máximo de pessoas com as quais nós podemos ter relações sinceras e fortes gira em torno de 150. Eu acho esse número exagerado. Talvez 15 esteja mais próximo da realidade. E dentre esses uns dois, três com os quais você pode contar para o que der e vier.

charge

Há poucos dias eu tomava café com duas queridas amigas e falamos, entre tantas outras coisas, sobre a relação entre redes sociais, solidão e relacionamento afetivo. E eu lembrei e inclui na conversa, de raspão porque a conversa fluía leve e solta, referência à “sociedade líquida” do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Tenho dúvidas sobre se as redes são vilãs de tantas e variadas coisas como muita gente aponta. Inclusive Bauman. Uma das amigas levantou uma questão pertinente. A de que é preciso prudência com explicações e teorias sobre acontecimentos em curso. A Internet ainda é muita recente para conclusões cabais.
Solitários, intolerantes misantropos, neuróticos, agressivos e separações, encontros e desencontros sempre existiram. O que ocorreu é que as redes deram mais visibilidade a essas questões, que sempre rendem muitas “curtidas” e “compartilhamentos” e acabaram migrando para a vida real. Eu poderia citar como exemplo, ocorrido há pouco, a exibição de três peças teatrais na cidade (comentei-as aqui mesmo) que tratam de… relacionamentos amorosos.
Outro aspecto que alguns teóricos já estão levantando é se a essa altura ainda cabe separar os mundos real e virtual. Se já não são uma única coisa.
O mundo mudou muito e rapidamente e levou tudo de roldão. E o que estamos vivendo hoje não pode ser explicado sem levar em conta essas mudanças profundas. Nesse contexto eu destacaria pelos menos duas mudanças que alteraram significativamente a sociedade: o feminismo e as independências emocional e financeira das pessoas.
Homens e mulheres, até bem pouco tempo, em nome de valores e também devido à dependência financeira, suportavam durante anos e até para sempre relacionamentos completamente inviáveis e dolorosos, com consequências desastrosas no entorno. Essa era que você viveu acabou, viu mamãe! E não deixou saudade. Se essa mudança é parte da tal “sociedade líquida” então que seja bem vinda.
Nesse novo tempo que está sendo engendrado, as pessoas brutas, insensíveis, agressivas, neuróticas, homofóbicas, machistas etc terão de reinventar-se – terapia ajuda – ou ficarão falando sozinhas, no seu mundinho real/virtual.
Tácito Costa, in www.substantivoplural.com.br

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A condição humana universal

Kierkegaard dizia que algumas pessoas têm duplo desespero, isto é, estão desesperadas, mas nem sabem. Você deve estar nesse desespero duplo. Quero dizer o seguinte: grande parte do sofrimento de uma pessoa vem por sentir desejo, realizá-lo, ter um instante de saciedade que logo se transforma em tédio e, por sua vez, é interrompido pelo surgimento de outro desejo. Schopenhauer achava que era essa a condição humana universal: desejar, saciar-se, entediar-se e desejar outra vez.”
Irvin D. Yalom, in A Cura de Schopenhauer

Meninos

“Você não devia engolir cliché porque colava nas tripas. Não devia fazer careta porque poderia bater um vento e você ficaria com o rosto deformado para sempre. Pé no chão em ladrilho: pneumonia. Melancia com leite: morte. Banho depois de comer: congestão. O menino não sabia o que teria sido dele se não fosse a sabedoria transmitida pelos pais. Que obviamente sabiam do que estavam falando e o que era preciso para sobreviver. Estavam vivos, não estavam?
Foi o Remi que teve a ideia da cabana. A cabana seria o mundo secreto deles. O Clube da Sacanagem. Ninguém precisaria saber o que acontecia ali dentro. Nem dos cigarros, nem das revistinhas, nem das conversas, nem das eventuais visitas de sócias convidadas, caso aceitassem o convite. Mas a primeira coisa que o menino fez dentro da cabana foi comer melancia com leite e não morrer.”
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

O cético

Nenhum homem acredita piamente em nenhum outro homem. Pode-se acreditar piamente numa ideia, mas não em um homem. No mais alto grau de confiança que ele pode despertar, haverá sempre o aroma da dúvida — uma sensação meio instintiva e meio lógica de que, no fim das contas, o vigarista deve ter um ás escondido na manga. Esta dúvida, como parece óbvio, é sempre mais do que justificada, porque ainda não nasceu o homem merecedor de confiança ilimitada — sua traição, no máximo, espera apenas por uma tentação suficiente. O problema do mundo não é o de que os homens sejam muito suspeitos neste sentido, mas o de que tendem a ser confiantes demais — e de que ainda confiam demais em outros homens, mesmo depois de amargas experiências. Acredito que as mulheres sejam sabiamente menos sentimentais, tanto nisto como em outras coisas. Nenhuma mulher casada põe a mão no fogo por seu marido, nem age como se confiasse nele. Sua principal certeza assemelha-se à de um batedor de carteiras: a de que o guarda que o flagrou poderá ser subornado.
H. L. Mencken, in O livro dos insultos

Crônica da cidade de Bogotá

Quando as cortinas baixavam a cada fim de noite, Patricia Ariza, marcada para morrer, fechava os olhos. Em silêncio agradecia os aplausos do público e também agradecia outro dia de vida roubado da morte.
Patricia estava na lista dos condenados, por pensar à esquerda e viver de frente; e as sentenças estavam sendo executadas, implacavelmente, uma após a outra.
Até sem casa ela ficou. Uma bomba podia acabar com o edifício: os vizinhos, respeitadores da lei do silêncio, exigiram que ela se mudasse.
Patricia andava com um colete à prova de balas pelas ruas de Bogotá. Não tinha outro jeito; mas era um colete triste e feio. Um dia, Patricia pregou no colete algumas lantejoulas, e em outro dia bordou umas flores coloridas, flores que desciam feito chuva sobre seus peitos, e assim o colete foi por ela alegrado e enfeitado, e seja como for conseguiu acostumar-se a usá-lo sempre, e já não o tirava nem mesmo no palco.
Quando Patricia viajou para fora da Colômbia, para atuar em teatros europeus, ofereceu o colete antibalas a um camponês chamado Julio Cañón.
Julio Cañón, prefeito do povoado de Vista-hermosa, tinha perdido à bala a família inteira, só como advertência, mas negou-se a usar o colete florido:
Eu não uso coisas de mulheres – disse.
Com uma tesoura, Patricia arrancou os brilhos e as cores, e então o colete foi aceito pelo homem.
Naquela mesma noite ele foi crivado de balas. Com colete e tudo.
Eduardo Galeano, in Mulheres

Canino

Ando triste por umas coisas. Não no sentido literário. Minha literatura anda bem. Nunca fui tão lido e tão pobre. Hoje saí de madrugada e parei num barzinho 24 horas e comprei uma garrafa de conhaque seresteiro. Fiquei na minha. Calado. Às vezes é bom ficar calado. É como limpar as lentes do binóculo. Calado as coisas se desenham melhor. E foi o que fiz. Sentei na última mesa e fiquei bebendo na manha até uma porrada se instalar e tirar a minha paz. Não me manifestei. Só observei os socos e pontapés. Aí o tempo passou. A claridade começou a estuprar as janelas e na hora de amarrar os cadarços e dar o fora, um dente, Isso mesmo. Vejo um canino intacto perto de mim. Peguei o bicho. Limpei o sangue e guardei no bolso e saí caminhando assobiando uma canção do Tom Zé. Aquela que fala da “menina Jesus”. Uma linda canção. Lirismo puro. Aí antes de acender meu último cigarro, vejo o cara que apanhou na briga chorando sentado no banco da parada de ônibus: “E agora, Jesus? Minha mulher vai me expulsar de casa. Ele não vai aguentar um bêbado banguela”. Tiro o dente do bolso e falo pra ele: “Calma. Taqui teu dente, cara. Um implante custa 800 reais em qualquer consultório dentário. Chega em casa e dá um beijo na testa dela”. O cara abriu um sorriso com os lábios inchados e me deu um abraço demorado. Deus deve ter aberto um sorriso também. A alma de Deus não tem dentes.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

Nada é impossível de mudar

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
Bertolt Brecht

Morte de um pássaro (Réquiem para Federico García Lorca)


Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliquescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. Aquela madrugada que raiava para presenciar sua morte, não tinha sido ela sempre a sua grande amiga? Não ficara ela tantas vezes a escutar suas canções de silêncio? Por que o haviam arrancado a seu sono povoado de aves brancas e feito marchar em meio a outros homens de barba rude e olhar escuro?
Pensou em fugir, em correr doidamente para a aurora, em bater asas inexistentes até voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caçadores maus que o confundiam com o milhafre, ele cuja única missão era cantar a beleza das coisas naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.
Mas permaneceu em sua atonia, sem acreditar bem que aquilo tudo estivesse acontecendo. Era, por certo, um mal-entendido. Dentro em pouco chegaria a ordem para soltá-lo, e aqueles mesmos homens que o miravam com ruim catadura chegariam até ele rindo risos francos e, de braços dados, iriam todos beber manzanilla numa tasca qualquer, e cantariam canções de cante-hondo até que a noite viesse recolher seus corpos bêbados em sua negra, maternal mantilha.
As ordens, no entanto, foram rápidas. O grupo foi levado, a coronhadas e empurrões, até a vala comum aberta, e os nodosos pescoços penderam no desalento final. Lábios partiram-se em adeuses, murmurando marias e consuelos. Só sua cabeça movia-se para todos os lados, num movimento de busca e negação, como a do pássaro frágil na mão do armadilheiro impiedoso. O sangue cantava-lhe aos ouvidos, o sangue que fora a seiva mais viva de sua poesia, o sangue que tinha visto e que não quisera ver, o sangue de sua Espanha louca e lúcida, o sangue das paixões desencadeadas, o sangue de Ignácio Sánchez Mejías, o sangue das bodas de sangre, o sangue dos homens que morrem para que nasça um mundo sem violência. Por um segundo passou-lhe a visão de seus amigos distantes. Alberti, Neruda, Manolo Ortiz, Bergamín, Delia, María Rosa - e a minha própria visão, a do poeta brasileiro que teria sido como um irmão seu e que dele viria a receber o legado de todos esses amigos exemplares, e que com ele teria passado noites a tocar guitarra, a se trocarem canções pungentes.
Sim, teve medo. E quem, em seu lugar, não o teria? Ele não nascera para morrer assim, para morrer antes de sua própria morte. Nascera para a vida e suas dádivas mais ardentes, num mundo de poesia e música, configurado na face da mulher, na face do amigo e na face do povo. Se tivesse tido tempo de correr pela campina, seu corpo de poeta-pássaro ter-se-ia certamente libertado das contingências físicas e alçado voo para os espaços além; pois tal era sua ânsia de viver para poder cantar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o amor, o grande amor que era nele sentimento de permanência e sensação de eternidade.
Mas foram apenas outros pássaros, seus irmãos, que voaram assustados dentro da luz da antemanhã, quando os tiros do pelotão de morte soaram no silêncio da madrugada.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

Viva por enquanto as perguntas

Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta.”
Rainer Maria Rilke, in Cartas a um jovem poeta

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O homem vive provisoriamente

No fim da vida, a maioria dos homens percebe, surpresa, que viveu provisoriamente e que as coisas que largou como sem graça ou sem interesse eram, justamente, a vida. E assim, traído pela esperança, o homem dança nos braços da morte.”
Arthur Schopenhauer, in Parerga e Paralipomena

Ela é


June não tem ideias ou fantasias próprias. Elas lhe são dadas por outros que são inspirados por seu ser. Hugo diz com irritação que ela é uma caixa vazia e que eu sou a caixa cheia. Mas quem quer as ideias, as fantasias, os conteúdos, se a caixa é bela e inspiradora? Sou inspirada por June, a caixa vazia. Pensar nela no meio do dia me eleva da vida comum. O mundo nunca foi tão vazio para mim desde que a conheci. June fornece a carne bela, incandescente, a voz fulgurante, os olhos inescrutáveis, os gestos drogados, a presença, o corpo, a imagem encarnada de nossas imaginações. O que somos nós? Apenas os criadores. Ela é.”
Ans Nin, in Henry e June

Um leitor voraz

Foi seu último livro completo. Tinha sido um leitor de voracidade imperturbável, tanto nas tréguas das batalhas como nos repousos do amor, mas sem ordem nem método. Lia a toda hora, com a luz que houvesse, ora passeando debaixo das árvores, ora a cavalo sob os sóis equatoriais, ora na penumbra dos coches trepidantes sobre os calçamentos de pedra, ora balouçando na rede enquanto ditava uma carta. Um livreiro de Lima se surpreendera com a abundância e a variedade das obras que selecionou de um catálogo geral onde havia desde os filósofos gregos até um tratado de quiromancia. Na juventude lera os românticos por influência de um professor Simon Rodríguez, e continuou a devorá-los como se estivesse lendo a si mesmo com seu temperamento idealista e exaltado. Foram leituras passionais que o marcaram para o resto da vida. No fim havia lido tudo o que lhe caíra nas mãos, e não teve um autor predileto, mas muitos que o foram em diferentes épocas. As estantes das diversas casas onde viveu estiveram sempre abarrotadas, e os dormitórios e corredores acabavam convertidos em desfiladeiros de livros amontoados e montanhas de documentos errantes que proliferavam à sua passagem e o perseguiam sem misericórdia buscando a paz dos arquivos. Nunca chegou a ler tantos livros quantos possuía. Ao mudar de cidade entregava-os aos cuidados dos amigos de mais confiança, embora nunca voltasse a ter notícia deles, e a vida de guerra o obrigou a deixar um rastro de mais de quatrocentas léguas de livros e papéis, da Bolívia à Venezuela.”
    Gabriel García Márquez, in O general em seu labirinto

Toda memória é ficcional

A memória é o nosso grande lugar. Na memória tem tanto o que vivi quanto o que sonhei ter vivido. Não acredito em memória pura. Toda memória é ficcional. É um pedaço da memória com mais um pedaço da fantasia. A fantasia é o que temos de mais real dentro de nós. A fantasia é a minha verdade mais profunda. A fantasia é aquilo que não conto para ninguém, só para as pessoas que amo muito. Ela é tão verdadeira que quando vou contar essa fantasia, faço uma metáfora para protegê-la. Pois a fantasia é o que tenho de mais profundo dentro de mim. É o meu real mais absoluto. Não existe uma memória pura, toda memória é ficcional. Precisamos tomar posse da fantasia. Todo real é uma fantasia que ganhou corpo. O que põe o novo no mundo é a fantasia. Uma escola nova é uma escola que cultiva a fantasia. Se ela ficar só na tradição, ela só fica na repetição. Ela não instala o novo. É a fantasia que inaugura o novo no mundo. Há cem anos, voar era uma fantasia do Santos Dumont. É preciso saber se quero uma sociedade nova. Preciso de uma escola fantasiosa e convidar a criança para deixar a fantasia vir à tona.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Palestra no Teatro do Paiol, Curitiba – PR

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Autômatos

De acordo com os psicólogos, há momentos em que o desejo do pecado, domina de tal modo a nossa natureza, que cada fibra do corpo e cada célula do cérebro parecem ser movidos por impulsos terríveis. Em tais momentos, os homens e as mulheres perdem a sua liberdade e seu arbítrio. Dirigem-se como autômatos para seu fatal objetivo. O direito de escolher lhes é recusado e sua consciência está morta, ou, se ainda vive, é somente para emprestar atrativos à rebelião e encanto à desobediência.”
Oscar Wilde, in O retrato de Dorian Gray

Família: supremo tributo

Como indivíduos podemos escolher as nossas relações entre pessoas de nossa preferência, do mesmo gosto, com os mesmos interesses, mesmo nível cultural e até na mesma faixa de idade. Na família é que somos obrigados a enfrentar diferenças essenciais ao ser humano. (…) Pela família pagamos um supremo tributo à condição humana, ao parto, à doença, à roupa suja, à mediocridade de nós mesmos, à morte. A família nos lembra sempre que viemos do pó, a ele voltaremos e, pior, temos que limpá-lo dos móveis todo dia.”
Millôr Fernandes, in É…

O homem mais veloz da Terra

Google Imagens

Era 1936. A Olimpíada. Os jogos de Hitler. Jesse Owens acabara de completar o revezamento 4 X 100 e conquistara sua quarta medalha de ouro. A história de que ele era subumano, por ser negro, e da recusa de Hitler a lhe apertar a mão foi alardeada pelo mundo afora. Até os alemães mais racistas ficaram admirados com os esforços de Owens, e a notícia de sua proeza vazou pelas brechas. Ninguém ficou mais impressionado do que Rudy Steiner. Todos os seus familiares estavam amontoados na sala da família quando ele se esgueirou para a cozinha. Tirou um pouco de carvão do fogão e segurou as pedras nas mãozinhas miúdas. “É agora.” Veio o sorriso. Ele estava pronto. Esfregou bem o carvão no corpo, numa camada espessa, até ficar coberto de preto. Até no cabelo deu uma esfregada. Na janela, o menino deu um sorriso quase maníaco para seu reflexo e, de short e camiseta, surrupiou silenciosamente a bicicleta do irmão mais velho e saiu pedalando pela rua, em direção ao Oval Hubert. Escondera num dos bolsos uns pedaços extras de carvão, para o caso de parte dele sair, mais tarde. Na cabeça de Liesel, a Lua estava costurada no céu naquela noite. Com nuvens pespontadas em volta dela. A bicicleta enferrujada parou com um tranco na cerca do Oval Hubert, que Rudy escalou. Desceu do outro lado e foi saltitando, desajeitado, até o começo dos cem metros. Com entusiasmo, fez uma série de alongamentos pavorosos. Cavou buracos para a partida na terra. A espera de seu momento, andou de um lado para outro, reunindo a concentração sob o céu de trevas, com a Lua e as nuvens vigiando, tensas. — Owens está com pinta de vencedor — começou a comentar. — Esta talvez seja sua maior vitória em todos os tempos… Apertou as mãos imaginárias dos outros atletas e lhes desejou boa sorte, muito embora soubesse. Eles não tinham a menor chance. O juiz da largada fez sinal para que os atletas avançassem. Uma multidão materializou-se em cada centímetro quadrado da circunferência do Oval Hubert. Todos gritavam uma coisa só. Entoavam o nome de Rudy Steiner — e seu nome era Jesse Owens. Calaram-se todos. Os pés descalços do menino agarraram o chão. Ele podia sentir a terra grudada entre os dedos. Ao comando do juiz de largada, assumiu a posição — e a pistola abriu um buraco na noite. No primeiro terço da corrida, foi tudo bastante equilibrado, mas era só uma questão de tempo para que o Owens encarvoado se livrasse e ampliasse a vantagem. — Owens na frente —gritou a voz esganiçada do menino, enquanto ele corria pela pista deserta, diretamente em direção aos aplausos retumbantes da glória olímpica. Chegou até a sentir a fita romper-se em duas em seu peito, ao atravessá-la em primeiro lugar. O homem mais veloz da Terra.”
Markus Zusak, in A menina que roubava livros

O homem

Que é o homem, esse semideus tão enaltecido? Não lhe faltam forças precisamente quando lhe são necessárias? Seja quando manifeste a alegria ou mergulhe na dor, não é bruscamente detido, bruscamente levado de volta ao sentimento frio e limitado de si mesmo, no momento em que aspirava perder-se na vastidão do infinito?”
Goethe, in Os sofrimentos do jovem Werther

Setas para o invisível

O excesso de luz cega a vista.
O excesso de som ensurdece o ouvido.
Condimentos em demais estragam o gosto.
O ímpeto das paixões perturba o coração.
A cobiça do impossível destrói a ética.
Por isso, o sábio em sua alma
Determina a medida de cada coisa.
Todas as coisas visíveis lhe são apenas
Setas que apontam para o Invisível.”
Tao-Te King, Lao-Tsé

domingo, 24 de janeiro de 2016

O conhecimento e a estupidez

Num jantar, um jovem perguntou algo ao filósofo e teve como resposta apenas  'Não sei'. O jovem então comentou: - Ora, pensei que o senhor, um grande sábio, soubesse tudo. Schopenhauer disse então: - Não, o conhecimento é limitado. Só a estupidez é ilimitada.”
Irvin D. Yalom, in A cura de Schopenhauer

Esperando um acontecimento

No fundo da alma, todavia, esperava um acontecimento. Como os marinheiros angustiados, lançava sobre a solidão de sua vida olhos desesperados, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia qual seria aquele acaso, o vento que o empurraria até ela, para que margens ele a levaria, se seria uma chalupa ou um navio de três pontes, carregado de angústias ou cheio de felicidade até as escotilhas. Mas, cada manhã, ao acordar, esperava-o para aquele mesmo dia e escutava todos os ruídos, levantava-se sobressaltada, espantava-se por ele não chegar; depois, ao anoitecer, cada vez mais triste, desejava já estar no dia seguinte”.
Gustave Flaubert, in Madame Bovary

A cura da loucura

Um grego, de cujo nome não me recordo, era do mesmo parecer, e a sua história é tão engraçada que eu até quero contá-la. Esse homem era louco de todas as formas: desde manhã muito cedo até tarde da noite, ficava sentado sozinho no teatro e, imaginando que assistia a uma magnífica representação, embora na realidade nada se representasse, ria, aplaudia e divertia-se à grande. Fora dessa loucura, ele era, em tudo o mais, uma ótima pessoa: complacente e fiel com os amigos; terno, cortês, condescendente com a mulher; indulgente com os escravos, não se enfurecendo quando via quebrar-se uma garrafa. Seus parentes deram-se ao incômodo de curá-lo com heléboro; mal, porém, ele voltou ao estado que impropriamente se chama de bom senso, dirigiu-lhe esta bela e sensata apóstrofe: “Meus caros amigos, que fizeram vocês? Pretendem ter-me curado e, no entanto, mataram-me; para mim, acabaram-se os prazeres: vocês me tiraram uma ilusão que constituía toda a minha felicidade”. Tinha sobras de razão esse convalescente, e os que, por meio da arte médica, julgaram curá-lo, como de um mal, de tão feliz e agradável loucura, mostraram precisar mais do que ele de uma boa dose de heléboro.”
Erasmo de Rotterdam, in Elogio da Loucura

Humano

Sou humano, e nada do que é humano me é estranho.”
Terêncio

sábado, 23 de janeiro de 2016

Chuva


Escrevo-te agora porque a Internet caiu mais cedo. Um temporal derrubou a cruz da igreja e a correnteza da enchente fez com que uma criança sumisse nos bueiros do bairro. Sinto sua falta. A saudade lateja mais que minha dor de dente. Lembro-me daquela vez que você encostou a cabeça no meu peito de metalúrgico grevista e começou a chorar mornamente sem parar falando do irmão que morreu de AIDS e da mãe que enlouqueceu de tanto tomar tranquilizantes. Escrevo-te agora porque acabo de escrever um poema lindo do jeito que gostavas de ler sentada no trono do banheiro. Lia alto que da cozinha escutava suas gargalhadas de atriz de ópera. Escrevo-te agora porque todas as cartas que escrevi voltaram (até o carteiro sente pena de mim). Escrevo-te agora porque escrevi seu nome no meu último cigarro do maço e fumei lentamente até a chuva passar.
Diego Moraes, in Meu coração é um bar vazio tocando Belchior