quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Lembranças da fazenda

Na fazenda havia muitos patos. As patas sumiam, iam fazer seus ninhos numa ilha lá em cima. Quando os patinhos nasciam, elas desciam o rio à frente de suas pequenas esquadrilhas amarelas e aportavam gloriosas no terreiro da fazenda. Apareceu uma romã de-vez com sinal de mordida de criança. Um menino foi acusado. Negou. A prima já moça pegou a romã, meteu na boca do menino, disse que os sinais dos dentes coincidiam. O menino continuou negando, fez má-criação, foi preso na despensa. Ficou chorando, batendo na porta como um desesperado para que o tirassem daquele lugar escuro. Ninguém o tirava. Então começou, em um acesso de raiva, a derrubar no chão sacos de milho e arroz. Estranharam que ele não estivesse mais batendo, e abriram a porta. Escapou com a violência de uma fera acuada que empreende uma surtida.
As primas da roça passavam no meio da boiada sem medo nenhum, mas os meninos da cidade ficavam olhando a cara dos bois e achavam que os bois estavam olhando para eles com más intenções. A linguagem crua das moças da roça sobre a reprodução dos animais os assustava.
Na outra fazenda havia um córrego perdido entre margens fofas de capim crescido. O menino foi tomar banho, voltou com cinco sanguessugas pegadas no corpo. Havia um carpinteiro chamado “seu” Roque e uma grande mó de pedra no moinho de fubá onde a água passava chorando. Quando pararam o moinho, veio um silêncio pesado e grosso dos morros em volta e caiu sobre todas as coisas.
Gosto lento de descascar cana e chupar cana. A garapa escorrendo grossa de uma bica de lata da engenhoca. O café secando no terreiro de terra batida. Mulheres de panos na cabeça trabalhando na roça. O homem doente deitado gemendo no paiol de milho. Havia um pari, onde se ia toda manhã bem cedo pisar as pedras limosas na água tão fria, apanhar peixes.
A estrada onde se ia a cavalo, a estrada úmida aberta de pouco no seio escuro da mata. A lembrança do primo que caiu do cavalo, foi arrastado com um pé preso no estribo mexicano, a cabeça se arrebentando nas pedras.
Defronte da fazenda havia uma pedra grande, imensa, escura, onde de tarde, no verão, se ajuntavam nuvens pretas e depois relampejava e trovoava e chovia com estrondo uma chuva grossa que acabava meia hora antes da hora de o sol descer, e então os meninos saíam da varanda da fazenda e iam correr no pasto molhado.
A travessia do ribeirão no lugar fundo que não dava pé, debaixo da ponte, a água escura e grossa, o medo de morrer. O jacaré pequeno que uma roda do carro de boi pegou. Os bois atravessando o rio a nado, o menino a cavalo confiante no seu cavalo nadador. As balsas lentas, as canoas escuras e compridas, pássaros tontos batendo com o peito na parede e morrendo, gaviões súbitos carregando pintos, a história da onça que veio até o porão.
E subir morro e descer morro com espingarda na mão, e a cobra vista de repente e os mosquitos de tarde e o bambual na beira do rio com rolinhas ciscando. Os bois curados com creolina, as vacas mugindo longe dos bezerros, o leite quentinho bebido de manhã, a terra vermelha dos barrancos, a terra preta onde se cava minhoca, a tempestade no milharal, o calor e a tonteira da primeira cachaça, e os pecados cometidos atrás do morro com tanta inocência animal.
E, de repente, uma paixão.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

É proibido

É proibido chorar sem aprender,
Levantar-se um dia sem saber o que fazer
Ter medo de suas lembranças.
É proibido não rir dos problemas
Não lutar pelo que se quer,
Abandonar tudo por medo,
Não transformar sonhos em realidade.
É proibido não demonstrar amor
Fazer com que alguém pague por tuas dúvidas e mau-humor.
É proibido deixar os amigos
Não tentar compreender o que viveram juntos
Chamá-los somente quando necessita deles.
É proibido não ser você mesmo diante das pessoas,
Fingir que elas não te importam,
Ser gentil só para que se lembrem de você,
Esquecer aqueles que gostam de você.
É proibido não fazer as coisas por si mesmo,
Não crer em Deus e fazer seu destino,
Ter medo da vida e de seus compromissos,
Não viver cada dia como se fosse um último suspiro.
É proibido sentir saudades de alguém sem se alegrar,
Esquecer seus olhos, seu sorriso, só porque seus caminhos se desencontraram,
Esquecer seu passado e pagá-lo com seu presente.
É proibido não tentar compreender as pessoas,
Pensar que as vidas deles valem mais que a sua,
Não saber que cada um tem seu caminho e sua sorte.
É proibido não criar sua história,
Deixar de dar graças a Deus por sua vida,
Não ter um momento para quem necessita de você,
Não compreender que o que a vida te dá, também te tira.
É proibido não buscar a felicidade,
Não viver sua vida com uma atitude positiva,
Não pensar que podemos ser melhores,
Não sentir que sem você este mundo não seria igual.
Pablo Neruda

A irrealidade do realismo

Traduzo um trecho de um artigo de Struthers Burt sobre a irrealidade do realismo.

Existe essa coisa como realismo no escrever, ou em outra espécie de arte, e o realismo em arte é possível? Não será a palavra ‘realismo’ em si mesma uma contradição quando aplicada a qualquer forma de arte, quer forma de expressão humana consciente e controlada? Pode-se também dizer que essa palavra está em contradição quando aplicada mesmo na suposta descrição de fatos numa coluna de jornal ou numa reportagem. O que é arte? Será a expressão humana consciente, controlada e dirigida em todas as suas miríades de manifestações, em nível alto ou baixo, movimentado ou parado, com ou sem valor, permanente ou efêmero? E o que é realismo? “Esta é uma pergunta grande, porque o que nós estamos perguntando é o que é a vida? E tendo decidido – o que não conseguimos – estamos fazendo a nós mesmos uma pergunta igualmente grande. Qual é a relação entre a arte e a vida? Qual a conexão? o cordão umbilical? E por que a arte pula da vida? e quase no mesmo tempo? e inevitavelmente? Porque nada é mais claro, ou mais provado pela História e pela Antropologia, que o homem, mal começa a sê-lo, exibe a urgência de se exprimir artisticamente. Não estava satisfeito com a forma das coisas como são, e começava a moldá-las cruamente. Depois de um tempo – em comparativamente o pequeno espaço de algumas centenas de milhares ou milhões de anos – tornou-se bastante bom, começou a pintar em paredes, a escavar intricados desenhos em ossos.”
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

O poder maior

Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba.”
Padre Antônio Vieira, in Sermões

Causos

Nos antigamentes, dom Verídico semeou casas e gentes em volta do botequim El Resorte, para que o botequim não se sentisse sozinho. Este causo aconteceu, dizem por aí, no povoado por ele nascido.
E dizem por aí que ali havia um tesouro, escondido na casa de um velhinho todo mequetrefe.
Uma vez por mês, o velhinho, que estava nas últimas, se levantava da cama e ia receber a pensão.
Aproveitando a ausência, alguns ladrões, vindos de Montevidéu, invadiram a casa.
Os ladrões buscaram e buscaram o tesouro em cada canto. A única coisa que encontraram foi um baú de madeira, coberto de trapos, num canto do porão. O tremendo cadeado que o defendia resistiu, invicto, ao ataque das gazuas.
E assim, levaram o baú. Quando finalmente conseguiram abri-lo, já longe dali, descobriram que o baú estava cheio de cartas. Eram as cartas de amor que o velhinho tinha recebido ao longo de sua longa vida.
Os ladrões iam queimar as cartas. Discutiram. Finalmente, decidiram devolvê-las. Uma por uma. Uma por semana.
Desde então, ao meio-dia de cada segunda-feira, o velhinho se sentava no alto da colina. E lá esperava que aparecesse o carteiro no caminho. Mal via o cavalo, gordo de alforjes, entre as árvores, o velhinho desandava a correr. O carteiro, que já sabia, trazia sua carta nas mãos.
E até São Pedro escutava as batidas daquele coração enlouquecido de alegria por receber palavras de mulher.
Eduardo Galeano, in Mulheres

O lugar do homem na natureza

Como já disse, a teoria antropomórfica do mundo revelou-se absurda diante da moderna biologia — o que não quer dizer, naturalmente, que um dia a tal teoria será abandonada pela grande maioria dos homens. Ao contrário, estes a abraçarão à medida que ela se tornar cada vez mais duvidosa. De fato, hoje, a teoria antropomórfica ainda é mais adotada do que nas eras de obscurantismo, quando a doutrina de que o homem era um quase-Deus foi no mínimo aperfeiçoada pela doutrina de que as mulheres eram inferiores. O que mais está por trás da caridade, da filantropia, do pacifismo, da “inspiração” e do resto dos atuais sentimentalismos? Uma por uma, todas estas tolices são baseadas na noção de que o homem é um animal glorioso e indescritível, e que sua contínua existência no mundo deve ser facilitada e assegurada. Mas esta ideia é obviamente uma estupidez. No que se refere aos animais, mesmo num espaço tão limitado como o nosso mundo, o homem é tosco e ridículo. Poucos bichos são tão estúpidos ou covardes quanto o homem.
O mais vira-lata dos cães tem sentidos mais agudos e é infinitamente mais corajoso, para não dizer mais honesto e confiável. As formigas e abelhas são, de várias formas, mais inteligentes e engenhosas; tocam para a frente seus sistemas de governo com muito menos arranca-rabos, desperdícios e imbecilidades. O leão é mais bonito, digno e majestoso. O antílope é infinitamente mais rápido e gracioso. Qualquer gato doméstico comum é mais limpo. O cavalo, mesmo suado do trabalho, cheira melhor. O gorila é mais gentil com seus filhotes e mais fiel à companheira. O boi e o asno são mais produtivos e serenos. Mas, acima de tudo, o homem é deficiente em coragem, talvez a mais nobre de todas as qualidades. Seu pavor mortal não se limita a todos os animais do seu próprio peso ou mesmo da metade do seu peso — exceto uns poucos que ele degradou por cruzamentos artificiais —, seu pavor mortal é também daqueles da sua própria espécie — e não apenas de seus punhos e pés, mas até de suas risotas.
Nenhum outro animal é tão incompetente para se adaptar ao seu próprio ambiente. A criança, quando vem ao mundo, é tão frágil que, se for deixada sozinha por aí durante dias, infalivelmente morrerá, e essa enfermidade congênita, embora mais ou menos disfarçada depois, continuará até a morte. O homem adoece mais do que qualquer outro animal, tanto em seu estado selvagem quanto abrigado pela civilização. Sofre de uma variedade maior de doenças e com mais frequência. Cansa-se ou fere-se com mais facilidade. Finalmente, morre de forma horrível e geralmente mais cedo. Praticamente todos os outros vertebrados superiores, pelo menos em seu ambiente selvagem, vivem e retêm suas faculdades por muito mais tempo. Mesmo os macacos antropóides estão bem à frente de seus primos humanos. Um orangotango casa-se aos sete ou oito anos de idade, constrói uma família de setenta ou oitenta filhos, e continua tão vigoroso e sadio aos oitenta quanto um europeu de 45 anos.
Todos os erros e incompetências do Criador chegaram ao seu clímax no homem. Como peça de um mecanismo, o homem é o pior de todos; comparados com ele, até um salmão ou um estafilococo são máquinas sólidas e eficientes. O homem transporta os piores rins conhecidos da zoologia comparativa, os piores pulmões e o pior coração. Seus olhos, considerando-se o trabalho que são obrigados a desempenhar, são menos eficientes do que o olho de uma minhoca; o Criador de tal aparato ótico, capaz de fabricar um instrumento tão cambeta, deveria ser surrado por seus fregueses. Ao contrário de todos os animais, terrestres, celestes ou marinhos, o homem é incapaz, por natureza, de deixar o mundo em que habita [1919 (N. T.)]. Precisa vestir-se, proteger-se e armar-se para sobreviver. Está eternamente na posição de uma tartaruga que nasceu sem o casco, um cachorro sem pelos ou um peixe sem barbatanas. Sem sua pesada e desajeitada carapaça, torna-se indefeso até contra as moscas. E Deus não lhe concedeu nem um rabo para espantá-las.
Vou chegar agora a um ponto de inquestionável superioridade natural do homem: ele tem alma. É isto que o separa de todos os outros animais e o torna, de certa maneira, senhor deles. A exata natureza de tal alma vem sendo discutida há milhares de anos, mas é possível falar com autoridade a respeito de sua função. A qual seria a de fazer o homem entrar em contato direto com Deus, torná-lo consciente de Deus e, principalmente, torná-lo parecido com Deus, Bem, considere o colossal fracasso desta tentativa. Se presumirmos que o homem realmente se parece com Deus, somos levados à inevitável conclusão de que Deus é um covarde, um idiota e um pilantra. E, se presumirmos que o homem, depois de todos esses anos, não se parece com Deus, então fica claro imediatamente que a alma é uma máquina tão ineficiente quanto o fígado ou as amígdalas, e que o homem poderia passar sem ela, assim como o chimpanzé, indubitavelmente, passa muito bem sem alma.
Pois é este o caso. O único efeito prático de se ter uma alma é o de que ela infla o homem com vaidades antropomórficas e antropocêntricas — em suma, com superstições arrogantes e presunçosas. Ele se empertiga e se empluma só porque tem alma — e subestima o fato de que ela não funciona. Assim, ele é o supremo palhaço da criação, o reductio ad absurdum da natureza animada. Não passa de uma vaca que acredita dar um pulo à Lua e organiza toda a sua vida sobre esta teoria. É como um sapo que se gaba de combater contra leões, voar sobre o Matterhorn ou atravessar o Helesponto. No entanto, é esta pobre besta que somos obrigados a venerar como uma pedra preciosa na testa do cosmos. É o verme que somos convidados a defender como o favorito de Deus na Terra, com todos os seus milhões de quadrúpedes muito mais bravos, nobres e decentes — seus soberbos leões, seus ágeis e galantes leopardos, seus imperiais elefantes, seus fiéis cães, seus corajosos ratos. O homem é o inseto a que nos imploram, depois de infinitos problemas, trabalho e despesas, reproduzir.
H. L. Mencken, in O livro dos insultos

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Sobre importâncias

Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que
pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais
importante do que o sol inteiro no corpo do mar.
Falou mais: que a importância de uma coisa não se
mede com fita métrica nem com balanças nem com
barômetros etc. Que a importância de uma coisa há
que ser medida pelo encantamento que a coisa produza
em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança
é mais importante para ela do que a Cordilheira dos
Andes. Que um osso é mais importante para
o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente
de macaco da era terciária é mais importante para os
arqueólogos do que a Torre Eiffel. (Veja que só um
dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre
e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é
mais importante para ela do que o Empire State
Building. Que o cu de uma formiga é mais importante
para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar
medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das
rãs nas pedras é mais importante para os músicos do
que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um
desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não
sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é
defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame
mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar
que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida
com as moscas do que com homens doutos.
Manoel de Barros

Avatares

Somos avatares da estupidez passada.”
Fernando Pessoa

Plena pausa

Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
Paulo Leminski

Heróis envelhecidos

Eddie Liu, um artista de Xangai, criou uma série curta, mas maravilhosa, que imagina o que alguns de nossos super-heróis favoritos pode parecer quando envelhecem. Na interpretação de Liu, eles tentam manter toda a majestade heroica, mas perderam algo do seu brilho jovial, que transparece no olhar.


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Fonte: www.boredpanda.com. Link aqui.

Não mande nudes, mande rosas

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Ao longo do tempo, os comportamentos e valores sofrem rupturas, permanências e novas formas de enxergar o mundo, que tanto podem promover quanto emperrar avanços sociais significativos. A aceitação de novas configurações familiares e a inclusão social de minorias, por exemplo, são exemplos claros de oxigenações bem vindas à dinâmica da vida em sociedade. Por outro lado, a supervalorização das aparências materiais e a banalização do sexo trazem consequências nocivas ao fluxo das relações e interações entre as pessoas.
Os dias estão acelerados, tornando-nos sujeitos cada vez mais apressados e assoberbados de atribulações e compromissos trabalhistas, uma vez que buscamos freneticamente a aquisição de uma qualidade de vida tão somente alicerçada sobre o consumo de bens que possam elevar nosso status social. Essa velocidade errática a que nos entregamos nos desumaniza aos poucos, pois acabamos não dispondo de tempo para prestarmos atenção às necessidades de nossos sentidos, às nossas necessidades humanas e que não estão à venda nem expostas nas vitrines do shopping.
Não prestamos mais atenção em nada de nós mesmos que não possa ser visto e admirado visualmente, como se fôssemos apenas uma carcaça oca, esquecendo-nos de que o vazio não sustenta, não acrescenta, não é. Desacostumados, portanto, a cuidar de nossos sentimentos, de nossa essência, somos incapazes de enxergar também no outro nada além do que podemos ver e tocar. Se não atentamos para os nossos sentidos, não atentaremos para os de ninguém mais.
Temos pressa para chegar ao serviço, cumprir as metas, terminar o almoço, ganhar dinheiro, pois as tarefas se acumulam intermitentemente. Enredados nesse redemoinho de compromissos inadiáveis, agregamos a interação com o próximo à lista de metas a serem cumpridas, agendando, em meio aos compromissos inadiáveis, quando possível, encontros, conversas com amigos, sexo com o parceiro. Tudo acaba virando obrigação, mas obrigação não tem nada a ver com prazer. Nessa toada, agregamos interações humanas ao rol de tarefas diárias, descaracterizando os encontros com o outro, retirando-lhes qualquer traço de prazer.
Não tendo mais tempo para o imprevisto, para paixões súbitas, olhares demorados, abraços mornos, conversa fiada, não mais nos dispomos às interações que não sejam superficiais, ao descobrir e ser descoberto, ao despertar das paixões, a tudo que necessita de demora, contemplação e entrega incondicional. Se estamos condicionados aos objetivos a serem cumpridos, não nos lançamos ao incerto, ao que não tem preço, ao que não depende de aparências visíveis. Como não damos atenção ao que sentimos, estamos fechados aos sentimentos alheios. E assim vamos nos afastando das trocas, dos relacionamentos sinceros e da cota de humanização que nos resta.
Essa pressa que nos conduz e desumaniza perpetua-se e encontra terreno perfeito na velocidade célere proporcionada pela internet. A interação virtual é rápida, fria e manipulável, um lugar onde podemos ser quem quisermos, falar sem censura e repreensão de olhares alheios. Nas redes sociais, podemos fantasiar à vontade, ter o corpo perfeito que todos desejam, esconder o rosto e nos exibir pela webcam. Com isso, os relacionamentos vão dispensando o toque de peles, a troca de calor, o conquistar e cativar, o entrelaçar das mãos e demais preliminares que deveriam anteceder a entrega total - caso não se procure o sexo casual, o qual às vezes pode ser a resposta ao que se quer naquele momento.
As amizades e o amor não são instantâneos, não ficam prontos em cinco minutos, não podem ser comprados, tampouco parcelados em dez vezes no cartão de crédito, pois demandam tempo e disposição para conhecer e entregar-se. Assiste-se a jovens queimando etapas da vida inconsequentemente, perdendo chances de conhecer o outro em suas verdades, de nutrir pacientemente os sentimentos, de desenvolver-se enquanto pessoa, antecipando o sexo ao bom dia, substituindo a caixa de bombons pelos nudes, banalizando, enfim, o “eu te amo”, distribuindo-o a qualquer um que acabou de conhecer.
Precisamos do amor para nos sentirmos vivos, precisamos da paixão para seguirmos em frente sem sucumbir, precisamos de carinho para suportar o peso do cotidiano em nossas vidas. Lançar-se à jornada diária sem prestar atenção em nossos sentidos equivale a negar nossa essência humana, pois, por mais que haja pessoas à nossa volta, dessa forma estaremos solitários e incompletos. Por mais confortável que sejam nossas casas, por mais dinheiro que tivermos no banco, estaremos ainda necessitados de alguma coisa, caso negligenciemos o pulsar de nossos sentidos.
É preciso, portanto, desacelerar nossos passos e prestar atenção em nossos desejos, permitindo-nos a demora no fortalecimento de nossos relacionamentos. Tenhamos de volta o direito a cultivar os sentimentos, a conhecer o outro, a entender o que está se passando aqui dentro de nós, para que não sufoquemos nossas necessidades sob os efeitos superficiais dos ansiolíticos e antidepressivos. O amor a dois, afinal, é algo que se conquista com paciência, entrega, dedicação e que sobrevive não somente do sexo em si, mas também de tudo o que o cerca - o bom dia sorridente, os bilhetes rascunhados, os olhares furtivos, o toque das mãos, o calor que ruboriza, o ouvir atencioso, as flores inesperadas, o compartilhamento das dores e das alegrias. Cultivar o antes nos dará um depois mais prazeroso e sincero, porque então não teremos dúvidas do que e de quem queremos e teremos certeza de quem somos. E, onde houver verdade, ali repousará o amor.
Marcel Camargo, in www.obviousmag.org

Da poesia

Google Imagens

Como me doem as estorinhas bem delineadas, sofregamente comportadas, plenas de heróis, anti-heróis, de heroínas e vilãs; de vilas, vilarejos, de urbanidades, sertões; de palácios, palafitas; de sofrimentos, sofreguidões; de universos, regiões; de belezas, feiuras, de esplendor, horrores; de explicativas, conexões; de hipóteses, sem sínteses; de mensagens e morais; de anacrônicos, lúdicos causos; de cores, rosas-do-mundo; de sorrisos, bobices sociais; de travessas travessuras, que importa; de cronologias, limites; de ambientes, vãos; de psicologias, mistérios; de segredos, por desvendar; de tramas, tramoias, de becos, barcos, velas, epifanias; de triângulos, traidoras tentações; de nome, insinuações; de males, bens, de bons e maus, um bocado de coisas; de inconfessáveis, confissões; de destinos, carta; de remetentes, receptáculos; de meios e fins; de vera voraz, semelhança; de negativa, aflição, ambígua. Doem, essas prosas prosaicas contadas e descontadas em cada canto distraído dos outros, que de tudo falam quando nada dizem; essas aventuras aprumadas que buscam desentortar o mundo – felizmente, vasto em seu hiperbólico delírio. Mas, como doem, as histórias, sempre as mesmas, dos que vencem mesmo quando a vitória é o troféu obsoleto da vileza. De algum modo ou de todas as maneiras, importa, para que valha a pena, poetizar o texto efabulado entre rimas, repetições, aliterações, neologismos, exacerbando a trama fabular com hipérbatos, altissonâncias, pontuações e eufonias; este texto-rio desemboca no mar da poesia feito verbo-corpo repertoriado no olhar das palavras que formam a materialidade sígnica do que advém com os pecados, as virtudes, os desejos, as paixões, o amor, a esperança, o medo, a morte e a vida. Driblar a chatura das frases iguais e fugir do lugar comum, alcançar, porventura, a virgindade dos vocábulos e instalar-se na poesia, pois, poesia é sem porquê. Evoé.
R. Leontino Filho, in As ruas arejadas do verbo impuro

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Vida Nordestina - Djavan



A vida não é de festa
Para o povo do sertão
Mas até quem não tem empresta
Dá a mão
A vida é mais dolorida
Pra esse povo sofredor
Mesmo assim só se vê perdida
De amor
Até o lar onde falta o pão
Tem lá seus dias de alegria
Ao abrigar uma novena
Pra fazer oração
A fé do povo é o que há de seu
Sem ela tudo vai ser pior
Nem roça, nem gado
Existem sem Deus
Mas quando é dia de festa
Todo povo do sertão
Dança para aparar as arestas
Do coração
As moças já tão bonitas
Ficam lindas como quê
E o homem nem acredita
No que vê
Vestindo igreja e palácio
Coroa e catedral
Para o reisado se dançar
Chegança e pastoril
Se dança pelo Natal
Dia de reis é o final
Coco de roda e toré
Orgulho da região
Que agradava a Lampião
Guerreiro e maracatu
Quadrilha e bumba-meu-boi
E só saudade
Depois.

O pensamento lógico como salvo-conduto

Quando Nina completou cinco anos de idade seu pai lhe ensinou a jogar xadrez. Não que esperasse fazer dela um daqueles gênios russos que passam a vida diante de um tabuleiro, não, sua intenção era outra, menos concreta e, talvez, bem mais difícil de ser alcançada. O xadrez, de forma lúdica e simples, a ajudaria a compreender os rudimentos daquilo que, segundo as palavras do pai, seria o seu mais valioso legado: o pensamento lógico. Veja bem, ele dizia, este é o peão, o peão só é capaz de andar uma casa para a frente, a não ser na primeira jogada, que permite um deslocamento de duas casas, agora, para capturar alguma peça, você o movimenta na diagonal, entendeu? Ela fazia que sim com a cabeça, ele continuava, já o bispo se movimenta somente na diagonal, podendo deslocar-se quantas casas o jogo lhe permitir, está claro?, ela continuava concordando, apesar de intuir que sua compreensão das peças e respectivas funções manteria para sempre algumas inconsistências fundamentais.
Para o pai de Nina, o pensamento lógico era uma espécie de salvo-conduto. É que ele, homem racional e sistemático, sempre esteve convencido de que as mulheres, devido aos hormônios ou algum outro aspecto misterioso de sua constituição, teriam uma clara tendência à loucura e a todo tipo de irracionalidade. Tratava-se, assim, de uma educação profilática. Além da loucura (ataques de choro, desmaios, chiliques), deveria prevenir todo tipo de fraqueza teórico-existencial: esoterismos, crendices, rezas, possessões, e qualquer outra manifestação de religiosidade. E o currículo incluía não apenas o xadrez, mas também aulas de lógica, evolução, cosmologia, história antiga e noções de filosofia. Sem falar no vigoroso treinamento físico (mens sana in corpore sano), que consistia em longas caminhadas na areia da praia e exercícios de natação em alto-mar.
A lógica, porém, não era a única preocupação, havia o que talvez fosse o maior interesse de seu pai: a ciência. A ciência explicaria e salvaria o mundo de todos os males: da miséria, da loucura, dos terremotos, da crise econômica, das ditaduras, e principalmente da ignorância. Nina era capaz de lembrar com detalhes o dia em que ele, decidido a iniciar de forma abrangente e sistemática a sua educação científica, apareceu trazendo a enciclopédia Mirador. Eram vinte volumes, acompanhados de dois dicionários e uma bíblia. Num primeiro impulso pensou em descartar imediatamente a bíblia, contudo, depois de alguns minutos de reflexão, concluiu que talvez fosse bom mantê-la em casa, assim vigiariam o inimigo de perto, consultariam suas incoerências e poderiam, depois, com conhecimento de causa, reduzi-lo a cinzas numa série de argumentações irrefutáveis.
A partir de então, todos os dias, quando chegava do trabalho, e antes do jantar, sentava-se com a filha à mesa e dizia, muito bem, vejamos o que a Mirador nos reserva para o dia de hoje. A Mirador era bastante eclética, e lhes reservava os temas mais variados, Grécia antiga, sociolinguística, Guerras Napoleônicas, evolução dos mamíferos, o Big Bang. Com o primeiro volume da enciclopédia aberto em cima da mesa, ele explicava: o universo não é criação de um ser superior ou divino, como gostariam os religiosos, mas apenas uma massa que surgiu do nada. O universo é uma massa, ele repete, e faz uma pausa diante da cara de espanto de Nina, talvez para realçar a importância do que dizia. Originalmente muito densa, com temperaturas inimagináveis, que com o passar do tempo foi perdendo calor, e, por isso, se expandindo. Não um universo estático criado em seis ou sete dias, mas um universo em constante expansão, aliás, o universo continua se expandindo, e em algum momento se extinguirá. Nessa altura do discurso, Nina lançava-lhe um olhar apreensivo, o que seria deles, da casa, do cachorro, e até mesmo das enciclopédias Mirador quando o universo se extinguisse. Bom, quando isso acontecer, a humanidade já terá desaparecido da face da Terra há bilhões de anos. Estaremos todos no céu?, Nina sugeria não muito segura da sua hipótese, o pai dava uma gargalhada, claro que não, que ideia mais absurda, não existe céu. Não?, as palavras saíam num fiozinho de voz. Claro que não, isso é coisa de gente ignorante, de quem tem medo de aceitar as coisas como são, a gente morre e acabou, pronto, não há nada depois, nem corpo, nem pensamento, nem céu, nem inferno, nem Jesus Cristo, nem madre Teresa de Calcutá. Não há nada. Absolutamente nada. A gente morre e fim.
Carola Saavedra, in O inventário das coisas ausentes

Conhecimento: mistério

Quando adquirimos conhecimento, as coisas não se tornam mais compreensíveis, e sim mais misteriosas.”
Will Durant

Um pai mágico


Escrevi meu primeiro conto em Bombaim, com dez anos de idade. O título era “Over the rainbow” [Além do arco-íris]. Não passava de uma dúzia de páginas, aplicadamente datilografadas pela secretária de meu pai em papel fino, que acabaram perdidas em algum ponto dos labirínticos deslocamentos de minha família entre a Índia, a Inglaterra e o Paquistão. Pouco antes da morte de meu pai, em 1987, ele me informou ter encontrado uma cópia embolorando em um velho arquivo, mas apesar de meus pedidos nunca me mostrou. Esse incidente sempre me intrigou. Talvez ele nunca tenha encontrado de fato o conto e nesse caso teria sucumbido à tentação da fantasia, e esse foi o último dos muitos contos de fadas que me contou. Ou então ele realmente encontrou o conto e guardou-o para si como um talismã e lembrete de tempos mais simples, considerando-o um tesouro dele, não meu — seu pote de ouro nostálgico e paternal.
Não me lembro de muita coisa do conto. Era sobre um menino bombainense de dez anos de idade que um dia se vê no começo de um arco-íris, um lugar tão ilusório quanto qualquer final com pote de ouro e igualmente tão promissor. O arco-íris é largo, tão largo quanto uma calçada, e construído como uma escadaria grandiosa. Naturalmente, o menino começa a subir. Esqueci quase todas as suas aventuras, exceto um encontro com uma pianola falante cuja personalidade era um improvável híbrido de Judy Garland, Elvis Presley e os “cantores de fundo” dos filmes indianos, muitos dos quais faziam O Mágico de Oz parecer realismo de vida cotidiana.
Minha fraca memória — que minha mãe chamava de “esqueçória” — é, provavelmente, uma bênção. Enfim, me lembro do que é importante. Lembro que O Mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li em criança) foi minha primeiríssima influência literária. Mais que isso: lembro que quando foi mencionada a possibilidade de eu ir para a escola na Inglaterra, isso me soou tão excitante quanto qualquer viagem além do arco-íris. A Inglaterra parecia uma perspectiva tão maravilhosa quanto Oz.
O mágico, porém, estava bem ali, em Bombaim. Meu pai, Anis Ahmed Rushdie, era um pai mágico para filhos jovens, mas tendia também a ter explosões, ataques de raiva trovejantes, relâmpagos de faíscas emocionais, baforadas de fumaça de dragão e outras ameaças do tipo das também praticadas por Oz, o grande e terrível, o primeiro Mago De Luxe. E quando a cortina se abriu e nós, seus filhos em crescimento, descobrimos (como Dorothy) a verdade sobre a impostura adulta, foi fácil para nós pensar, como ela, que nosso homem devia ser um homem muito mau mesmo. Levei metade da vida para entender que a grande apologia pro vita sua do Grande Oz cabia igualmente bem para meu pai; que ele também era um homem bom, mas um mago muito ruim.
Salman Rushdie, in Cruze esta linha

Tratado do Lobo da Estepe - Só para loucos (trecho)


Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida. Era incapaz disso, daí ser um homem descontente. Isso provinha, decerto, do fato de que, no fundo de seu coração, sabia sempre (ou julgava saber) que não era realmente um homem e sim um lobo das estepes. As pessoas argutas poderão discutir a propósito de ser ele realmente um lobo, de ter sido transformado, talvez antes seu nascimento, de lobo em ser humano, ou de ter nascido homem, porém dotado de alma de lobo ou por ela dominado ou, finalmente, indagar se essa crença de que ele era um lobo não passava de um produto de sua imaginação ou de um estado patológico. É admissível, por exemplo, que, em sua infância, fosse rebelde, desobediente e anárquico, o que teria levado seus educadores a tentar combater a fera que havia nele, dando ensejo assim a que se formasse em sua imaginação a ideia e & crença de que era, realmente, um animal selvagem, coberto apenas com um ténue verniz de civilização. A esse propósito poder-se-iam tecer longas considerações e até mesmo escrever, livros; mas isso de nada valeria ao Lobo da Estepe, pois para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior. O Lobo da Estepe tinha, portanto, duas naturezas, uma de homem e outra de lobo; tal era o seu destino, e nem por isso tão singular e raro. Deve haver muitos homens que tenham em si muito de cão ou de raposa, de peixe ou de serpente sem que com isso experimentem maiores dificuldades. Em tais casos, o homem e o peixe ou o homem e a raposa convivem normalmente e nenhum causa ao outro qualquer dano; ao contrário, um ajuda o outro, e muito homem há que levou essa condição a tais extremos a ponto de dever sua felicidade mais à raposa ou ao macaco que nele havia, do que ao próprio homem. Tais fatos são bastante conhecidos. No caso de Harry, entretanto, o caso diferia: nele o homem e o lobo não caminhavam juntos, nem sequer se ajudavam mutuamente, mas permaneciam em contínua e mortal inimizade e um vivia apenas para causar dano ao outro, e quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. Bem, cada qual tem seu fado, e nenhum deles é leve. Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de ura lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba. Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina. Era isso o que ocorria ao Lobo da Estepe, e pode-se perfeitamente imaginar que Harry não levasse de todo uma vida agradável e feliz. Isto não quer dizer, entretanto, que sua infelicidade fosse por demais singular (embora assim lhe pudesse parecer, da mesma forma como qualquer pessoa toma o sofrimento que se abate sobre ela como sendo o maior do mundo). Isso não pode ser dito a propósito de ninguém. Mesmo aquele que não tem em seu interior um lobo, nem por isso pode ser considerado mais feliz. E mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras. Assim acontecia também com o Lobo da Estepe. Não se pode negar fosse, em geral, muito infeliz, e podia também fazer os outros infelizes, especialmente quando os queria ou era por eles estimado. Pois todos os que com ele se deram viram apenas uma das partes de seu ser. Muitos o estimaram por ser uma pessoa inteligente, refinada e arguta, e mostraram-se horrorizados e desapontados quando descobriam o lobo que morava nele. E assim tinha de ser pois Harry, como toda pessoa sensível, queria ser amado como um todo e, portanto, era exatamente com aqueles cujo amor lhe era mais precioso que ele não podia de maneira alguma encobrir ou perjurar o lobo. Havia outros, todavia, que amavam nele exatamente o lobo, o livre, o selvagem, o indômito, o perigoso e o forte, e estes achavam profundamente decepcionante e deplorável quando o selvagem e perverso se transformava em homem, e mostrava anseios de bondade e refinamento, gostava de ouvir Mozart, de ler poesia e acalentar ideais humanos. Em geral, estes se mostravam mais desapontados e irritados do que os outros, e dessa forma o Lobo da Estepe levava sua própria natureza dual e discordante aos destinos alheios toda vez que entrava em contato com as pessoas.
Hermann Hesse, in O lobo da Estepe

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Deus e as ideias

Sou, simplesmente, uma pessoa com algumas ideias que lhe têm servido de razoável governo em todas as circunstâncias, boas ou más, da vida. Costuma-se dizer que o melhor partido para um crente é comportar-se como se Deus estivesse sempre a olhar para ele, situação, imagino eu, que nenhum ser humano terá estofo para aguentar, ou então é porque já estará muito perto de tornar-se, ele próprio, Deus. De todo o modo, e aproveitando o símile, o que eu tenho feito é imaginar que essas tais ideias minhas, estando dentro de mim como devem, também estão fora — e me observam. E realmente não sei o que será mais duro: se prestar contas a Deus, por intermédio dos seus representantes, ou às ideias, que os não têm. Segundo consta, Deus perdoa tudo — o que é uma excelente perspectiva para os que nele acreditem. As ideias, essas, não perdoam. Ou vivemos nós com elas, ou elas viverão contra nós — se não as respeitamos.”
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote (1995)