Um texto apagado de todo

Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.”
Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa

Deus acontecendo

Através dos teus dias sonho coisas caras e febris – o luxo e o talento, por exemplo. Como uma brasa no coração. E longe, por ruas, por estradas onde nunca vou, este sol da tarde: deus acontecendo.
Lúcio Cardoso, in Diários

Jagunço comportado

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo ― foi em arraso de um tirotêi, pra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Aguentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo ― homem muito valente ― se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo! ― Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!... Gritava não esbarrava. ― Eu vi a Virgem!... Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo ― que achei ― pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece em pró, em meio de galope, sei! pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja! bala faz o que quer ― se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum!! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada e cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha… Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá ― e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de môitas, sempre me agarrava ― rolava mesmo assim! depois ― depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo ― e um bicho escuro deu um repulão, com um espirro, também dôido de susto! que era um papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de pensamento! se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São Domingos Branco. Tempos!
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

De pombos e de gatos

Um dos meus grandes encantos em Florença, onde, em 1952, passei cerca de um mês, era ver da janela do meu quinto andar, no Hotel Nazionale, a madrugada toscana romper sobre a piazza Santa Maria Novella. Habituei-me de tal modo a isso que, nos meus hábitos de noctâmbulo, esticava a noite até o amanhecer, só pelo prazer de ver a luz rósea do sol florentino descobrir e incendiar os mármores da fachada da igreja de Santa Maria Novella, bem como o claustro verde que fica à sua esquerda e as elegantes arcadas do fundo, onde existem as terracotas de Andrea e Giovanni della Robbia. Mas o prazer desse minuto de luz acabaria por resultar monótono, não se lhe seguisse um dos mais extraordinários divertissements a que já me foi dado assistir, misto de balé, cinema e circo romano, sem falar que cheio de ensinamentos sobre a vida e arte de viver perigosamente.
O caso é que, aos primeiros vestígios de luz, começava-se a ouvir por ali em torno um brando ruflar de asas que, com o despontar do Sol, crescia num espesso burburinho ao qual vinham se unir doces arrulhos. E o ambiente, em suas cores rosa, verde, laranja e terracota, adquiria uma maciez de plumas; e logo asas brancas e trigueiras começavam a tatalar em largos voos e algumas desciam em voos rasantes; e toda uma população de pombos, habitantes daqueles mil escaninhos, como só pode proporcionar a arquitetura antiga, vinha pousar na praça.
A coisa ficava assim por uns poucos minutos; e em breve apareciam, infalivelmente, no belo logradouro, três padres e cinco gatos. Cabe dizer, em nome da verdade, que os padres chegavam bem menos sorrateiramente que os gatos e, estou certo, com intenções muito menos maléficas; pois se vinham os padres para se aquecer um pouco ao sol e ler seus breviários, os gatos surgiam, esgueirando-se das ruas laterais, para cumprir uma fatalidade do seu destino, que é de comer pombos. E com a malícia que lhes é peculiar, colocavam-se pacientemente em posições estratégicas, sob automóveis encostados ao meio-fio, à espera do momento azado para o bote.
Deus sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente pela primeira espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu ar bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de Santa Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos pombos; e só passei a torcer pelos gatos no final, quando, defrontado com a realidade de sua terrível humilhação, e provável neurose subsequente, achei que não faria nenhuma falta à comunidade a desaparição de uma meia dúzia de columbinos, em beneficio do sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um pombinho que fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas tradicionais dos gatos, desde a paciente emboscada, até a carreira às cegas, com saltos desordenados para todos os lados.
Tudo em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar pequenos voos que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os percorriam em furiosas e inúteis investidas. E o pior é que cada pombo, passado o rojão, pousava como se nada tivesse havido, e continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na mais total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que, positivamente, devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia eu vi, depois de numerosos ataques frustrados, a morder como um possesso o pneu de um Chevrolet, e por cuja sanidade mental não poria da maneira alguma a mão na Bíblia.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

Seu belo ser

Todo o resto do seu belo ser - os seus olhos tristes; os seus miraculosos lábios; a sua grande língua rosada; as faces aveludadas; os ombros bem delineados; a pele sedosa da sua garganta, do peito, do pescoço e do ventre; as pernas longas; os pés delicados, cuja visão sempre me fizera sorrir; os seus esguios braços cor de mel, cheios de sinais e com uma penugem acastanhada; a curva das suas nádegas; e a sua alma, que sempre me atraíra a si - permaneceu intacto.”
Orhan Pamuk, in O museu da inocência

domingo, 29 de novembro de 2015

Língua desconhecida

Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:
Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.
Desconhecida? — pergunta ele.
Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!
O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos.
Na nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

Amor imorredouro

Com a minha mania de andar de táxi, entrevisto todos os choferes com quem viajo. Uma noite dessas viajei com um espanhol ainda bem moço, de bigodinho e olhar triste. Conversa vai, conversa vem, ele me perguntou se eu tinha filhos. Perguntei-lhe se ele também tinha, respondeu que não era casado, que jamais se casaria. E contou-me sua história. Há catorze anos amou uma jovem espanhola, na terra dele. Morava numa cidade pequena, com poucos médicos e recursos. A moça adoeceu, sem que ninguém soubesse de quê, e em três dias morreu. Morreu consciente de que ia morrer, predizendo: “Vou morrer em teus braços.” E morreu nos braços dele, pedindo: “Que Deus me salve.” O chofer durante três anos mal conseguia se alimentar. Na cidade pequena todos sabiam de sua paixão e queriam ajudá-lo. Levavam-no para festas, onde as moças, em vez de esperar que ele as tirasse para dançar, pediam-lhe para dançar com elas.
Mas de nada adiantou. O ambiente todo lembrava-lhe Clarita – este é o nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e senti-me morta e amada. Então resolveu sair da Espanha e nem avisar aos pais. Informou-se de que só dois países na época recebiam imigrantes sem exigir carta de chamada: Brasil e Venezuela. Decidiu-se pelo Brasil. Aqui enriqueceu. Teve uma fábrica de sapatos, vendeu-a depois; comprou um bar-restaurante, vendeu-o depois. É que nada importava. Resolveu transformar seu carro de passeio em carro de praça e tornou-se chofer. Mora numa casa em Jacarepaguá, porque “lá tem cachoeiras de água doce (!) que são lindas”. Mas nesses catorze anos não conseguiu gostar de nenhuma mulher, e não tem “amor por nada, tudo dá no mesmo para ele”. Com delicadeza o espanhol deu a entender que no entanto a saudade diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue ter casos e variar de mulheres.
Mas amar – nunca mais.
Bom. Minha história termina de um modo um pouco inesperado e assustador.
Estávamos quase chegando ao meu ponto de parada, quando ele falou de novo na sua casa em Jacarepaguá e nas cachoeiras de água doce, como se existissem de água salgada. Eu disse meio distraída: “Como gostaria de descansar uns dias num lugar desses.” Pois calha que era exatamente o que eu não devia ter dito. Porque, sob o risco de enveredar com o carro por alguma casa adentro, ele subitamente virou a cabeça para trás e perguntou-me com a voz carregada de intenções: “A senhora quer mesmo?! Pois pode vir!” Nervosíssima com a repentina mudança de clima, ouvi-me responder depressa e alto que não podia porque ia me operar e “ficar muito doente”(!). Dagora em diante só entrevistarei os choferes bem velhinhos. Mas isso prova que o espanhol é um homem sincero: a saudade intensa por Clarita não atrasa mesmo sua vida.
O final dessa história desilude um pouco os corações sentimentais Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a sua vida. A história ficaria melhor. Mas é que não posso mentir para agradar vocês. E além do mais acho justo que a vida dele não fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar ninguém mais.
Esqueci de dizer que ele também me contou histórias de negócios comerciais e de desfalques – a viagem era longa, o tráfego péssimo. Mas encontrou em mim ouvidos distraídos. Só o que se chama de amor imorredouro tinha me interessado. Agora estou me lembrando vagamente do desfalque. Talvez, concentrando-me, eu me lembre melhor, e conte no próximo sábado. Mas acho que não interessa.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Incendiar navios

Estou relendo o trecho em que o professor Schianberg se ocupa da separação dos amantes. As transitórias e as irremediáveis. Ele menciona um maluco norueguês que afundou um navio como oferenda pela volta da amada. O problema é que o navio não era dele, e deu cadeia. Eu afundaria todos os navios nesta noite, Lavínia. Incendiaria o porto. Só para ver o brilho das chamas refletido nos seus olhos escuros.”
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios

O lutador

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como um javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
está me ofertando
seu velho calor,
outra sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:

entre beijo e boca,
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
Carlos Drummond de Andrade

O grande homem é cético

Todo o grande homem é, necessariamente, cético, ainda que possa não o mostrar: pelo menos se a grandeza dele consistir em querer uma coisa grande e grandes meios para realizá-la. A liberdade em relação a todas as convicções faz parte da sua vontade: o que está em conformidade com o despotismo esclarecido que todas as grandes paixões exercem. Uma paixão dessa espécie põe o intelecto ao seu serviço e tem a coragem de fazer uso até de certos meios proibidos - dos quais se serve, mas aos quais não se submete.
A necessidade de crer, a necessidade de um sim e de um não absolutos é sinal de fraqueza, e toda a fraqueza é uma fraqueza da vontade. O homem de fé, o crente é, necessariamente, de uma espécie inferior; disso resulta a liberdade de espírito, ou seja, a descrença instintiva: uma condição de grandeza.”
Friedrich Nietzsche, in A Vontade de Poder

sábado, 28 de novembro de 2015

Freios aos delitos

Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em consequência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que frequentemente tudo supre em nós, afasta a ideia de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança. A própria atrocidade da pena faz com que tentemos evitá-la com uma ousadia tanto maior quanto maior é o mal em que incorremos e leva a cometer outros delitos mais para escapar a pena de um só. Os países e os tempos em que se infligiam os suplícios mais atrozes sempre foram aqueles das ações mais sanguinárias e desumanas, pois o mesmo espírito de ferocidade que guiava a mão do legislador conduzia a do parricida e do sicário. Do trono, esse espírito ditava leis férreas a ânimos torturados de escravos, que obedeciam; na escuridão do privado, estimulava a imolação dos tiranos para criar outros novos.”
Cesare Beccaria, in Do delito e das penas

A grã-fina de Copacabana

Sarita olhava distraída o trânsito colorido que descia pela Avenida N. S. de Copacabana. Aquele rio de carros que corria em direção ao centro da cidade e ali engrossava depois de receber todos os seus afluentes os carros que vinham do Leblon, via Posto 6, os que vinham de Ipanema, via Lagoa, os que vinham do Bairro Peixoto e das muitas ruas transversais.
Acendeu um cigarro já impaciente e continuou na janela. Estava no oitavo andar de um edifício do Lido, onde o eminente Dr. Teódulo de Carvalho tinha o seu consultório e sua clínica; uma clínica muito bem montada para padronizar os narizes de moças ricas que tinham em seus respectivos apêndices nasais o centro de seus complexos, ou para esticar as pelancas de velhotas ociosas para as quais a velhice era um fantasma constante, muito mais constante durante o dia, quando suas rugas eram mais evidentes, do que durante a noite, quando costumam ser mais constantes os fantasmas de um modo geral. Em suma: o Dr. Teódulo de Carvalho era um afamado cirurgião plástico que enriquecera e envelhecera explorando a vaidade das grã-finas do café society tornando-se um desses médicos que consideram o consultório a coisa mais importante da Medicina.
Seu consultório era no quarto andar e sua garçonnière no oitavo.
Sarita estava no oitavo andar, justamente na garçonnière do Dr. Teódulo, porque Sarita era amante dele e muito mais gente do que ela imaginava — como é comum nesses casos — sabia disso. E Sarita estava impaciente porque Téo não chegava.
Marcaram às 2 hs e ficariam apenas uma hora, pois ele desceria às 3, como de hábito, para a primeira consulta. Já eram 2 e 15 — confirmou ela olhando o seu reloginho de platina e brilhantes — e nada dele chegar.
Foi ai que Sarita viu um carro se destacar no meio dos outros e parar bem em frente ao prédio onde ela se encontrava. Era um modelo Fiat especial de carroceria moderna, uma gracinha de carro — ela pensou, porque além de entender de carros, Sarita era tarada por carros esporte.
Súbito, Sarita estranhou! Mas era ele, o Dr. Teódulo que descia do carro. Retirou os óculos escuros para ver melhor e logo seus olhos se fecharam contra a claridade, mas Sarita forçou a vista, seus olhos foram se abrindo aos poucos para confirmar não somente a presença de Téo junto ao carro como também a de Zizi, na direção. Sarita ficou mais abismada ainda. Zizi — Zilda de Carvalho — era a mulher dele e os dois se falavam e ela sorria. Téo estava na calçada e dizia qualquer coisa à mulher.
Ela respondeu, fez um aceno com a mão, o carro movimentou-se e vagou outra vez pelo caudaloso rio que, logo adiante, pegaria seu último afluente, vindo do Leme, e se espremeria dentro dos túneis, fiel ao seu leito — coisa que Sarita jamais fora — para escoar-se como sempre na Esplanada do Castelo.
O Dr. Teódulo virou-se e entrou no prédio. Sarita virou-se e entrou no quarto, colocando os óculos escuros sobre um móvel e olhando-se no espelho, onde ajeitou a pintura com a ponta do dedo médio da mão direita. Parou, olhou-se mais atentamente no espelho. Estava linda!
Sentou-se na beira da cama, fuzilando de raiva, para esperar a chegada do amante.
Barulho de chaves na fechadura, a porta abriu-se e o eminente Dr. Teódulo de Carvalho entrou esbaforido:
Minha querida, desculpe... eu tive um almoço…
Divertiu-se muito com ela?
Ela quem? — espantou-se ele, enquanto colocava o paletó no espaldar de uma cadeira e começava a afrouxar o laço da gravata.
Sua mulher! Você pensa que eu não vi vocês dois chegando juntos lá embaixo?
Mas Sarita, a Zizi ia ajudar na preparação do chá da ABBR hoje, rio Copa...
Ora, Téo... Francamente, você me deixa plantada aqui horas e quando chega vem todo sorridente com sua mulher. Às vezes eu penso que você preferia trocar...
Está calor aqui — disse ele, já nu da cintura para cima.
Fechou a guilhotina da janela onde estivera Sarita espiando, e ligou a refrigeração.
... talvez você preferisse ser casado comigo e ter a Zizi como amante. Ele abraçou-a pela cintura e tentou desabotoar seu vestido por trás do ousado decote das costas, enquanto falava carinhosamente:
Denguinho, deixa de coisa. Ela só me trouxe aqui. Você sabe que meu carro está na oficina. Ela me trouxe no dela.
Sarita esquivou-se, quando ele falou no carro dela. — Carro novo, não é? — É . . . realmente o carro... Mas Sarita não o deixou terminar:
E você tinha me prometido um carro, não tinha? Deu pra mim? Não, deu pra ela.
Mas foi ela que comprou!
E foi você que pagou — arrematou ela, em cima do argumento dele.
Téo estava sentado na beira da cama, tirando os sapatos. Como todo grã-fino que se preza, cuidava-se. Seu corpo era queimado de sol, ele fazia massagem regularmente, tomava sauna. Nos seus quarenta e poucos anos, era um homem enxuto. Estava decidido a não brigar:
Você está com ciúmes dela ou do carro — levantou-se e abraçou-a outra vez. Segurou-lhe. o queixo e virou-lhe o rosto em direção a seu olhar:
Hem?
Dos dois — respondeu Sarita, mais calma. — Dela não precisa ter ciúmes, Denguinho. Ela é que devia ter ciúmes de você...
Sarita envolveu o pescoço dele num abraço: — Mas ela ganhou um carro, né? — sua voz agora era infantil.
Téo puxou-a para junto da cama, onde sentou-se com ela no colo:
Denguinho, aquele carro custa muito caro. Não é pelo dinheiro, você sabe. Mas eu não poderia dar um carro daqueles para você. Como é que você explicaria a Eduardo?
Enquanto os dois se beijavam longamente, expliquemos que Eduardo era o marido de Sarita, também grã-fino, também frequentador das mesmas rodas que Téo frequentava, mas que não era tão rico como Téo. Apenas um dos muitos frequentadores dessas rodas, vivendo de comissões, hoje ganhando muito dinheiro aqui para poder cobrir as dívidas ali, num trapézio constante para aguentar um padrão de vida que não era o seu.
O médico conseguira afinal desprender o vestido da amante e ela saltou de dentro dele só de calcinhas e sutiã, levantando-se do colo de Téo para entrar no banheiro anexo ao quarto. De lã falava para ele escutar:
E se eu arrumasse um jeito para tapear o Edu, você me daria um carro igual ao da Zizi?
Téo levantara-se, colocara o vestido dela esticado sobre um móvel e tirara as calças, ficando apenas com a sunga de nylon. Respondeu evasivamente:
Mas meu bem, aquele carro não é de série. Deve ser o único existente no Brasil.
É o que você pensa. — Sarita apareceu na porta do banheiro, enrolada numa toalha estampada. — Eu sei quem tem um igualzinho.
Quem?
O Cid.
Que Cid? — intrigou-se Téo, mas puxando-a para a cama, enquanto ela explicava quem era Cid. Um playboy de São Paulo que agora estava morando no Rio, aquele que no aniversário da Betty tomara o maior pifa e caíra na piscina com smoking e tudo.
Você se lembra? — e Sarita levantou o busto, fincou o cotovelo na cama e ficou semi-recostada, olhando para Téo. Ele fingia estar mais interessado nela do que no tal de Cid. Puxou-a outra vez para junto de si e beijou-a na boca. Terminado o beijo, Sarita voltou à carga:
A irmã do Cid é minha amiga. Também está morando no Rio, casou-se com um engenheiro da SURSAN. Ela foi tomar um chá comigo noutro dia. Disse que a família do Cid está muito preocupada com ele. O pai está querendo cortar a mesada, porque ele é um gastador. Ele é noivo cm São Paulo e vai casar breve. Deve estar precisando de dinheiro, não acha?
Hum-hum — gemeu Téo.
Então! É capaz de vender o carro. Aí você compra pra mim e eu dou um jeito de dobrar o Edu, tá?
Tá.
E Téo desenrolou a toalha que envolvia Sarita, abraçou-a e — nessa tarde — não se falou mais nisso. Nem era assunto para ser debatido enquanto eles faziam o que fizeram.
Com franqueza, nenhum assunto cabe, em tais momentos.
Sérgio Porto, in As cariocas