segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Dos livros

Não viajo sem livros, nem na paz, nem na guerra... pois não se pode dizer o quanto eu me repouso e demoro nessa consideração de que eles estão ao meu lado para me darem prazer quando preciso e em reconhecer quanta ajuda eles me trazem à vida. É a melhor provisão que tenho encontrado para esta viagem humana e sinto uma pena extrema das pessoas inteligentes que deles se privam.”
Michel de Montaigne, in Dos Três Comércios

O Teatro Mágico - Partilha



Quem vem lá
Que em mim se alastra
Quem vem lá
Partilhar.

Restaura a pedra do peito
A luz, o lamento, a sombra
Volta tal qual
Chuvas de Janeiro
Silêncio, anseio, som e eu
Quem vem lá.

Gigante, miúda, me reanima
Liberta o instante, revigora.

Se o acaso nos distanciar
E a sorte nos fechar a porta
Releve o que não importar
Vai, dê meia-volta e volta

Coração pulsa por saber
Almeja ser razão e ser capaz
Permita experimentar
A soma de você comigo é mais.

A partilha


Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.
Encontramos, perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos. Por entre pragas e impropérios, gritavam possessos, furiosos:
Não pode ser!
Isto é um roubo!
Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
Somos irmãos — esclareceu o mais velho — e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo eu receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos. A cada partilha proposta, segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio! Como fazer a partilha, se a terça parte e a nona parte de 35 também não são exatas?
É muito simples — atalhou o “homem que calculava”. — Encarregar-me-ei de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal, que em boa hora aqui nos trouxe.
Neste ponto, procurei intervir na questão:
Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem, se ficássemos sem o nosso camelo?
Não te preocupes com o resultado, ó “bagdali”! — replicou-me, em voz baixa, Beremiz. — Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás, no fim, a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
Vou, meus amigos — disse ele, dirigindo-se aos três irmãos — fazer a divisão justa e exata dos camelos, que são agora, como vêem, em número de 36.
E voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
Deves receber, meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, ou seja, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
Dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
E tu, Hamed Namir, devias receber um terço de 35, isto é, 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse, por fim, ao mais moço:
E tu, jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, devias receber uma nona parte de 35, isto é, 3 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado.
Numa voz pausada e clara, concluiu:
Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir — partilha em que todos os três saíram lucrando — couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um total de 34 camelos. Dos 36 camelos sobraram, portanto, dois. Um pertence, como sabem, ao “bagdali” meu amigo e companheiro; outro, por direito, a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança.
Sois inteligente, ó estrangeiro! — confessou, com admiração e respeito, o mais velho dos três irmãos. — Aceitamos a vossa partilha, na certeza de que foi feita com justiça e equidade.
E o astucioso Beremiz — o “homem que calculava” — tomou logo posse de um dos mais belos camelos do grupo, e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro. Tenho outro, especialmente para mim.
E continuamos a nossa jornada para Bagdá.
Malba Tahan, in Seleções - Os melhores contos

Morrer, vivendo

É tão bom morrer de amor e continuar vivendo!”
Mário Quintina

M. de memória

Fonte: Google Imagens

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Paulo Leminski

Okonkwo X Amalinze


Toda a gente conhecia Okonkwo nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama assentava-se em sólidos feitos pessoais. Aos dezoito anos, trouxera honra à sua aldeia ao vencer Amalinze, o Gato, um grande lutador, campeão invicto durante sete anos e toda a região de Umuófia a Mbaino. Amalinze recebera o apelido de o Gato porque suas costas nunca tocaram o solo. E foi ele quem Okonkwo derrotou, numa luta que, na opinião dos mais velhos, fora das mais renhidas desde a travada, durante sete dias e sete noites, entre o fundador da cidade e um espírito da floresta.”
Chinua Achebe, in O mundo se despedaça

domingo, 30 de agosto de 2015

A verdade

Esta velha humanidade, tudo quanto seja acreditar que dois e dois são quatro, quatro e quatro, oito, e oito e oito, dezesseis, muito bem e sem nenhuma prova; agora quando lhe dizem que há gente que morre pela sua verdade, é preciso mostrar-lhe Sócrates a beber a cicuta, Catão com a espada enterrada no ventre, Cristo pregado na cruz, — e nem assim.”
Miguel Torga, in Diário (1936)

A impressionante Arte do japonês Shintaro Ohata

Suas telas são lindas por conta própria, mas quando ele mistura pintura e escultura, cria ilusões de ótica que levam sua arte a um nível totalmente novo.
A escultura e a pintura se fundem com uma iluminação que não é real. As pessoas em 3D em suas cenas parecem ser iluminadas pelas fontes de luz na pintura, que obviamente não existem.
Como ele faz isso? Ele usa os mesmos tons para aplicar mesma a iluminação das telas nas esculturas, criando um efeito atmosférico e ampliando a ilusão de iluminação na pintura em si.
Quando você as vê em close-up, eles parecem se misturar em uma única realidade. A tela se torna uma janela para outro mundo, porque a escultura quebra essa janela. Mesmo que seu trabalho não seja fotorrealista, o resultado final parece incrivelmente real.

「歩く」/ ''walking'', 2012, panting, polystyrene based sculpture

「歩く」/ ''walking'', 2012, panting, polystyrene based sculpture

「東京タワー」/ ''Toyko tower'', 2012, acrylic on canvas

「音の中」/ ''in the sound'', 2012, panting, polystyrene based sculpture

「音の中」/ ''in the sound'', 2012, panting, polystyrene based sculpture

「虹」/ ''Rainbow'', 2011, panting, polystyrene based sculpture

「明日」/ ''Tomorrow'', 2011,  acrylic on canvas

「線香花火」部分/ detail''Sparklers'', 2010, painting, polystyrene based sculpture

''loop'', 2010, panting, polystyrene based sculpture

''loop''部分/detail, 2010, panting, polystyrene based sculpture

「さよなら三角」/ ''SAYONARA SANKAKU'', 2008, panting, polystyrene based sculpture

「さよなら三角」部分/ ”SAYONARA SANKAKU”detail, 2008, panting, polystyrene based sculpture

Acesse o sítio do artista aqui.

O Tempo

A temporalidade é evidentemente uma estrutura organizada, e esses três pretensos “elementos” do tempo, passado, presente , futuro, não devem ser considerados como uma coleção de “dados” cuja soma deve ser feita - por exemplo, como uma série infinita de “agora”, alguns dos quais ainda não são, outros que não são mais -, mas como momentos estruturados de uma síntese original. Senão encontraremos, em primeiro lugar, este paradoxo: o passado não é mais, o futuro ainda não é, quanto ao presente instantâneo, todos sabem que ele não é tudo, é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão.
Jean-Paul Sartre, in O Ser e o Nada

A gorda indiana

-"Quero ser como a flor que morre antes de velhecer”.
Assim dizia Modari, a gorda indiana. Não morreu, não envelheceu. Simplesmente, engordou ainda mais. Finda a adolescência, ela se tinha imensado, planetária. Atirada a um leito, tonelável, imobilizada, enchendo de mofo o fofo estofo. De tanto viver em sombra ela chegava de criar musgos nas entrecarnes.
A vida dela se distraía. Lhe ligavam a televisão e faziam desnovelar novelas. Modari chorava, pasmava e ria com sua voz aguçada, de afinar passarinho. Nos botões do controlo remoto ela se apoderava do mundo, tudo tão fácil, bastava um toque para mudar de sonho. Rebobinar a vida, meter o tempo em pausa. Afinal, o destino está ao alcance de um dedo. Moda ri, de dia, noturna. De noite, diurna. No ecrã luminoso a moça descascava o tempo.
Tanta substância, porém, lhe desabonava a força. A gorda não se sustinha de tanto sustento. Não tinha levante nem assento. Desempregada estava sua carne, flácido o corpo em imitação de melancia recheada. Uma simples ideia lhe fazia descair a cabeça. Já a família sabia: se era ideia bondosa descaía para o lado esquerdo. Ideia má lhe pesava no ombro direito.
Em abono da estória se diga: ela se sujava ali mesmo, em plenas carnes. À hora certa, um empregado lhe vinha lavar. Despia a moça e lhe pedia licenças para passar toalhas perfumadas pelas concavidades, folhos e pregas. Lhe pegava, virava e desfraldava com o esforço do pescador de baleia. Depois, lhe deixava assim, nua, como uma montanha capturando frescos. Por fim, lhe ajudava a vestir uma combinação leve, transparente. O empregado nem era delicado. Mas ela se amolecia com o roçar das mãos dele. E adormecia, controlo remoto na mão.
Para não definhar, longe das vividas vistas, lhe abriram uma janela no quarto. Partiram a parede, levantaram tempestades de poeira. Impossível de ser deslocada, cobriram a gorda com um plástico. Modari espirrava em soprano, mais aflita com o aparelho televisivo que com seus pulmões.
Certo um dia ali chegou um viajeiro. O migrante lhe trouxe panos, cores e perfumes da Índia. Era um homem sóbrio, sozinhoso. Ele a olhou e, de pronto, se apaixonou de tanto volume.
– “Você tem tanta mulher dentro de si que eu, para ser polígamo, nem precisava de mais nenhuma outra”.
O homem amava Modari mas tinha dificuldade em chegar a vias do facto. Com paixão ele suspirava: “se um dia eu conseguir praticar-me com você!…”. Mas ele devia atravessar mais carne que magaíça mineirando nas profundezas.
– “De hoje em diante não quero nenhum empregado mexendo em você”.
Ele mesmo passou a lavá-la. Modari se tornou muito lavadiça e o homem lhe enxugava, aplicava pós medicinais, esfregava com loções. Foi num desses lavamentos que o acto se consumou. O visitante lhe empurrou as pernas como se destroncasse imbondeiros. Fizeram amor, nem se sabe como ele conseguiu descer tão fundo nas grutas polposas dela. Modari, a seguir, se sentiu leve. Controlo remoto na mão, ela então tomou consciência que, em nenhum momento do namoro, havia largado a caixinha de comando da televisão. Assim como estava, besuntada de transpiros, fez graça:
– “Meu amor, você prefere quê: entalado ou enlatado?”
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

Quem pede ditadura são loucos

Em discurso pela coletividade, Mujica afirma que o Brasil mudou muito positivamente, mas que a população, em geral, não reconhece os ganhos sociais e atribui o progresso ao esforço individual. O ex-presidente uruguaio também comentou as manifestações de rua no Brasil – mais especificamente a respeito dos grupos que pedem a volta dos militares ao poder.


mujica ditadura militar brasil

O ex-presidente uruguaio Jose “Pepe” Mujica disse, após receber homenagem da Federação de Câmaras de Comércio e Indústria da América do Sul (Federasur), que o Brasil mudou muito positivamente, mas que a população, em geral, não reconhece os ganhos sociais e atribui o progresso exclusivamente ao esforço individual.
Muita gente que melhorou não se dá conta de que a melhora é resultado de medidas que foram tomadas ao longo dos anos. Muita gente crê que melhorou apenas pelo seu esforço individual e não vê que lhe deram a oportunidade. Isso se passa não apenas no Brasil, mas em todos os lugares, em outras sociedades modernas”, apontou Mujica, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio.
O ex-presidente se recusou a fazer críticas à presidente Dilma Rousseff e disse que é preciso ter habilidade diplomática e carinho com o povo brasileiro. Ao ser informado sobre a ocorrência de manifestações de rua que pedem a volta dos militares no poder, Mujica foi enfático: “As pessoas que clamam por isso são loucas! Loucas! Qualquer democracia, por pior que seja, é melhor que uma ditadura”, disse ele, que passou 14 anos encarcerado no período ditatorial do Uruguai.
Mujica, que abriu mão de 90% de seu salário enquanto esteve no comando de seu país, argumentou que não prega voto de pobreza, mas alertou para o fato de que a ganância de homens públicos pelo dinheiro está matando a confiança na política. O uruguaio foi aplaudido de pé quando defendeu que os políticos devem viver como a maioria da população.
Eles têm que viver como a maioria, e não como a minoria privilegiada. Se o político se acostuma a comer na mesa e a ir à casa dos muito ricos, ele pensará que é muito rico também. Se ele faz isso, ele afeta a confiança, e o homem precisa confiar em algo. Aquele que só gosta de dinheiro não deve ter lugar dentro da política.”, concluiu o senador uruguaio.
Em seu discurso, que durou trinta minutos, o ex-presidente disse que não vive sem utopia, que “só a multidão pode mudar a realidade”, que “não há homens imprescindíveis, há causas imprescindíveis” e criticou os imperativos do capitalismo.
Quem disse que para ser feliz é preciso comprar um telefone novo a cada quatro meses? Por que trocar o carro a cada dois anos? Pagar cotas e cotas e cotas para o resto da vida? Isso é felicidade? O que está em jogo é a felicidade humana, e ela está em poucas coisas: na juventude, no amor. Entre ser desenvolvido e ser feliz, mais vale não ser desenvolvido”.
Fonte: www.pragmatismopolitico.com.br, de 28/08/2015

Acerca de poemas religiosos

Levei ao Dr. Kafka uma antologia tcheca de poemas religiosos franceses.
Ele folheou um momento o pequeno volume, depois empurrou-o cautelosamente em minha direção fazendo-o deslizar sobre a mesa.
- Este gênero de literatura é um estímulo requintado que não me agrada. A religião está derramada aí num alambique de onde só ressalta o esteticismo. O que é um meio de dar sentido à vida torna-se um estimulante, um objetivo decorativo e pretensioso como são, por exemplo, as cortinas luxuosas, quadros, móveis esculpidos ou autênticos tapetes persas. A religião desse gênero de literatura é um esnobismo.
Aprovei: - Tem razão, a guera produziu substitutivos até no domínio da fé. É esse gênero de literatura. Os poetas se apoderam da ideia de Deus como de uma bonita gravata na moda.
Sorrindo, Kafka veio em minha direção e acrescentou:
- E essa gravata é simplesmente uma corda que eles botam no pescoço. Como toda vez que utilizamos a transcendência como escapatória.
Gustav Janouch, in Conversas com Kafka

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Amar loucamente

Mas basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Vanguart: Se tiver que ser na bala, vai



……………………….
Se tiver que ser na bala, vai
Se tiver que ser sangrando, vai
Se você quiser eu vou…
……………………….

Hoje

Hoje as torturas são chamadas de “procedimento legal”, a traição se chama “realismo”, o oportunismo se chama “pragmatismo”, o imperialismo se chama “globalização” e as vítimas do imperialismo se chamam “países em via de desenvolvimento”. O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou não sabemos o que dizem.”
Eduardo Galeano

A desgraçada inveja

De todas as características que são vulgares na natureza humana a inveja é a mais desgraçada; o invejoso não só deseja provocar o infortúnio e o provoca sempre que o pode fazer impunemente, como também se torna infeliz por causa da sua inveja. Em vez de sentir prazer com o que possui, sofre com o que os outros têm. Se puder, priva os outros das suas vantagens, o que para ele é tão desejável como assegurar as mesmas vantagens para si próprio. Se uma tal paixão toma proporções desmedidas, torna-se fatal a todo o mérito e mesmo ao exercício do talento mais excepcional.
Por que é que o médico deve ir ver os seus doentes de automóvel quando o operário vai para o seu trabalho a pé? Por que é que o investigador científico pode passar os dias num quarto aquecido, quando os outros têm de expor-se à inclemência dos elementos? Por que é que um homem que possui algum talento raro de grande importância para o mundo deve ser dispensado do penoso trabalho doméstico? Para tais perguntas a inveja não encontra resposta. Afortunadamente, porém, há na natureza humana um sentimento compensador, chamado admiração. Todos os que desejam aumentar a felicidade humana devem procurar aumentar a admiração e diminuir a inveja.”
Bertrand Russell, in A Conquista da Felicidade

Quem é ruim?

O mundo não é ruim, só está mal frequentado.”
Luís Fernando Veríssimo

O essencial é invisível aos olhos

É incrível o quanto as pessoas se enganam com as aparências, não é mesmo? Quem diria que um livro, visualmente infantil, conteria um conteúdo e uma lição que ultrapassa qualquer idade, qualquer geração.


O Pequeno Príncipe é um livro do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, publicado em 1943, nos Estados Unidos. É um livro fantástico, que desperta a magia e o mistério da infância no coração de todos que lerem atentamente, prova para o mundo, que para ser criança basta imaginar e acreditar naquilo que se imagina, ele reconstrói a ideia de que não envelhecemos, apenas deixamos que a criança que vive dentro de nós, adormeça.
Mas, com certeza, para nós, que compreendemos o significado da vida, os números não têm tanta importância.” - O Pequeno Príncipe.
Essa história emocionou e emociona até hoje pessoas de todas as idades e de todos os cantos do mundo , ele traz de volta memórias que já haviam sido esquecidas, ele abre os olhos para que os “adultos” observem com mais calma o dia-a-dia, para que consigam olhar as coisas com a mesma bondade e ingenuidade de uma criança.
Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso.” - O Pequeno Príncipe.
Em 2015, essa história ganha vida novamente, e vai para as telas de cinema, para contar a mesma história, mas com uma abordagem um tanto diferente: Uma garota acaba de se mudar com a mãe, uma controladora obsessiva que deseja definir antecipadamente todos os passos da filha para que ela seja aprovada em uma escola conceituada. Entretanto, um acidente provocado por seu vizinho faz com que a hélice de um avião abra um enorme buraco em sua casa. Curiosa em saber como o objeto parou ali, ela decide investigar. Logo conhece e se torna amiga de seu novo vizinho, um senhor que lhe conta a história de um pequeno príncipe que vive em um asteroide com sua rosa e, um dia, encontrou um aviador perdido no deserto em plena Terra.
Vivemos em um momento em que tudo é superficial e acontece em um instante, as pessoas não enxergam mais as coisas que realmente possuem valor, não dão á devida atenção para aquilo que não pode ser comprado ou vendido, a vida tornou-se comercial. O mundo está de ponta cabeça e ninguém reparou, opa, ninguém não, Antoine de Saint-Exupéry percebeu isso ainda nos anos 40.
Uma das frases do livro que mais me chamou a atenção foi a seguinte: “Que planeta engraçado, é completamente seco, pontudo e salgado, os homens não tem imaginação”. Essa frase é engraçada, mas muito realista, não nos damos conta que nos deixamos levar pela rotina, nossos dias são todos iguais, “secos, pontudos e salgados”, o lado doce e arriscado da vida sempre acaba ficando para mais tarde, para uma outra hora, um outro momento.
As pessoas precisam voltar a admirar as coisas simples, a observar os gestos da natureza, precisam se apaixonar por olhares e por sorrisos, precisam voltar a ter o poder de amar e não o de amar o poder, precisam voltar a sonhar, precisam perceber que a vida é curta demais para valorizar as coisas finitas, não podem deixar que a vida, os problemas, a maturidade, o trabalho entediante, faça com que a criança alegre e adormecida dentro de cada um nós, morra.
Eis o meu segredo: é muito simples, só se vê bem com o coração.” - O Pequeno Príncipe.
Sarah Vianna, in obviousmag.org

Façamos

Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. No dia em que não não fazemos apenas duramos.”
Padre Antônio Vieira

Uma didática da invenção

I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X
Não tem altura o silêncio das pedras.
Manoel de Barros

Verdadeiro amor

O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele, mas poucos o viram.”
La Rochefoucauld

O mito de Mona Lisa

O historiador inglês Donald Sasson no livro “Mona Lisa” faz um levantamento histórico das razões que levaram o quadro de Da Vinci a se tornar a maior referência em obras de artes que o mundo já viu.


Pense rapidamente, qual é a pintura mais famosa do mundo? Segundo uma pesquisa realizada na Itália, a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci ganha disparada de qualquer outro, com mais de 73% de lembrança espontânea. Se isso é até que relativamente fácil de se entender, o nó da questão reside justamente no por quê?
Este último ponto é a grande questão levantada pelo historiador inglês Donald Sasson no livro “Mona Lisa” (editora Record). Em suas 285 páginas de texto efetivo, ele faz um levantamento histórico das razões que levaram o quadro de Da Vinci a se tornar a maior referência em obras de artes que o mundo já viu.
Sasson começa da imigração de Leonardo para a França, onde ficou sob tutela da corte real e ali desenvolveu seus trabalhos. Com investigações feitas a partir de textos dos contemporâneos do artista até o século 20, Sasson desenvolve sua obra. Recheado de fatos pitorescos, o autor apresenta os motivos que tornaram Mona Lisa, um ícone das artes visuais e popular também. Do grande redescobrimento da pintura no século 19 e os inúmeros escritores que falam sobre a importância da personagem comparando-a à diversas mulheres históricas como, por exemplo, Helena de Tróia até o seu roubo em 1991, que alavancou de vez o imaginário popular sobre a pintura, são os pontos de destaque de sua pesquisa.
O autor também aproveita para levantar a questão da identidade da modelo de Da Vinci - são inúmeras teorias - e o seu enigmático sorriso, que tornou-se tão importante quanto a própria pintura. Diante do vulto de Mona Lisa, Sasson vê a diluição do pintor renascentista, que vira menos “famoso” do que sua arte, coisa muito difícil de se acontecer, principalmente no mundo atual de grifes. Também compara a histeria coletiva a favor de Leonardo Da Vinci diante de outros gênios, como Rafael e Michelângelo.
Dentro deste universo recheado de idas e vindas, a criação de um mito popular vai sendo revelada. De seu uso na publicidade, de sua participação na arte moderna, como as inúmeras intervenções de artistas como Marcel Duchamp e Fernando Botero, Mona Lisa guarda inúmeras peculiaridades, como a prisão de André Breton após o roubo da pintura e o poeta resolveu entregar outros objetos furtados do Louvre, na França, que estavam em seu poder.
O que Donald Sasson narra, na verdade, é o efeito estético que a obra de arte pode causar e sua apropriação por outros suportes que transformam uma pintura em imaginário coletivo. Analisa também a negação pela chamada “alta cultura” de um objeto tornado popular. Uma discussão muito interessante em épocas de mundo globalizado.
Danilo Corci, in revistaspeculum.wordpress.com

Circunstâncias e decisões na vida

A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as historicamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.
Mas agora é preciso completar o diagnóstico. A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este, este de agora – consiste em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e, consequentemente, força-nos... a eleger. Surpreendente condição a da nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar a nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir.
É, pois, falso dizer que na vida decidem as circunstâncias. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter.”
Ortega y Gasset, in A Rebelião das Massas

Da mesma massa

Seja qual for a forma que a vida humana assuma, os seus elementos são sempre os mesmos. Portanto, naquilo que é essencial, ela é a mesma em toda a parte, seja numa cabana, na corte, no mosteiro ou no exército. Por mais variados que sejam os seus eventos, as suas aventuras, as suas felicidades e as suas desgraças, dá-se com a vida, no entanto, o mesmo que com os produtos do pasteleiro. As figuras são numerosas e variam quanto à forma e cor; todavia, tudo é feito da mesma massa, e aquilo que acontece a um é muito mais parecido com aquilo que ocorreu a outro do que este possa pensar ao ouvir a narrativa. Os acontecimentos da vida assemelham-se às imagens do caleidoscópio, no qual a cada volta vemos algo diferente, mas em verdade temos sempre o mesmo diante dos olhos.”
Arthur Schopenhauer, in Aforismos para a Sabedoria de Vida

Chapeuzinho Vermelho

Fonte: Google Imagens

Os americanos são uma gente divertida. Lá tem sempre uma coisa na moda, a que eles dão o nome de fad. Desses fads um dos mais persistentes tem sido a chamada PC language politically correct language, linguagem politicamente correta. O que é isso? Há jeitos de falar e jeitos errados de falar. Jeito certo de falar é aquele que está de acordo com a ideologia. Jeito errado de falar é aquele que não está de acordo com a ideologia – heresias. As heresias na fala não podem ser toleradas. Têm de ser eliminadas. A Inquisição foi um exercício de PC language. Quem falasse linguagem diferente daquela que a Igreja havia definido como correta ia para a fogueira. O Generalíssimo Franco também fez uso da PC language. A palavra “seio” foi proibida, como erótica. O erótico é herético... Poeta que usasse a palavra “seio” num poema corria o risco de ir para o garrote vil. A PC language americana proíbe que se use a palavra “ele” para se referir a Deus. Isso é machismo! Então Deus é homem? A PC language proíbe que se contem piadas que façam gozação e humilhem certos grupos sociais como gays, negros, mulheres. Eu acho que está muito certo. Mas logo aparecem os ultraortodoxos. Os ultraortodoxos se põem logo a caçar bruxas e a policiar a fala. Falar é muito perigoso... Uma vez, fazendo uma fala nos USA, usei a expressão “to be impregnated” — ser engravidado — num sentido metafórico. Pois uma senhora, do auditório, interferiu prontamente em nome da PC language, dizendo que eu estava usando “sexist language”…
Encontrei numa livraria de aeroporto um livro de estórias infantis reescritas segundo a PC language. Claro, o escritor estava fazendo gozação. Aí me deu um impulso de reescrever a estória do Chapeuzinho Vermelho para os dias de hoje, seguindo as linhas da PC language, mesmo porque não há criança que acredite na estória como foi escrita.
Era uma vez uma jovem adolescente a quem todos conheciam pelo apelido de Rúbia. Rúbia é uma palavra derivada do latim, rubeus, que quer dizer vermelho, ruivo. Rúbia era ruiva. Ruiva porque tingira o seu cabelo castanho que ela considerava vulgar. Ela pensava que uma ruiva teria mais chances de chamar a atenção de um empresário de modelos que uma morena. Morenas há muitas. O vermelho dos seus cabelos era confirmado pelo seu temperamento: ela era fogo e enrubescia quando ficava brava.[Nota 1: Se, nessa estória, eu lhe desse o nome de Chapeuzinho Vermelho ninguém acreditaria. As adolescentes de hoje não andam por aí usando chapeuzinhos vermelhos…]
Rúbia morava com sua mãe numa linda mansão no condomínio "Omegaville". Pois numa noite, por volta das 10 horas, sua mãe lhe disse: "Rubinha querida, quero que você me faça um favor..." Rúbia pensou: "Lá vem a mãe de novo". E gritou: "De jeito nenhum. Estou vendo televisão...". "Mas eu ia até deixar você dirigir o meu BMW...", disse a mãe. Rúbia se levantou de um pulo. Para guiar o BMW ela era capaz de fazer qualquer coisa. "Que é que você quer que eu faça, mamãezinha querida?", ela disse. "Quero que você vá levar uma cesta básica para sua vovozinha, lá no Parque Oziel. Você sabe: andar de BMW, depois das 10 da noite, no Parque Oziel é perigoso. Os sequestradores estão à espreita..." [Nota 2: a estória original contém dois problemas, relativos ao caráter e às intenções da mãe. Primeiro: mandar uma menina pequena, sozinha, pela floresta, sabendo que havia um lobo solto — ou a mãe era um tola irresponsável ou ela estava com impulsos assassinos em relação à filha, desejando que o lobo a comesse. O segundo problema: viviam sozinhas a mãe e a filha; não há referências a um pai ou marido. Então, qual a razão para que a avó morasse do outro lado da floresta? Não seria mais prático que elas vivessem juntas? Chapeuzinho não teria que enfrentar um lobo para que a vovozinha comesse queijos, bolos e ovos…]
Rúbia já estava saindo da garagem com o BMW quando sua mãe lhe gritou: "A cesta básica! Você está se esquecendo da cesta básica!" Com a cesta básica no BMW Rúbia foi para a casa da vovozinha, no Parque Oziel. Foi quando o inesperado aconteceu. Um pneu furou. Até mesmo pneus de BMWs furam. Rúbia se sentiu perdida. Com medo, não. Ela não tinha medo. O problema era sujar as mãos para trocar o pneu. Foi quando uma Mercedes se aproximou dirigida por um senhor elegante que usava óculos escuros. Há pessoas que usam óculos escuros mesmo de noite. A Mercedes parou e o homem de óculos escuros saiu. "Precisando de ajuda, boneca", ele perguntou? "Claro", ela respondeu. "Preciso que me ajudem a trocar o pneu furado". "Pois vou ajudar você" disse o homem. "Você precisa de proteção. Esse lugar é muito perigoso. A propósito, deixe que me apresente. Meu nome é Crescêncio Lobo, às suas ordens". Aí ele se pôs a trocar o pneu cantarolando baixinho uma canção que sua mãe lhe cantara: "Hoje estou contente, vai haver festança, tenho um bom petisco para encher a minha pança..." Rúbia, olhando para o Crescêncio Lobo, pensou: "Que homem gentil e prestativo! E ainda canta enquanto trabalha... É dono de uma Mercedes! Acho que minhas orações foram atendidas!" "Pronto", ele disse. "Para onde você está indo, boneca?" "Vou levar uma cesta básica para minha avó." "Pois eu vou segui-la para protegê-la..." E assim, Rúbia, sorridente sonhadora, se dirigiu para a casa de sua avó escoltada por Crescêncio Lobo.
Ao chegar à casa da avó Crescêncio Lobo se surpreendeu. Pensou que ia encontrar uma velhinha, parecida com a avó de Chapeuzinho Vermelho. Que nada! Era uma linda mulher, uma senhora elegante, fina, de voz suave, inteligente. Logo os dois estavam envolvidos numa animada conversa, Crescêncio Lobo encantado com o suave charme e a inteligência da avó, a avó encantada com o encantamento que Crescêncio Lobo sentia por ela. Crescêncio Lobo pensou: "Se não fossem essas rugas, ela seria uma linda mulher…"
Rúbia percebeu o que estava rolando, e foi ficando com raiva, vermelha, até que teve um ataque histérico. Como admitir que Crescêncio Lobo preferisse uma velha a uma adolescente? Começou a gritar, e por mais que os dois se esforçassem, não conseguiram acalmá-la. Passava por ali, acidentalmente, uma viatura do 5º Distrito Policial. Os policiais, ouvindo a gritaria, imaginaram que um crime estava acontecendo. Pararam a viatura e entraram na casa. E o que encontraram foi aquela cena ridícula: uma adolescente ruiva, desgrenhada, gritando como louca, enquanto a avó e o Crescêncio Lobo tentavam acalmá-la. Os policiais perceberam logo que se tratava de uma emergência psiquiátrica e, com a maior delicadeza, (os policiais do 5º DP são sempre assim. Também pudera! O delegado chefe trabalha ouvindo música clássica!) convenceram Rúbia a acompanhá-los até um hospital para ser medicada. Rúbia não resistiu porque ela já estava encantada com a força e o charme do policial que a tomava pela mão. Afinal, aquele policial era lindo e forte!
Quanto à avó e ao Crescêncio Lobo, aquela noite foi início de uma relação amorosa maravilhosa. Crescêncio Lobo percebeu que não há cara de adolescente cabeça-de-vento que se compare ao estilo de uma senhora inteligente e experiente. E a avó, que ouvira de uma feminista canadense que o melhor remédio para a velhice são os galetos ao primo canto, entregou-se gulosamente a esse hábito alimentar gaúcho. Crescêncio Lobo pagou-lhe uma plástica geral e a avó ficou novinha. E viveram muito felizes, por muitos anos. Quanto à Rúbia, aquela crise foi o início de uma feliz relação com o policial do 5º DP, que tinha um mestrado em psicologia da adolescência...”
Rubem Alves, in Correio Popular – Campinas, edição de 02/05/2002

Meu ser natural

(...) enfrentei pela primeira vez o meu ser natural enquanto decorriam os meus noventa anos. Descobri que a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio. Descobri, por fim, que o amor não é um estado de alma mas um signo do Zodíaco.”
Gabriel García Márquez, in Memória das Minhas Putas Tristes

Bushido: o caminho dos samurais

Mais influente do que uma religião, o código de honra e ética japonês chamado Bushido é uma doutrina capaz de subverter toda fraqueza humana. ''A vida de alguém é limitada; a honra e o respeito duram para sempre'' - Samurai Miyamoto Musashi.

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Desenvolvido entre os séculos IX e XII, o Bushido amparou-se nos conceitos do budismo, xintoísmo e confucionismo para elaborar seu próprio ensinamento.
Assim, os guerreiros samurais eram treinados para não sentirem medo da morte, pois acreditavam que através da morte, caso esta fosse digna, renasceriam novamente como guerreiros. Essa crença de existência pós-morte foi espelhada do budismo, assim como técnicas de meditação Zen que eliminavam o temor do guerreiro samurai diante situações de perigo.
O xintoísmo contribuiu para a criação de preceitos como a lealdade, o patriotismo e principalmente a referência aos antepassados. A devoção que o samurai deve ter para com o seu povo e o representante do mesmo, o Imperador, são parte de sua essência. Traição ou desonra não se refletiam apenas sobre o malfeitor: todos seus ancestrais e descendentes seriam contaminados por ela.
Quanto ao confucionismo, ele ressalta as obrigações interpessoais de um samurai, seja para com um irmão, um pai, sua mulher, etc.. Todas estas obrigações são sempre conduzidas pelo ideal de justiça, amor e benevolência.

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A harmonia com a natureza também era contemplada no código Bushido, apoiada na crença de que a Terra não existe apenas para suprir as necessidades dos seres humanos. Um seguidor do Bushido acredita que a terra é residência sagrada dos deuses e dos espíritos de seus antepassados e portanto deve ser zelada com um amor intenso.
Quanto à educação de um guerreiro samurai, ela não girava somente em torno de técnicas apuradas de combate ou estratégias de batalha. Durante seu tempo dispensado dos deveres militares e sociais, deveria apreciar artes e culturas gerais, bem como aprender ofícios que nada tinham a ver diretamente com sua guerrilha. O conhecimento era uma forma de poder independente e isto também engrandecia um grande guerreiro.

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Todos estes ideais já explanados poderão ser identificados nas 7 virtudes do Bushido:
1. GI = Justiça 2. YUU = Coragem 3. JIN = Benevolência 4. REI = Educação 5. MAKOTO = Sinceridade 6. MEIYO = Honra 7. CHUUGI = Lealdade.
Estas virtudes serviam de amparo para o guerreiro diante de qualquer momento de fraqueza (dúvida) e assim o guiavam para a grande busca do Bushido: a morte digna.
Um guerreiro samurai vive para isso. Para morrer com dignidade. Portanto, um samurai jamais poderia recuar em campo de batalha, mesmo que esteja só contra 200 inimigos. Deve empunhar sua espada e defender seu povo juntamente com sua honra.
Esta consciência da morte contribuía para sua destreza no campo de batalha. Ele conseguia extrair força da fragilidade contida no ato de viver e, com todo treinamento recebido, todo seu corpo, movimentos e pensamentos giravam em torno no objetivo principal: morrer com honra. E isto somente seria possível se desse o máximo de si no campo de batalha.

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Caso o samurai falhe no exercício de morrer com honra, ele poderá praticar o seppuku (ritual de suicídio) para recuperá-la. Digamos por exemplo que um guerreiro samurai sinta medo momentos antes da batalha e fuja. Este ato viola todo o código Bushido e, portanto, o guerreiro em questão terá que enfiar sua arma (espada, punhal) no próprio abdomem, realizando um rasgo de aproximados 180 graus. Um corte de uma ponta da costela até a outra. Esse ritual faria com que seu espírito se libertasse e recuperasse a honra. O seppuku era portanto uma das maiores demonstrações de devoção ao Bushido. Guerreiros mortalmente feridos que enfrentavam um adversário que não lhes proporcionaria uma morte justa também praticavam o Seppuku, em um contexto ainda mais digno, obtendo assim um grau de respeito incalculável pelos seus companheiros, familiares e o império em geral.

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Nos dias atuais, após dois séculos de erradicação dos samurais como classe social, o Bushido permanece vivo na cultura japonesa. O que não poderia ser diferente, uma vez que este povo esteve em contato por nove séculos com a arte samurai.
Quando contemplamos o Japão e a sua capacidade de recuperação (basta pensar que em 30 anos conseguiu se reerguer da devastação da II Guerra Mundial e tornar-se uma das maiores potencias econômicas mundiais), é impossível não pensar que o Bushido contribuiu diretamente para tal feito.
Apesar de estes valores estarem amainados na sociedade japonesa e muitas das novas gerações acreditarem que são ideais pertencentes ao passado, há lugares onde o Bushido mantém sua forma próxima da original. São os dojos de Kobudo. Lá sobrevivem, de fato, os últimos samurais.
Os homens devem moldar o seu caminho. A partir do momento em que você vir o caminho em tudo que fizer, você se tornará o caminho” - O livro dos cinco anéis, Miyamoto Musashi.
Tiago Vargas, in obviousmag.org