terça-feira, 30 de junho de 2015

Cerimonial

 “Meu amigo Ernst Lederer escrevia poemas com uma tinta especial, azul-clara, sobre lindas folhas de papel de ótima qualidade.
Falei sobre isso a Kafka, que disse:
-Ele tem razão. Cada mágico tem seu cerimonial. Haydn, por exemplo, só compunha colocando uma peruca solenemente empoada. O ato de escrever é uma forma de evocar espíritos.”
Gustav Janouch, in Conversas com Kafka

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las…
que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!
Mário Quintana

Justo e sábio na medida certa

 “Não sejas muito justo; nem mais sábio do que é necessário, para que não venhas a ser estúpido.”
Eclesiastes, 7, 16

Manga


Ernest Jünger, grande escritor alemão que esteve há algum tempo no Brasil, conta que aqui desceu e foi direto ao Jardim Botânico. O que mais o impressionou: uma manga.
Lúcio Cardoso, in Diários

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Possuir verdadeiramente a alma

São muito raros aqueles que morrem tendo possuído verdadeiramente a sua alma. Com frequência, nem sequer a conheceram. Desde a primeira idade, tiveram na sua frente os exemplos que lhes pareciam ótimos e, a pouco e pouco, lhes moldaram, comprimiram e mascararam a sua natureza. Se essa natureza era baixa e pobre e os exemplos foram bem escolhidos, a imitação evitou mais um idiota ou delinquente.
Todavia, em muitos casos, trata-se de naturezas ricas e generosas que teriam podido dar mais do que obtiveram com o método quadrúmano - e vale muito mais um talento pequeno, mas novo, do que a imitação medíocre de um gênio.
Mas quase ninguém se atreve a ser o que é e todos querem ser outros. E como nem a todos se adapta o modelo que escolheram, a imitação resulta quase sempre inferior ao modelo: um desenho tosco efetuado numa parede vale sempre mais do que uma cópia da Sibila de Miguel Ângelo.
Mas o homem não pode deixar de copiar e não faz senão copiar: é um fabricante de duplicados. Porque quer ter uma réplica do mundo, reduzida às proporções humanas e aos seus gostos.”
Giovanni Papini, in Relatório Sobre os Homens

Soneto

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.
Luís Vaz de Camões

Medo das teses

Eu tenho medo das “teses” quando se apoderam de um artista jovem, sobretudo nos começos da sua carreira. E sabem o que eu temo? Muito simplesmente que não consiga os objetos da tese. Pensará um simpático crítico, a quem li há pouco e cujo nome agora não vou citar, que toda a obra artística isenta de tese prévia, realizada exclusivamente com um objetivo artístico, e até de assunto inteiramente secundário e não correspondendo a nada de “tendencioso” possa resultar nuns proveitos para o seu objetivo ainda que à primeira vista dê a impressão de satisfazer apenas “uma ociosa curiosidade”? Porventura as nossas pessoas cultas ainda não se deram conta do que pode passar-se no coração e na inteligência dos nossos escritores e artistas jovens? Que confusão de ideias e de sentimentos preconcebidos!
Sob a pressão da sociedade, o jovem poeta sufoca na alma o seu natural anelo de espraiar-se em formas singulares; receia que condenem a sua “ociosa curiosidade”; reprime essas formas que lhe brotam do fundo da alma; nega-lhes vida e atenção e arranca de dentro, entre espasmos, o tema que à sociedade agrada, que é grato à opinião liberal e social. Mas que erro tão horrivelmente cândido e ingênuo, que erro tão crasso! Um dos mais grosseiros erros consiste em que a denúncia do vício (ou do que ao liberalismo se antolha como tal) e a incitação ao ódio e à vingança se consideram o único caminho possível para a consecução do fim. Contudo, até mesmo nesse exíguo caminho um grande talento poderia desenvolver-se e não se afundar nos princípios da sua carreira; bastaria recordar-se mais amiúde da regra áurea, de que as palavras que se dizem são de prata e as que se calam... são de ouro. Há talentos notáveis que prometiam muito, mas a quem a tendência corroeu de tal modo que lhes encaixou um uniforme.
Fiodor Dostoievski, in Diário de um Escritor

domingo, 28 de junho de 2015

Coragem e fé

 “De Ulisses ela aprendera a ter coragem de ter coragem de ter fé – muita coragem, fé em quê? Na própria fé, que a fé pode ser um grande susto, pode significar cair no abismo, Lóri tinha medo de cair no abismo e segurava-se numa das mãos de Ulisses enquanto a outra mão de Ulisses empurrava-a para o abismo – em breve ele teria que soltar a mão menos forte do que a que a empurrava, e cair, a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre. A mais premente necessidade de um ser humano era tornar-se um humano.”
Clarice Lispector, in Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

Burrice

Caminhavam dois burros, um com carga de açúcar, outro com carga de esponjas.
Dizia o primeiro:
Caminhemos com cuidado, porque a estrada é perigosa.
O outro redarguiu:
Onde está o perigo? Basta andarmos pelo rastro dos que hoje passaram por aqui.
Nem sempre é assim. Onde passa um, pode não passar outro.
Que burrice! Eu sei viver, gabo-me disso, e minha ciência toda se resume em só imitar o que os outros fazem.
Nem sempre é assim, nem sempre é assim… continuou a filosofar o primeiro.
Nisto alcançaram o rio, cuja ponte caíra na véspera.
E agora?
Agora é passar a vau.
O burro do açúcar meteu-se na correnteza e, como a carga se ia dissolvendo ao contato da água, conseguiu sem dificuldade pôr pé na margem oposta.
O burro da esponja, fiel às suas ideias, pensou consigo:
Se ele passou, passarei também — e lançou-se ao rio.
Mas sua carga, em vez de esvair-se como a do primeiro, cresceu de peso a tal ponto que o pobre tolo foi ao fundo.
Bem dizia eu! Não basta querer imitar, é preciso poder imitar — comentou o outro.
Monteiro Lobato, in Fábulas

Olhos cor de âmbar

A decoração estava diferente. As toalhas eram de outra cor. Os quadros tinham desaparecido das paredes. E ele não reconhecia nenhum dos garçons.
O que houve? – perguntou a um dos desconhecidos.
Pardon, monsieur?
O que houve com este lugar? Está tudo mudado.
Não, não. Desde que eu trabalho aqui, nada mudou.
E o Michel, que fim levou?
Quem, monsieur?
Michel, o garçom mais antigo daqui. Um que adora cachaça. Eu sempre trago uma cachaça para ele, do Brasil. Aliás, estou trazendo uma agora.
Não conheço, monsieur.
Não é possível. Será que ele se aposentou? Não tem ninguém que possa me dar notícias do Michel?
Talvez o Gerard. Ele está aqui há mais tempo do que eu.
Chame o Gerard, por favor.
*****

Alívio! Ele reconheceu o Gerard. Já estava começando a pensar que tinha entrado no restaurante errado. E o Gerard o reconheceu. Ou pelo menos disse que sim, quando ele perguntou:
Lembra que eu venho sempre aqui?
Certamente, monsieur.
E o Michel, se aposentou?
Michel…
Você tem que saber quem é. O velho Michel.
Francamente, eu…
E monsieur e a madame Geroux? Onde estão?
Os dois morreram, monsieur.
O quê?!E o restaurante ficou para a Lola?
Lola, a de olhos cor de âmbar. Filha do casal Geroux. Linda. Ele também sempre trazia um presente do Brasil para a Lola. Desta vez viera disposto a convidá-la a sentar-se com ele, talvez até saírem para passear na beira do Sena. Mas, segundo Gerard, Lola vendera o restaurante e fora morar em Grenoble com o marido. E já era avó.
*****

De repente ele teve uma espécie de vertigem. A Lola avó? Isso queria dizer que o tempo passara mais depressa do que ele pensava. Muito mais depressa. Queria dizer que ele estava delirando, sonhando ou talvez até morto. Seria isso? Voltara ao seu restaurante preferido depois de morto só para ter aquela revelação: nosso tempo não é nosso. O tempo faz o que quer conosco e com a nossa memória, além de nos envelhecer e nos matar. Quando Gerard lhe ofereceu o menu, disse “O de sempre” e viu pelo rosto do garçom que ele não sabia o que era o de sempre. Pediu um Clos des Jacobins como costumava pedir e ouviu Gerard dizer que o restaurante nunca servira aquele vinho.
*****

Na saída do restaurante, teve uma alucinação. A torre Eiffel estava pela metade. O topo da torre ruíra. Uma mensagem final do que o tempo pode fazer com o ferro, o que dirá conosco.
Luís Fernando Veríssimo

Prazer e dor

Algumas vezes me ocorreu pensar que há duas classes de épocas históricas: em umas, os homens se preocupam mais em buscar os prazeres que evitar as dores; em outras, acontece o inverso.”
Ortega y Gasset

sábado, 27 de junho de 2015

As nossas possibilidades de felicidade

É simplesmente o princípio do prazer que traça o programa do objetivo da vida. Este princípio domina a operação do aparelho mental desde o princípio; não pode haver dúvida quanto à sua eficiência e, no entanto, o seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não pode simplesmente ser executado porque toda a constituição das coisas está contra ele; poderíamos dizer que a intenção de que o homem fosse feliz não estava incluída no esquema da Criação. Aquilo a que se chama felicidade no seu sentido mais restrito vem da satisfação — frequentemente instantânea — de necessidades reprimidas que atingiram uma grande intensidade, e que pela sua natureza só podem ser uma experiência transitória. Quando uma condição desejada pelo princípio do prazer é protelada, tem como resultado uma sensação de consolo moderado; somos constituídos de tal forma que conseguirmos ter prazer intenso em contrastes, e muito menos nos próprios estados intensos. As nossas possibilidades de felicidade são assim limitadas desde o princípio pela nossa formação. É muito mais fácil ser infeliz.
O sofrimento tem três procedências: o nosso corpo, que está destinado à decadência e dissolução e nem sequer pode passar sem a ansiedade e a dor como sinais de perigo; o mundo externo, que se pode enfurecer contra nós com as mais poderosas e implacáveis forças de destruição; e, por fim, a relação com os outros homens. A infelicidade que esta última origina é talvez a mais dolorosa de todas; temos tendência para a considerar mais ou menos um suplemento gratuito, embora não possa ser uma fatalidade menos inevitável do que o sofrimento que provém das outras fontes.
Não é de admirar que, debaixo da pressão destas possibilidades de sofrimento, a humanidade esteja habituada a reduzir as suas exigências de felicidade, nem que o próprio princípio do prazer se modifique para um princípio da realidade mais acomodado sob a influência do ambiente externo. Se um homem se julga feliz, fugiu simplesmente à infelicidade ou a dificuldades. Em geral, a tarefa de evitar o sofrimento atira para segundo plano a de obter a felicidade. A reflexão mostra que há várias formas de tentar cumprir esta tarefa; e todas estas formas foram recomendadas por várias escolas de sabedoria na arte da vida e posta em prática pelos homens. A satisfação desenfreada de todos os desejos impõe-se em primeiro plano como o mais atrativo princípio orientador da vida, mas implica preferir o gozo à prudência e penaliza-se depois de uma curta satisfação. Os outros métodos, nos quais o evitar do sofrimento é o principal motivo, distinguem-se segundo a fonte de sofrimento contra a qual estão dirigidos. Algumas destas medidas são extremas e outras moderadas, algumas são unilaterais e outras tratam vários aspectos do assunto ao mesmo tempo. A solidão voluntária, o isolamento dos outros, é a salvaguarda mais rápida contra a infelicidade que possa surgir das relações humanas. Sabemos o que isto significa: a felicidade encontrada neste caminho é a da paz. Podemos defender-nos contra o temido mundo externo, voltando-nos simplesmente para uma outra direção, se a dificuldade tiver que ser resolvida sem ajuda. Há na realidade um outro caminho melhor: o de cooperar com o resto da comunidade humana e aceitar o ataque à natureza, forçando-a a obedecer à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos.
Sigmund Freud, in A Civilização e os Seus Descontentamentos

Pensar

A via pela qual se ensinou durante tanto tempo a arte de pensar - com certeza é oposta ao dom de pensar.”
Voltaire

Um mundo sem excomungados

Quero viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém. Não diria, amanhã, a esse sacerdote: “Você não pode batizar ninguém porque é anticomunista.” Não diria ao outro: “Não publicarei o seu poema, o seu trabalho, porque você é anticomunista.” Quero viver num mundo em que os seres sejam simplesmente humanos, sem mais títulos além desse, sem trazerem na cabeça uma regra, uma palavra rígida, um rótulo. Quero que se possa entrar em todas as igrejas, em todas as tipografias. Quero que não esperem ninguém, nunca mais, à porta do município para o deter e expulsar. Quero que todos entrem e saiam sorridentes da Câmara Municipal. Não quero que ninguém fuja em gôndola, que ninguém seja perseguido de motocicleta. Quero que a grande maioria, a única maioria, todos, possam falar, ler, ouvir, florescer. Nunca compreendi a luta senão como um meio de acabar com ela. Nunca aceitei o rigor senão como meio para deixar de existir o rigor. Tomei um caminho porque creio que esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto pela bondade ubíqua, extensa, inexaurível. De tantos encontros entre a minha poesia e a polícia, de todos esses episódios e de outros que não contarei porque repetidos, e de outros que não aconteceram comigo, mas com muitos que já não poderão contá-los, resta-me no entanto uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo sabendo que sobre as nossas cabeças, sobre todas as cabeças, existe o perigo da bomba, da catástrofe nuclear, que não deixaria ninguém nem nada sobre a Terra. Pois bem: nem isso altera a minha esperança. Neste momento crítico, neste sobressalto de agonia, sabemos que entrará a luz definitiva pelos olhos entreabertos. Entender-nos-emos todos. Progrediremos juntos. E esta esperança é irrevogável.
Pablo Neruda, in Confesso que Vivi

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Festas Juninas pelo Brasil

Em Salvador - BA

 
Em Bananeiras - PB

Em Sítio da Trindade, Recife - PE

Em Campina Grande - PB

Servidão


Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranquila. Sem isso, seríamos forçados a mudar de opinião, ficaríamos loucos de dor, ou até modestos, deve-se temer tudo. Por isso, nada de insígnias, e isto é escandaloso. Aliás, se todo mundo se sentasse à mesa e ostentasse sua verdadeira profissão, sua identidade, já nem saberíamos para que lado haveríamos de nos voltar! Imagine os cartões de visita: Dupont, filósofo apavorado ou proprietário cristão ou humanista adúltero, na verdade, nós temos a escolha. Mas seria o inferno! Sim, o inferno deve ser assim: ruas com insígnias e nenhuma possibilidade de explicação. Fica-se classificado de uma vez para sempre.”
Albert Camus, in A queda

Inventário

Esta epiderme há muitos muitos anos
me cobre: guarda algumas cicatrizes,
outras não lembra mais, e até mistura
uns caminhos da infância a outros de agora.

As unhas não direi que são as mesmas
com que o seio nutriz terei vincado:
são mais duras, mais feias e mais sujas
pois nem sempre de amor e entrega foi
o chão em que plantei, colhi nem sempre.

Se os dentes não gastei, gastei meus olhos
entrevendo paisagens, vendo coisas,
cegando-me ante sésamos de sombra.

A alma apanhou demais e vai pejada,
mas vão leves as mãos cheias de nada.
Geir Campos

Gatos


Ele fixaria em Deus aquele olhar de esmeralda diluída, uma leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Às vezes, quando a ordem coincide com sua vontade, ele atende mas sem a instintiva humildade do cachorro, o gato não é humilde, traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo.
Mas espera, já estou me precipitando, eu pensava naquela fábula da infância: é que Deus Nosso Senhor pediu água ao cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos e mesuras foi levá-lo ao Senhor. Pedido igual foi feito ao gato e o que fez o gato? O fingido escolheu um copo todo rachado, fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo nojento na mão divina.
Acreditei na fábula, na infância a gente só acredita. Mais tarde, conhecendo melhor o gato, descobri que ele jamais teria esse comportamento, questão de feitio. De caráter. Ele ouviria a ordem e continuaria deitado na almofada, olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas como o chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que cachorro que até dormindo se parece com o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhada, só cachorro. Meus cachorros riam demais abanando o rabo, que é o jeito natural que eles têm de manifestar alegria, chegavam mesmo a rolar de rir, a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos, como se os ferisse a luz. Esse é o sorriso do gato – ô bicho sutil! Indecifrável. Inatingível.
Nem pior nem melhor do que o cachorro, mas diferente. Fingido? Não, ele nem se dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu da moda mas deveria ser reconduzida, não existe melhor definição para a alma do felino. E de certas pessoas que falam pouco e olham. Olham. Cavilosidade sugere esconderijo, cave – aquele recôncavo onde o vinho envelhece. Na cave o gato se esconde, ele sabe do perigo. Mas o cachorro se expõe, inocente.
Foi na minha juventude que conheci o gato bem de perto. Me preparava para os vestibulares da Academia do Largo de São Francisco, era noite. E eu lia Iracema sem vontade, lia em voz alta, aos brados, para espantar o sono. Então ouvi um ruído brusco de coisa algodoada entrando pela janela e parando atrás da minha cadeira. Senti o olhar da coisa se fixando em mim. Fui me voltando devagar, afetando aquela calma que estava longe de sentir: um gato malhado, espetado nas quatro patas, me encarava, perplexo. Eu também perplexa. Fomos nos recuperando do susto, eu menos tensa do que ele. Meu apartamento era no primeiro andar de um prédio cercado de casario e essa janela da sala dava para o telhado de uma casa velhíssima, por onde transitavam os gatos do bairro.
Por onde andam hoje os gatos que não encontro mais nenhum. Naquele tempo havia gato à beça nos muros, nos telhados. “É que a vida apertou e gato dá um bom cozido”, explicou o jornaleiro. A fome aumentou e o telhado diminuiu, onde agora os telhados nos quais eles ficavam tomando sol? Caçando passarinho. Amando. Os ratos todos em plena circulação, fortalecidos. E os gatos, onde estão os gatos? Pois aquele era um gato de telhado, as manchas amarelas e pretas num fundo branco. E os olhos. Por alguma razão obscura, escolheu minha casa: estendi a mão afeita a acariciar cabeça de cachorro. Mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro – primeira lição que ele deu ao recuar com uma soberba que me confundiu. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso de amor repentino: mais um movimento de aproximação e ele fugiria ventando.
Fui buscar o pires de leite, deixei-o ao alcance do visitante da noite e continuei a ler o romance da virgem dos lábios de mel, mas em voz baixa, intuí que ele preferia o silêncio. Ele ou ela? Sexo de gato não é nítido como sexo de cachorro, outra diferença importante. Leva algum tempo para a descoberta do sexo, da unha e da idade.
Gato ou gata, vai se chamar Iracema, resolvi. E deixei meu hóspede, a casa é sua.Então ouvi o ruído delicado, ele bebia leite, mas não como os cachorros bebem, sofregamente, espirrando em redor. O gato é discreto. Há que amá-lo discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
Tudo passa sobre a terra!” – estava escrito no final do romance que achei triste. Olhei para a outra Iracema que dormia no meio do tapete. Também você vai passar? Tu quoque, Iracema?! Não sabia ainda que permaneceria infinita na minha finitude.”
Lygia Fagundes Telles, in A disciplina do amor

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Coragem

Não é preciso muita coragem quando não se pode fazer outra coisa”.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

Cuidados para um leitor

Não há dúvida nenhuma: se um leitor não se tem firme nos pés diante de certos livros e de certos autores, acontece-lhe como quando a gente se debruça a uma alta janela e olha com adesão exagerada para o fundo: atira-se dali abaixo. E coisa curiosa: tanto monta que o aceno venha dum clássico, como dum romântico, como dum realista, como dum futurista. Desde que a mão feiticeira que o faz saiba da sua poda, um homem, que ainda ontem era enforcado de Villon, passa a satânico de Baudelaire sem qualquer cerimônia.”
Miguel Torga

Sobre a tortura

Uma estranha consequência que necessariamente decorre do uso da tortura é que o inocente se acha numa posição pior que a do culpado. Com efeito, se ambos são submetidos ao suplício, o primeiro tem tudo contra si, uma vez que ou confessa o delito e é condenado, ou é declarado inocente, mas sofreu uma pena não merecida; ao passo que, um caso é favorável ao culpado quando, resistindo à tortura com firmeza, deverá ser absolvido como inocente, trocando uma pena maior por uma menor. O inocente, portanto, só tem a perder e o culpado a ganhar.”
Cesare Beccaria, in Dos delitos e das penas

Coração

Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe.”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já…

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida…

Saudade é sentir que existe o que não existe mais…

Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam…

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.

E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
Pablo Neruda

Imprevisível

A gente se acostuma com tudo nessa vida, mas a arte de fazer cada encontro ser diferente, essa eu deixo passar porque contigo o imprevisível é sempre a melhor opção.”
Caio Fernando Abreu

Tarcísio Gurgel e as belezas herdadas: o pão da memória

Tarcísio Gurgel e as belezas herdadas: o pão da memória

É fato que num mundo cada vez mais frenético, até certo ponto insensível e iconoclasta quanto às coisas do passado e dos sentimentos e marcas/marcos de origem e telúricos, num ambiente histórico em constante agitação e turbulentas mudanças, embrenhar-se nas veredas da memória se constitui em feito notável, um desafio afetivo-intelectual de elevados valor e monta. O escritor Tarcísio Gurgel, nascido em Mossoró e radicado em Natal, ingressou nessa cápsula do tempo com a coragem dos desbravadores. E nos trouxe de lá, de onde esteve intimorato, “Inventário do Possível”, um conjunto sensivelmente encadernado de memórias e belezas herdadas, ora editado pela “Sarau das Letras” e pela “Edufrn”, com um capricho material e visual que faz merecer o destaque que emprestamos de logo à capa e ao projeto gráfico desenvolvidos por Rafael Sordi Campos.
Já tomando o norte do conteúdo da obra, afirmo que não me surpreendeu ter Tarcísio se enveredado por esse segmento literário da memorialística. Sempre compreendi que o olhar circular de Tarcísio, homem e intelectual que nada perde de vista, faria com que fosse estimulada essa veia. E agora nos traz de presente a todos os seus leitores um livro que, apesar de voltar o foco para o passado, possui uma leveza e um frescor singulares e o cotejo delicado e sutil com o tempo presente, além do estilo beletrista do seu autor, elegante em tudo, destacadamente no uso da palavra, seja travando o bom diálogo pessoal e dedicando atenção adequada aos interlocutores – sabendo deles extrair o essencial e o valioso – seja na escrita altiva e fluente que passeia pelas páginas do livro e pelas pessoas, casas, ruas, cidades e recordadas vivências em meio à sua ancestralidade e a muitos que vivem e compartilham seus dias nos tempos do frenesi de hoje.
Um trecho no capítulo de abertura do livro já prenuncia belezas, não somente de natureza genealógica e histórica, mas de forte conteúdo literário-artístico, que seguem encadeadas na obra: “Das figuras avoengas não me atrevo a falar. Afinal, só dou conta de ter avistado em pessoa Vovô Lôlinha: Lourencinho, o professor Lourenço Gurgel, pai de minha mãe Dalila, na presença de quem cheguei a estar, temeroso de lhe pedir a bênção e olhando-o com os tímidos olhos da infância, em Caraúbas. Dos outros não falo porque sua existência para mim é coisa de oitiva, vagas menções, retratos de álbum de parede, como o do meu outro avô Neco, de Caicó – pai do meu pai Juvenal – semiesquecido, tristemente preso em sua redoma de vidro (como a Rosinha Palatnik do belo poema de Iracema Macedo, em sua tumba) numa das paredes da sala de visitas de nossa casa em Mossoró.”
Tarcísio Gurgel nos presenteia desta feita com o que noutra parte intitula de “prodígio da recuperação memorialística”, como se fosse uma “recherche” proustiana: “Naquela experiência passageira, descobríamos imagens, sons, sabores e odores que viríamos reencontrar tempos depois num poema do meu irmão Deífilo.” A madeleine talvez substituída pelo pão sempre aquecido da poesia e das lembranças, transportando-nos todos ao tempo da paterna Padaria Santa Rita (“o ponto de partida”) e as suas seis portas agora abertas para a visita dos leitores curiosos e ávidos pela narrativa e descrição de belezas herdadas por Tarcísio Gurgel, verdadeiro “fermento” da cultura potiguar. O que nos entrega é documento valioso da memória e é peça estético-literária marcante.
Pelo conjunto saboroso que nos traz, que transcende o interesse familiar do autor, o livro em questão pode muito bem “…ser lido como se fosse um romance…”, como lembra a frase de Natalia Ginsburg, autora de “Léxico Familiar”, que Tarcísio inscreve e destaca nas primeiras páginas da sua imprescindível poética da memória, traduzida e firmada em “Inventário do Possível”.
Lívio Oliveira, in www.substantivoplural.com.br

terça-feira, 23 de junho de 2015

Cartaz para uma feira do livro

Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.”
Mário Quintana, in Caderno H

O que é o amor?

O jovem F. W. tinha se suicidado depois de um amor infeliz. Falamos disso e, no decorrer da conversa, Kafka me disse:
- O que é o amor? Mas é muito simples! O amor é tudo o que intensifica, amplia, enriquece nossa vida. Em direção de todos os cumes e de todos os abismos. O amor é tão pouco problemático quanto um veículo. Só há como problemática o condutor, os passageiros e a estrada.
Gustav Janouch, in Conversas com Kafka

Dura ação

Não adianta esmurrar a ponta da faca
Não adianta lutar como um guerreiro de Esparta
E exibir a cicatriz como prêmio de guerra
Ser a pedra que estilhaça o vidro da janela.

O grito, o rosnar, a absoluta beleza
A absoluta razão, a absoluta regra, a absoluta certeza
O mais perfeito entendimento, a precisão, a destreza
O ouvido absoluto, a nota certa, a pureza.

A perfeição vinda de um ser é imperfeita
Uma mentira, um arremedo, uma imitação mal feita
E a rigidez, a dureza, toda dedicação em tentar consegui-la
É o mais precioso tempo perdido em tentar contemplá-la.

Mas sou forte, sou viga, sou aço!
Assim sei viver, é como me acho
Seguro, controlo, retenho, não vou
É o que reconheço, é o que tenho, o que sou.

Subindo a escada que desce
Desfiando o tecido que tece
Vendo um bebê na criança que cresce
Indo dormir quando o sol aparece.

Roberta Estrela D’Alva

Gosto literário

 “Difícil falar de um gosto literário de hoje. Essa unificação e engano, creio. Parece-me, contudo, que tudo quanto venha produzir estranhamento e balançar sedimentações culturais é válido, em princípio. Talvez a questão seja justamente essa: ao invés de 'falar para' a literatura de hoje, o texto antigo deve 'falar a' literatura de hoje, sê-la ela própria, de maneira transitivamente direta: uma ruína falando a outra, evitando a exterioridade de 'falar para'.”
Mamede Mustafa Jarouche

Escrevemos

Escrevemos para provar a vida duas vezes: no momento e em retrospectiva.”
Anaïs Nin

segunda-feira, 22 de junho de 2015

O bisonte de Altamira, de Marcus Fabiano Gonçalves

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A fera fornida de uma locomotiva herbívora: potestade e butim de proteínas. gozando dos reais arrimos da caça exclusiva, o bisonte lambe no córrego a chaga aberta pela flecha cega. acompanha o homem da pólvora à pedra. vão suas peles sobre corpos e frestas, despojos sob neves de inúmeras eras. de faro bufante e olhos gélidos, ele enxerga cheiros até na relva mais úmida. aos cercos da caça nem sempre sucumbe. ouve ao longe o passo oculto que o espreita e desconfia ruminando gravetos, ossos que ele pisoteia sob as cotas da lã feita de sua juba. o bisonte foi o leão bovino das tundras.
em sua bolha de couro e sangue, o bisonte entre manadas de carcaças. de suas omoplatas surgiram machados. o Minotauro e o Ápis foram seus melhores disfarces, bem como os troféus dos taxidermistas mais hábeis. o apojo do seu leite consagrou a primeira libação à tauromaquia. quem o bebe em seus cornos inventa o copo e a xícara. sua ossatura é inteiramente granítica (quartzo, feldspato e mica). quando estático armazena-se em fúria e porfia. zaino um bisonte em seu próprio sangue se pinta.
no touro do holocausto, no búfalo do arado ou na bossa do zebu no pasto, a longa estirpe do bisonte, a prima letra de todo nome: o áleph, o alif e o alfa. semítico, grego ou fenício, em carne e osso o bisonte é começo e princípio de um A já sempre escrito desapercebido, domesticado e dócil, mugindo como a mansa vaca de um sítio. mas ocultando a dura passagem do vulto ao signo, nosso estreito de Bering entre a caverna e o livro.
LETRA A

Mais parresía

Neste mundo de representação, em que se primam as dissimulações, os fingimentos, as hipocrisias, o acatamento fácil de ideias contrárias e não digeridas, dizer a verdade é uma forma objetiva de ser mal visto, perseguido até.
E um termo que poderia ser mais usual é Parresía, que segundo o filósofo Michel Foucault, significa: “A coragem da verdade que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade que pensa”. Em outras palavras, é um vocábulo que motiva a coragem de se dizer tudo, de se expressar a verdade com a mais pura franqueza.
Portanto, sim à verdade; não à hipocrisia.
Elilson José Batista