domingo, 31 de maio de 2015

Queda

Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha.”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

Para o amor, não faça esforços inúteis

Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho… o de mais nada fazer.”
Clarice Lispector

Não me peçam razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
José Saramago

Vida de cinema

Os filmes que víamos antigamente não nos prepararam para a vida. Em alguns casos, continuam nos iludindo. Por exemplo: briga de socos. Entre as convenções do cinema que persistem até hoje está a de que socos na cara produzem um som que na vida real nunca se ouviu. O choque de punho contra rosto fazia estrago nos rostos — ou não fazia, era comum lutas em que os brigões quase se matavam a murros terminarem sem nenhuma marca nos rostos — mas poupava os punhos. E como sabe quem, mal informado pelo cinema, entrou numa briga a socos, o punho quando acerta o alvo sofre tanto quanto o alvo.
No cinema de antigamente você já sabia: quando alguém tossia, era porque iria morrer em pouco tempo. Tosse nunca significava apenas algo preso na garganta ou uma gripe passageira — era morte certa. Quando um casal se beijava apaixonadamente e em seguida desparecia da tela era sinal que tinham se deitado. E depois, não falhava: a mulher aparecia grávida. Nunca se ficava sabendo o que acontecia, exatamente, depois que o casal desaparecia da tela, a não ser que o filme fosse francês. Pode-se mesmo dizer que o começo da mudança do cinema americano começou na primeira vez em que a câmera acompanhou a descida do casal e mostrou o que eles faziam deitados. Depois desse momento revolucionário não demoraria até aparecerem o beijo de língua e o seio de fora. E chegarmos ao cinema americano de hoje, em que, de cada duas palavras ditas, uma é fucking.
Se a vida fosse como o cinema nos dizia, nunca faltaria bala nas nossas pistolas ou gelo no balde para o nosso uísque quando chegássemos em casa. E sempre que tivéssemos de sair às pressas de um restaurante, atiraríamos dinheiro em cima da mesa sem precisar contá-lo e sem esperar que o garçom trouxesse a nota. Seria uma vida mais simples, a cores ou em preto e branco, interrompida a intervalos por números musicais em que cantaríamos acompanhados por violinos invisíveis, e quando dançássemos com nossas namoradas, seria como se tivéssemos ensaiado durante semanas, e não erraríamos um passo, e seríamos felizes até the end.
Luís Fernando Veríssimo

sábado, 30 de maio de 2015

Otimismo X esperança

Hoje não há razões para otimismo. Hoje só é possível ter esperança. Esperança é o oposto do otimismo. “Otimismo é quando, sendo primavera do lado de fora, nasce a primavera do lado de dentro. Esperança é quando, sendo seca absoluta do lado de fora, continuam as fontes a borbulhar dentro do coração.” Camus sabia o que era esperança. Suas palavras: “E no meio do inverno eu descobri que dentro de mim havia um verão invencível...” Otimismo é alegria “por causa de”: coisa humana, natural. Esperança é alegria “a despeito de”: coisa divina. O otimismo tem suas raízes no tempo. A esperança tem suas raízes na eternidade. O otimismo se alimenta de grandes coisas. Sem elas, ele morre. A esperança se alimenta de pequenas coisas. Nas pequenas coisas ela floresce. Basta-lhe um morango à beira do abismo. Hoje, é tudo o que temos ao nos aproximarmos do século XXI: morangos à beira do abismo, alegria sem razões.”
Rubem Alves, in Concerto para corpo e alma

Ah! mar...

Eu crescia marinheiro em terra seca onde antes estava o mar, carregando o amor entre pálpebras - conchas guardando sonhos. E pelas pernas eu me prendia nos galhos das goiabeiras, tomando o céu por mar. Naufragado com as montanhas, eu me via marinheiro morto.”
Bartolomeu Campos Queirós

Os diferentes estilos

Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.
Estilo interjetivo - Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!
Estilo colorido - Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.
Estilo antimunicipalista - Quando mais um dia e sofrimento e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujo arredores falta água há vários meses, sem falar nas freqüentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?
Estilo reacionário - Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.
Estilo então - Então o vigia de uma construção em Ipanema não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.
Estilo áulico - À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Exa., com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas apreciadas blagues.
Estilo schmidtiano - Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos eram azuis, olhos para a festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte, este rio um pouco profundo caluniado de morte.
Estilo complexo de Édipo - Onde andará a mãezinha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?
Estilo preciosista - No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a Estrela d´Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.
Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata de bolinhas azuis e morreu!
Estilo sem jeito - Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento: Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever, mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste, ah, se eu soubesse escrever.
Estilo feminino - Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sach´s legalíssimo, e dormi tarde, com o Tony. Pois logo hoje minha filha que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Tereza, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que ia te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que tenho horror de gente morta.
Estilo lúdico ou infantil - Na madrugada de hoje por cima o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.
Estilo concretista - Dead dead man man mexe mexe Mensch Mensch MENSCHEIT.
Estilo didático - Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; c) teológico. Policial: o homem em sociedade, o humano: homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma de Deus: epidenômeno. Muito simples, como os senhores veem.
Paulo Mendes Campos, in Crônicas

E havia um tempo...

E havia um tempo em que o meu olhar dizia:
Bom dia, Sr. Dia!”
Era o meu primeiro pensamento ao despertar.
Naquele tempo todas as coisas tinham nome próprio.
O relógio, não era o relógio apenas,
O relógio chamava-se Relógio
E as orações da noite eram ditas diretamente a Deus nosso Senhor.
Tudo era familiar.
Ao alcance da mão, da voz, do olhar.
Depois é que veio a Idade do Conhecimento
E ninguém mais se conhece!
Mário Quintana

Somos controversos

Você pensa honestamente, por isso acaba por odiar o mundo inteiro. Você detesta os crentes porque a fé é um indicador de estupidez e de ignorância; e detesta os descrentes porque não têm fé nem ideal. Odeia os velhos pelas suas mentalidades ultrapassadas, e os novos pelo seu liberalismo.
Tchekhov

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Raízes


Uma vez um homem deitou-se, todo, em cima da terra. A areia lhe servia de almofada. Dormiu toda a manhã e quando se tentou levantar não conseguiu. Queria mexer a cabeça: não foi capaz. Chamou pela mulher e pediu-lhe ajuda.
- “Veja o que me está a prender a cabeça”.
A mulher espreitou por baixo da nuca do marido, puxou-lhe levemente pela testa. Em vão. O homem não desgrudava do chão.
- “Então, mulher? Estou amarrado?
- “Não, mando, você criou raízes.
- “Raízes?”
Já se juntavam as vizinhanças. E cada um puxava sentença. O homem, aborrecido, ordenou à esposa:
- “Corta!
- “Corta, o quê?
- “Corta essa merda das raízes ou lá o que é”…
A esposa puxou da faca e lançou o primeiro golpe. Mas logo parou.
- “Dói-lhe?
- “Quase nem. Porquê me pergunta?
- “É porque está sair sangue”.
Já ela, desistida, arrumara o facão. Ele, esgotado, pediu que alguém o destroncasse dali. “Me ajudem”, suplicou. Juntaram uns tantos, gentes da terra. Aquilo era assunto de camponês. Começaram a escavar o chão, em volta. Mas as raízes que saíam da cabeça desciam mais fundo que se podia imaginar. Covaram o tamanho de um homem e elas continuavam para o fundo. Escavaram mais que as fundações de uma montanha e não se vislumbrava o fim das radiculações.
- “Me tirem daqui”, gemia o homem, já noite.
Revesaram-se os homens, cada um com sua pá mais uma enxada. Retiraram toneladas de chão, vazaram a fundura de um buraco que nunca ninguém vira. E laborou-se semanas e meses. Mas as raízes não só não se extinguiam como se ramificavam em mais redes e novas radículas. Até que já um alguém, sabedor de planetas, disse:
- “As raízes dessa cabeça dão a volta ao mundo”.
E desistiram. Um por um se retiraram. A mulher, dia seguinte, chamou os sábios. Que iria ela fazer para desprender o homem da inteira terra? Pode-se tirar toda a terra, sacudir as remanascentes areias, disse um. Mas um outro argumentou: assim teríamos que transmudar o planeta todo inteiro, acumular um monte de terra do tamanho da terra. E o enraizado, o que que se faria dele e de todas suas raízes? Até que falou o mais velho e disse:
- “A cabeça dele tem que ser transferida”.
E para onde, santos deuses? Se entreolharam todos, aguardando pelo parecer do mais velho.
- “Vamos plantar a cabeça dele lá!”
E apontou para cima, para as celestiais alturas. Os outros devolveram a estranheza. Que queria o velho dizer?
- “Lá, na lua”.
E foi assim que, por estreia, um homem passou a andar com a cabeça na lua. Nesse dia nasceu o primeiro poeta.
Mia Couto, Contos do nascer da Terra

O avarento


Um avarento tinha enterrado seu pote de ouro num lugar secreto do seu jardim.
E todos os dias, antes de ir dormir, ele ia até aquele local, desenterrava o pote e contava cada moeda de ouro para ver se estava tudo lá.
Ocorre que, de tanto repetir aquelas viagens ao mesmo ponto, um ladrão, que já o observava há bastante tempo, curioso para saber o que o avarento estava escondendo, veio na calada da noite, e secretamente desenterrou o tesouro levando-o consigo.
Quando o avarento descobriu sua grande perda, foi tomado de aflição e desespero.
E caindo em prantos, Ele gemia e chorava, enquanto puxava os poucos cabelos que ainda lhe restavam, maltratados pela absoluta falta de cuidados.
Alguém que passava pelo local, ao escutar seus lamentos, quis saber o que acontecera.
Meu ouro! Todo meu ouro!” chorava inconsolável o avarento, “alguém o roubou de mim!”
Seu ouro! Ele estava nesse buraco? Por que você o colocou aí? Por que não o deixou num lugar seguro, como dentro de casa, onde poderia mais facilmente pegá-lo quando precisasse comprar alguma coisa?”
Comprar!” exclamou furioso o Avarento. “Você não sabe o que diz! Ora, eu jamais usaria aquele ouro. Nunca pensei de gastar dele uma peça sequer!”
Então, o estranho pegou uma grande pedra e jogou dentro do buraco vazio.
Se é esse o caso,” ele disse, “enterre então essa pedra. Ela terá o mesmo valor que tinha para você o tesouro que perdeu!”
Moral da história: uma coisa ou posse só tem valor quando dela fazemos uso.
Esopo, in Fábulas

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros

O direito de ser criança


Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças.”
Eduardo Galeano

Persona


Não, não pretendo falar do filme de Bergman. Também emudeci ao sentir o dilaceramento de culpa de uma mulher que odeia seu filho, e por quem este sente um grande amor. A mudez que a mulher escolheu para viver a sua culpa: não quis falar, o que aliviria o seu sofrimento, mas calar-se para sempre como castigo. Nem quero falar da enfermeira que, se a princípio tinha a vida assegurada pelo futuro marido e filhos, absorve no entanto a personalidade da que escolhera o silêncio, transforma-se numa mulher que não quer nada e quer tudo – e o nada o que é? e o tudo o que é? Sei, oh sei que a humanidade se extravasou desde que apareceu o primeiro homem. Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras dizem o que não quero dizer. Também não vou chamar Bergman de genial. Nós, sim, é que não somos geniais. Nós que não soubemos nos apossar da única coisa completa que nos é dada ao nascimento: o gênio da vida.
Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra. Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.
Persona. Tenho pouca memória, por isso já não sei se era no antigo teatro grego que os atores, antes de entrar em cena, pregavam ao rosto uma máscara que representava pela expressão o que o papel de cada um deles iria exprimir.
Bem sei que uma das qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a máscara as esconde. Por que então me agrada tanto a ideia de atores entrarem no palco sem rosto próprio? Quem sabe , eu acho que a máscara é um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor do rosto. Inclusive os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara. E com muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. E a hora da escolha.
Mesmo sem ser atriz nem ter pertencido ao teatro grego – uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível. É, pois, menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa. Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário. Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.
Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar.
É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente – ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem como um ruído oco no chão. Eis o rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá. A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma pessoa”. Como pessoa teve que passar pelo caminho de Cristo.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Nossa superficialidade

Nós combatemos a nossa superficialidade, a nossa mesquinhez, para tentarmos chegar aos outros sem esperanças utópicas, sem uma carga de preconceitos ou de expectativas ou de arrogância, o mais desarmados possível, sem canhões, sem metralhadoras, sem armaduras de aço com dez centímetros de espessura; aproximamo-nos deles de peito aberto, na ponta dos dez dedos dos pés, em vez de estraçalhar tudo com as nossas pás de lagarta, aceitamo-los de mente aberta, como iguais, de homem para homem, como se costuma dizer, e, contudo, nunca os percebemos, percebemos tudo ao contrário.”
Philip Roth

Phillip Long - Raízes No Quintal




Hoje desenhei a distância
Pensei na tua boca tão longe
Tão longe dos olhos
Tão longe de mim
Quero que fique
Quero que finque tuas raízes no quintal.

Hoje desenhei o teu rosto
Lembrei do cheiro e do gosto
Da pele macia
Da falta que faz
Quero que fique
Quero que finque tuas raízes no quintal.


Os dedos serão sempre os dedos
E os dedos procuram o medo
Não quero ser louco
Te amo em paz
Quero que fique
Quero que estenda tuas cores no varal.

Vertigem

A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Importância prática na vida

Uma das causas da infelicidade, da fadiga e da tensão nervosa é a incapacidade para tomar interesse por tudo o que não tenha uma importância prática na vida. Daí resulta que o consciente está sempre ocupado com um número restrito de problemas, cada um dos quais comporta certamente algumas inquietações e cuidados.”
Bertrand Russell

A vida é uma lousa

Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.”
Machado de Assis

Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago

Street Art, do brasileiro Eduardo Kobra, em Boras - Suécia



Imagem em 3D da medalha do Prêmio Nobel, valorizando a história do criador do prêmio, Alfred Nobel.

Sem tradução

É sabido que grupos completos de pensamento atravessam instantaneamente as nossas cabeças, na forma de certos sentimentos, sem tradução para a linguagem humana, menos ainda para uma linguagem literária... porque muitos dos nossos sentimentos, quando traduzidos numa linguagem simples, parecem completamente sem sentido. Essa é a razão pela qual eles nunca chegam a entrar no mundo, no entanto todos os tem.”
Dostoievski 

Das vantagens de ser bobo


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.
O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente: Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros.
Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: “Até tu, Brutus?"
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cimas das casas.
É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Clarice Lispector

Não saber de quê

Que ninguém hoje me diga nada. Que ninguém venha abrir a minha mágoa, esta dor sem nome que eu desconheço donde vem e o que me diz. É mágoa. Talvez seja um começo de amor. Talvez, de novo, a dor e a euforia de ter vindo ao mundo. Pode ser tudo isso, ou nada disso. Mas não o afirmo. As palavras viriam revelar-me tudo. E eu prefiro esta angústia de não saber de quê.”
Fernando Namora

Vida: mutirão de todos

A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

Hino carioca

Na noite do dilúvio, tentando alcançar a pé minha casa, eu me senti bêbado e louco. Caía uma tromba-d'água do céu, e tão espessa que eu mal conseguia respirar. Minhas pernas venciam a custo a densidade da cheia, que me passava dos joelhos; mas eu prosseguia com raiva dos elementos desencandeados, com raiva da cidade passiva ante sua fúria. Caí e me levantei duas vezes imprecando nomes, desafiando o aguaceiro e sua mortalha de lama, querendo briga.
Seriam pelas quatro da manhã e eu me sentia menino e ao mesmo tempo o último herói do mundo. Era tudo vazio à minha volta, e eu não suspeitava a catástrofe que, naquele momento mesmo, se abatia sobre centenas de lares pobres nos morros, o pé-d'água varrendo casebres que se desfaziam caindo pelas encostas; gente a pedir socorro em plena queda; corpos esmagados de crianças e adultos a misturar seu sangue ao barro imundo. Eu seguia cheio de cólera e euforia, o olho atento aos remoinhos, aos movimentos suspeitos da água, ao chupo dos bueiros abertos, patinhando violentamente no lençol de chuva. Ao passar diante de uma garagem inundada, um velho crioulo guardador compreendeu minha luta e me animou:
- É para frente que se anda…
Eu sorri para ele e sua carapinha branca:
- Fique em paz, meu irmão.
E pus-me a cantar cantos de guerra. Quando alcancei meu edifício, brandi meu punho para o alto. Não, não vai ser nem o ressentimento dos covardes, que cria as ditaduras, nem a fúria dos elementos, que gera a calamidade, que irão impedir o homem de chegar ao seu destino - ai dele! - mesmo sabendo de antemão perdida a grande e fatal partida em que foi lançado. Porque o destino dos homens é a liberdade: liberdade para amar, para optar e para criar; liberdade pura e integral, com a dramática beleza dos elementos desencadeados a que se sucedem céus azuis cheios de luz. Liberdade para viver e para morrer, sem medo. Liberdade para cantar seu canto rouco diante da carne translúcida das auroras. Liberdade para desejar, para conquistar o que não lhe é permitido pela estupidez da convenções e pela reserva dos bem-pensantes. Liberdade para ganir sua solidão ante o Infinito. Liberdade para suar sua angústia no Horto da dúvida e do desespero, e subitamente explodir seu riso claro em pleno Cosmos:
- A terra é azul!
Esse é o grande destino do homem: remover os escombros criados pelo ódio e partir de novo, no vento da Liberdade, para a frente e para cima. Que venham os tiranos, que o prendam e torturem, que caiam do céu bolas de fogo - e ele levante-se, roto e ensangüentado, e com a força que lhe dá a Vida parte uma vez mais, em direção à Liberdade.
Vai, favelado, meu pobre irmão dos morros, enterra os teus mortos, remove teus escombros, ergue novos barracos de lama e podridão na perigosa vertente das favelas, recomeça tua vida de música e miséria, e depois toma umas cachaças e cai no samba. Carnaval vem aí, para te fazer esquecer teu destino de lama. Ele é a tua liberdade de três dias, até que recomeces a trabalhar, a roubar, matar, a procriar na lama. Tens mais um ano à tua frente. Aproveita bem desse privilégio, porque ninguém pode prever se até o próximo verão uma nova frente fria vinda da Patagônia não vai encontrar uma grande formação cúmulos-nimbos (ou será que estou dizendo bobagem, senhores meteorologistas?) e a cólera de Deus não vai querer cooperar com a obra de extinção sumária das favelas, tão ao agrado de certos arianos cariocas...
Vinicius de Morais, in Para uma menina com uma flor

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Sorriso

Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o ato de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contração muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no ato de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exatamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irônico, o sorriso de esperança, o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contrações musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso.”
José Saramago

As palavras

Cabe-nos a tarefa irrecusável, seriíssima, dia a dia renovada, de - com a máxima imediaticidade e adequação possíveis - fazer coincidir a palavra com a coisa sentida, contemplada, pensada, experimentada, imaginada ou produzida pela razão. Que cada um tente fazê-lo. Verificará que é muito mais difícil do que se costuma pensar. Porque para os homens, infelizmente, as palavras são de um modo geral toscos substitutos. Na maior parte das vezes o homem pensa ou sabe melhor do que aquilo que exprime.”
Goethe 

Autobiografia sem fatos (15)

Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu.
Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo.
Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.”
Fernando Pessoa, in O livro do desassossego

A medalhança casuística


- Bom-dia, seu Dirceu - Odorico cumprimenta o secretário que lê um jornal de Salvador em posição de absoluto relaxamento, os pés sobre a mesa.
- Bom-dia, coronel - Dirceu se assusta e se compõe, rápido. 
- Me perdoe a franqueza, seu Dirceu, mas o senhor dá uma imagem bastantemente avacalhante do funcionalismo municipal.
- O senhor me desculpe - Dirceu tenta se justificar, corre atrás de Odorico, que entra em seu gabinete, tira o chapéu panamá e o paletó de linho branco, pendura-os no cabide. - Eu tava... tava tendo notícias de Salvador. O senhor sempre pede pra ler e marcar o que interessa.
- Não me refiro ao posturamento intelectual – esclarece Odorico - mas ao descomposturamento corporal. O seu pode ser condizente com um borboletista praticante, mas não é apropriado a um secretário de administração.
- É que eu ta... tava perturbado, não sabe? - Dirceu gagueja, deixa cair o jornal, apanha. - Não vi o senhor entrar.
- Perturbado com quê? - Odorico senta-se à sua mesa de trabalho, mexe nos papéis. - Alguma borboleta pousou na sua sorte?
- Não... Com essa notícia aí. - Dirceu coloca o jornal sobre a mesa, aponta a manchetinha.
- Morreu Asclepíades Tanajura. - Odorico procura lembrar-se. - Asclepíades Tanajura…
- O poeta! Morreu em Salvador.
- É, em Salvador morre de tudo! - lamenta-se Odorico. lembrando-se do cemitério que ainda não conseguiu inaugurar.
- Até poeta. Somentemente aqui em Sucupira é que existe essa crise defuntória que me leva ao desespero.
- Mas ele nasceu aqui.
- Quem?
- O poeta. Asclepíades Tanajura era sucupirano, sabia não? Só que vivia em Salvador há mais de trinta anos.
- Tem certeza?
- Taí na gazeta. É autor de um poema épico chamado "Os Sucupiríadas", em versos alexandrinos. Tanto que era membro da Academia Sucupirana de Letras.
- Mas por que o senhor não me disse isso logo? - Odorico levanta-se, subitamente interessado no passamento do bardo conterrâneo. - Quem sabe a gente pode trazer o corpo pra enterrar aqui? Assim se inaugurava o cemitério. E ia ser uma inauguração de fazer inveja a qualquer campo santo. Até mesmo ao Cemitério de Arlington, onde repousam os grandes estadistas americanos. Ou Les Invalides, onde está enterrado Napoleão.
Nenhum deles foi inaugurado com um poeta.
- E um poeta imortal - ajunta Dirceu, deixando-se empolgar pela ideia do prefeito. - Vamos telefonar à viúva. - Odorico pega o telefone, mas pára, reflete. - Ou quem sabe era melhor eu ir a Salvador?
- E o endereço?
- Alguém deve saber. Ele era da Academia Sucupirana…
- O vigário também é - lembra Dirceu. - E pode, inclusive, ajudar a convencer a viúva.
- Olha lá o vigário! - Dirceu aponta para o alto de um andaime armado em frente à igreja.
- Mas é ele mesmo? - Odorico estranha, vendo o padre, de bermudas, pintando a fachada da igreja, o sacristão embaixo, segurando a escada. - Deu pra andar desuniformizado.
- Bom-dia, coronel - o vigário cumprimenta o prefeito do alto do andaime. - Quer falar comigo?
- Queria... se Vossa Reverendíssima puder aterrizar um instante.
- Mas é o senhor que tá pintando a igreja? - Dirceu estranha.
- Que jeito, seu Dirceu? - O Padre Honório desce a escada, ajudado pelo sacristão Tião Moleza. - Não há dinheiro pra pagar pintores.
- Oxente, mas por que Vossa Reverendíssima não me falou que carecia de um adjutório? - intervém Odorico.
- Há anos que espero por esse adjutório prometido pelo coronel.
- Bom... - Odorico pigarreia - vamos botar de lado esses entretantos e passar logo aos finalmentes. Tenho assunto de urgência urgentíssima a tratar com o senhor.
- Vamos lá pra sacristia. - O padre atravessa a nave da igreja, seguido por Odorico e Dirceu, entra na sacristia, lava as mãos sujas de cal, enquanto o prefeito expõe o problema.
- Daí nos ocorreu que o vigário podia interceder…
- Mas o que é que o coronel deseja de mim? Que eu telefone à viúva e peça pra trazer o corpo do poeta pra Sucupira?
- É - confirma Odorico - não apenasmente como vigário, mas talqualmente como imortal, colega dele na Academia Sucupirana de Letras.
- A Prefeitura pagaria tudo, todas as despesas – reforça Dirceu.
- E com ele inauguraríamos não somentemente o cemitério municipal, como o mausoléu dos imortais, doado pela Prefeitura, onde prafrentemente seriam sepultados todos os membros da Academia Sucupirana de Letras.
- Que beleza - Dirceu vibra, emocionado.
- É, uma beleza - repete o vigário, sem entusiasmo - se o corpo do poeta Asclepíades Tanajura já não tivesse sido sepultado ontem.
- Oxente! Como assim? - Odorico se espanta e mostra o jornal. - Tá aqui na gazeta. Será sepultado hoje, às 16 horas…
- Esse jornal é de ontem, coronel.
- De ontem? - Odorico confere a data, vê que o vigário tem razão, fuzila Dirceu com um olhar, mas ainda insiste. - Será que não se podia exumar o corpo?
- Daqui a alguns anos, é possível. Assim, logo em seguida ao sepultamento, acho difícil. De qualquer maneira, daqui a pouco, na Academia Sucupirana de Letras, será realizada uma sessão de saudade, em homenagem póstuma ao poeta. Por que o prefeito não comparece?
- E finalmente, epilogando esta breve e singela elegia, este preito de saudade ao inspirado bardo sucupirano, ao genial autor das Sucupiríadas, poema épico que nada fica a dever à Odisseia ou à Ilíada de Homero - Perivaldo de Assis, presidente da Academia, enfia os dedos em pente na cabeleira branca, deixa cair algumas caspas sobre o fardão verde-amarelecido, percebe que o vice-presidente, Honestino Junqueira, cochila a seu lado, toma fôlego e continua - declaro vaga a cadeira número 17, que tem como patrono José do Patrocínio, ficando abertas as inscrições por dois meses, como reza o regulamento.
- Sem açúcar, sem açúcar - diz Honestino Junqueira, despertando com uma cotovelada de Lulu Gouveia e com os aplausos dos imortais e dos convidados que lotam o salão.
- E em nome da Academia Sucupirana de Letras - Perivaldo lança um olhar enraivecido a Honestino e a outros imortais que também cochilavam nas cadeiras de espaldar alto - agradeço a presença de todos, notadamente do excelentíssimo sr. Prefeito.
- Obrigado... Muitissimamente obrigado. - Odorico levanta-se, agradece os aplausos acadêmicos que crescem de intensidade com o reforço entusiasta das meninas Cajazeiras e de Dirceu Borboleta, nota que Lulu Gouveia não aplaude e o vigário o faz com muita discrição. - Como diziam os romanos quando falavam latim, ab imo péctore, do fundo do coração. Mas além de agradecer, queria, entrementemente, prestar uma homenagem particular ao saudoso poeta que ora pranteamos. E,  data venia, não vejo homenagem mais superlativa do que me declarar, neste momento, candidato à sua vaga, a gloriosa cadeira 17, que tem como patrono o grande José do Patrocínio.
- Ele é candidato! Ele é candidato! - Juju Cajazeira solta gritinhos histéricos, Dó, Zuzinha e Dirceu Borboleta levantam-se, acompanhando seu entusiasmo, a decisão do coronel caindo como uma bomba no plenário, Odorico agradecendo,sorridente.
- Ad imortalitatem - Odorico estufa o peito, estende o braço, num gesto castro-alvino. - Ad imortalitatem!
Dias, Gomes, in O bem amado: Sucupira, Ame-a ou deixe-a