Fonte: paradoxos
quinta-feira, 30 de abril de 2015
Direitos naturais
Thomas Paine afirma que a história nada prova salvo os nossos erros, dos quais devemos nos libertar. O único ponto de partida para escapar dela é reafirmar a unidade do gênero humano, que a história dividiu. Só assim se descobre que o homem, antes de ter direitos civis que são o produto da história, tem direitos naturais que os precedem; e esses direitos naturais são o fundamento de todos os direitos civis. Mais precisamente: “São direitos naturais os que cabem ao homem em virtude de sua existência. A esse gênero pertencem todos os direitos intelectuais, ou direitos da mente, e também todos os direitos de agir como indivíduo para o próprio bem-estar e para a própria felicidade que não sejam lesivos aos direitos naturais dos outros”.
Norberto Bobbio, in A era dos direitos
Claridade
“Sempre
acreditei que a claridade é a gentileza do filósofo e, além disso,
esta nossa disciplina tem como ponto de honra, hoje mais do que
nunca, estar aberta e porosa a todas as mentes, diferente das
ciências especiais, que cada vez mais com maior rigor, interpõem
entre o tesouro das suas descobertas e a curiosidade dos profanos o
dragão medonho da sua terminologia hermética. Penso que o filósofo
tem que levar até ao limite de si próprio o rigor metódico quando
investiga e persegue as suas verdades, mas que ao emiti-las e
enunciá-las deve evitar o uso cínico com que alguns homens de
ciência se comprazem, como Hércules de feira, em ostentar diante do
público os bíceps
do seu tecnicismo.”
Ortega
y Gasset, in
O Que é a Filosofia?
A revolução dos bichos (excerto)
“Mesmo
miserável como é, nossa vida não chega nem ao fim de modo natural.
Não me queixo por mim, que tive até muita sorte. Estou com doze
anos e sou pai de mais de quatrocentos porcos. Isto é a vida normal
de um barrão. Mas no fim, nenhum animal escapa ao cutelo.
Vós,
jovens leitões que estais sentados à minha frente, não escapareis
de guinchar no cepo, dentro de um ano. Todos chegaremos a esse
horror, as vacas, os porcos, as galinhas, as ovelhas, todos. Nem
mesmo os cavalos e os cachorros escapam a esse destino. Sansão, no
dia em que seus músculos fortes perderem a rigidez, Jones o mandará
para o carniceiro e você será degolado e fervido para os cães de
caça. Quanto aos cachorros, depois de velhos e desdentados, Jones
amarra-lhes uma pedra ao pescoço e os atira na primeira lagoa.
Não
está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa
existência têm origem na tirania dos humanos? Basta que nos
livremos do Homem para que o produto de nosso trabalho seja só
nosso. Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar
ricos e livres. Que fazer, então? Trabalhar dia e noite, de corpo e
alma, para a derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem que eu
vos trago, camaradas: Rebelião! Não sei dizer quando será esta
revolução, pode ser daqui a uma semana ou daqui a um século, mas
uma coisa eu sei, tão certo quanto o ver eu esta palha sob meus pés:
mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Fixai isso, camaradas,
para o resto de vossas curtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta
minha mensagem aos que virão depois de vós, para que as futuras
gerações continuem na luta, até a vitória.
E
lembrai-vos, camaradas, jamais deixai fraquejar vossa decisão.
Nenhum argumento vos poderá desviar. Fechai os ouvidos quando vos
disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a
prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O
Homem não busca interesses que não os dele próprio. Que haja entre
nós, animais, uma perfeita unidade, uma perfeita camaradagem na
luta. Todos os homens são inimigos, todos os animais são camaradas.”
George
Orwell,
in A
revolução dos bichos
quarta-feira, 29 de abril de 2015
Recusa ao prazer
Ele
falava a tarde toda:
-
Afinal nessa busca de prazer está resumida a vida animal.
A
vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu
temor, e sobretudo na insatisfação dos intervalos. É um pouco
simplista o que estou falando, mas não importa por enquanto.
Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade,
bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros
caminhos são a insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer.
Compreende?
-
Sim.
-
Quem se recusa ao prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido,
é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade
perigosa - daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a
chave é quem receia atirar sobre todos.
Clarice
Lispector,
in Perto
do coração selvagem
Desentendimentos
“A
história dos homens é a história dos seus desentendimentos com
deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.”
José
Saramago,
in Caim
Vertical morte
Paraquedista,
a que distância
escolherás
o teu lugar
— sobre
as vogais de tantos olhos,
tu,
leviano como til?
Tão
moço, tinha moço amor
além
da mãe, da irmão, do irmão,
do
companheiro antes alegre
e
triste já pelo que viu:
saltaram
dez, saltaram cem…
Negra
metade do que fora
o
claro salto de um tiziu
ou,
mais, crisântemo de seda
entre
o chão duro e o fofo anil.
Mas
nem foi de abelha o zumbir…
O
paraquedas
não se abriu.
E
era um exercício de paz:
da
paz que as armas não baniu.
Geir
Campos
terça-feira, 28 de abril de 2015
Mais de vinte
“Quentura
do crânio rodete. E esses bichos batendo na cara dum cristão. Me
aposento-me. Uma casa em Japaratuba, que é lugar fresco e
assossegado, junto do rio Japaratuba, que o único defeito é nascer
lá naquelas brenhas de Muribeca, hem Amaro? E fico encostado,
comendo caranguejo. Assino a orelha dum par de cabras de leite e fico
lá encostado, jogando gamão. Doce de leite, hum? Chu. Vida mansa,
não sabe vosmecê. E eu de vinte mortes nas costas. Mais de vinte.
Olhando para mim, não se diz. Mas se eu não sou um homem despachado
ainda estava lá no sertão sem nome, mastigando semente de mucunã,
magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos, uma ruma de
filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino para buscar
as tresmalhadas de qualquer dono. Espiando o dia de São José,
aquelas secas espóticas, nuncão. Aquela chuva que antes de chegar
embaixo já está subindo de novo, de tão queimosa a excomungada da
terra, lembra labaredas. Japaratuba é menos agreste. Compro um
binoclo, na tenção de olhar as paragens. Gosto de binoclos. Mas de
vinte nas costas, veja vosmecê, é como mulher, não se consegue
lembrar todas. A primeira é mais difícil, mas depois a gente
aprende a não olhar a cara para não empatar a obra. De perto demais
não é bom. Se agarram-se na gente, puxam a túnica para baixo.
Verdade que pouco estou de farda, mas quando estou me aborreço que
suje minha farda. Não gosto de estar com uniforme descompleto.
Estradinha da moléstia. Não sei, talvez possa ser melhor comprar
uma plantação boa, num sítio quieto. Mandioca. Interessante, é
venenosa, mas nunca vi ninguém morrer de mandioca, agora todo mundo
sabe que é venenosa. Matar de veneno é porcaria. Conheci um cabo
que bebeu tatu e se vomitou todo. Morreu feio, lançando arroxeado na
cama. O terceiro que morreu na catinga não me lembro o nome. Um com
a cara de peru assoberbado, um vermelho. Teve morte demorada. Bicho
valente, reagiu de facão, de maneiras que tivemos de encher logo o
couro dele. Assim mesmo, a bochecha de Alípio tomou um corte medonho
e ficou escancarada como duas folhas soltas. Ferida feia. Preciso
comprar brilhantina assim que chegar numa cidade de gente. Quando vou
à paisana, o quepe não está para assentar as grenhas. Alípio
queria falar, mas não podia, só assoprava com descontrole de vento.
Donde se vê que a sede da fala também é parte na bochecha. Pouco
sangue, só o bastante para lambuzar mais ou menos o pescoço. Aquilo
como duas bandeiras, uma desencontrando da outra. Compro uma
brilhantina cheirosa e mando aparar as costeletas. Alípio ainda
acertou as tripas do udenista com a baioneta três ou quatro vezes.
Maioria dos udenistas custam de morrer, se prende no ar como
camaleão. Não ser as mulheres, que morre como qualquer, udenista,
pessedista, queremista, intregalista ou comunista. Também não sei
muito de mulher. A gota serena, a bexiga da peste. Dá de gancho. Tem
quem tome a Saúde da Mulher, para purgar a reima. Sei não. Arde.
Até de noite essa poeira vai entrando e suja a camisa de amarelo.
Amaro só anda ripado pela estrada, mas com esse caminho de carroça
não se pode fazer mais. Vosmecê garanto que não tem pressa. Compro
Quina Petróleo Oriental, como o Chefe usa e sai todo busuntado,
passeando na rua João Pessoa, de roupa branca e um lenço no bolso e
dando aquelas paradas para conversar e explicar a situação e depois
sentando para tomar cerveja e comer queijo com um molho preto em
cima. Para mim o Chefe campa as mulheres da miuçalha toda, quando
quer. É entrar naquela sala e sair galada. Para mim é isso. Quina
Petróleo Oriental. Arre. Diabo de mosca. Mosca não se afoga.
Menino, eu pegava as moscas e botava numa garrafa dágua, sacudia bem
e quando abria lá vem mosca voando que nem esta aí nem vai
chegando. Resiste bem. O que me reta é que a gente enxota e ela vem
no mesminho lugar que estava quando a gente enxotou antes.”
João
Ubaldo Ribeiro,
in Sargento
Getúlio
Eu criança
“Criança
feliz e saudável, cresci num mundo luminoso de livros ilustrados,
areias alvas, laranjeiras, cachorros fiéis, panoramas marinhos e
rostos sorridentes. O esplêndido Hotel Mirana girava em torno de mim
como uma espécie de universo privado, um cosmo caiado de branco
dentro daquele outro, azul e maior, que refulgia lá fora. Da
lavadora de pratos em seu avental de algodão ao potentado no terno
de flanela, todos gostavam de mim, todos me mimavam. Velhas senhoras
americanas, apoiadas em bengalas, inclinavam-se sobre mim qual torres
de Pisa. Princesas russas arruinadas, que não tinham meios de pagar
a meu pai, compravam-me caros bombons. Ele, mon
cher petit papa,
levava-me para passear de barco ou de bicicleta, ensinava-me a nadar,
mergulhar e andar de esqui aquático, lia-me Dom Quixote e Os
miseráveis - e eu o adorava e respeitava, sentindo-me feliz por ele
quando por acaso ouvia a criadagem comentar suas várias amizades
femininas, belas e meigas criaturas que me devotavam grande atenção,
derramando preciosas lágrimas sobre minha alegre orfandade.”
Vladimir
Nabokov,
in Lolita
Definição do amor
Desmaiar-se,
atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e valoroso;
áspero, terno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e valoroso;
não
ver, fora do bem, centro e repouso,
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
enfadado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
enfadado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
furtar
o rosto ao claro desengano,
beber veneno qual licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;
beber veneno qual licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;
acreditar
que o céu no inferno cabe,
doar sua vida e alma a um desengano,
isto é amor; quem o provou bem sabe.
doar sua vida e alma a um desengano,
isto é amor; quem o provou bem sabe.
Lope
de Vega
Igualdade e necessidade de todos os seres humanos
“E
o que poderia pensar [uma pessoa] nesse momento decisivo? Que a
justiça distributiva só faz sentido caso se acredite na igualdade
moral de todos os seres humanos, na necessidade que todos os seres
humanos, têm de liberdade individual, no fato de que tal liberdade
depende de determinados bens materiais e na viabilidade de o Estado
garantir a distribuição desses bens? É pouco provável. A maioria
das pessoas se sentirá tocada, por exemplo, pelas circunstâncias
opressivas sofridas pelos pobres nas áreas mais antigas e decadentes
das metrópoles norte-americanas, e, em sua empatia, descobrem na
“justiça distributiva” uma boa maneira de expressar aquilo que
gostariam que fosse feito por eles. Ou então se sentirão indignadas
diante de fotos de crianças sem-teto ou de histórias nos jornais
sobre pessoas que morrem de doenças que seriam facilmente curáveis
se tivessem assistência médica. Ou ainda, elas se sentirão
indignadas diante da ultrajante riqueza ostentada por algumas pessoas
em Beverly Hills ou em Manhattan. E o que elas querem
dizer,
então, com a “justiça distributiva” que apoiam? Podem não
saber exatamente. Com certeza, querem dizer que ninguém deveria
viver, geração após geração, nas condições que os pobres têm
de enfrentar nas metrópoles norte-americanas, que todas as crianças
deveriam ter um teto sobre suas cabeças, ou que o luxo desmesurado é
injustificável quando outros mal conseguem sobreviver, mas não é
preciso que disponham de uma teoria elaborada para explicar como os
males que veem se conectam uns aos outros ou deveriam ser curados.
Conforme cada pessoa se junta à corrente histórica daqueles que
acreditaram na justiça distributiva (ou que desacreditaram nela),
essa pessoa não precisa saber exatamente o que é aquilo a que se
vinculou. A história da ideia, assim como seu uso mais amplo no
momento em que tal pessoa se agarra a ela, lhe confere conotações
de que ela não precisa compartilhar conscientemente.”
Samuel
Fleischacker,
in Uma breve
história da justiça distributiva
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Delícias da Culinária Brasileira
Tutu de feijão
Pamonha
Bobó de camarão
"Arrumadinho"
Picanha suína ao molho de jabuticaba
Farofa
Tapioca
Fonte das imagens: brazilwonders.tumblr.com
Fonte das imagens: brazilwonders.tumblr.com
Crianças na escola
“É
por isso que se mandam as crianças à escola: não tanto para que
aprendam alguma coisa, mas para que se habituem a estar calmas e
sentadas e a cumprir escrupulosamente o que se lhes ordena, de modo
que depois não pensem mesmo que têm de pôr em prática as suas
ideias.”
Emmanuel
Kant
Mudanças
Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Luís
Vaz de Camões
O destino hesita
“O
destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas
deste mundo, não conhece a linha reta. O nosso grande engano, devido
ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função
de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como
uma flecha apontada diretamente a um alvo que, por assim dizer, a
estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo
contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a
decidir-se.”
José
Saramago
domingo, 26 de abril de 2015
Domingos, um sujeito respeitável
“Eu
andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha
avó, sinha Germana, passava os dias falando só, xingando as
escravas, que não existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e
Silva tomava pileques tremendos. Às vezes subia à vila,
descomposto, um camisão vermelho por cima da ceroula de algodão
encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatas e varapau. Nos dias
santos, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo
dele e agora possuía venda sortida, encontrava o antigo senhor
escorado no balcão de Teotoninho Sabiá, bebendo cachaça e jogando
três-setes com os soldados. O preto era um sujeito perfeitamente
respeitável. Em horas de solenidade usava sobrecasaca de chita,
correntão de ouro atravessado de um bolso a outro do colete,
chinelos de trança, por causa dos calos, que não aguentavam
sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retinta, úmida de suor,
brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre
Domingos, quando via meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço,
levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amoníaco. Trajano
Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de
mestre Domingos e gritava:
-
Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro!
Graciliano
Ramos, in Angústia
De ressaca
Hoje,
existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes
ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você
as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de
saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem
ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A
ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum
prazer ficará sem castigo.
Cada
porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea,
Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais – as golfadas. Hoje, as
bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconsequentes,
literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos
os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre a
cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre
ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a
tontura e o desejo de morte.
Jurava
que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, “nunca mais” dura
pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que
parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que a cuba-libre fez com meu
organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do
meu pé encolhem.
Tentava-se
de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas
aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava nem sempre
conseguia completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas
num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a
cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos variavam.
Por
exemplo:
Um
cálice de azeite antes de começar a beber – O estômago se
revoltava, você ficava doente e desistia de beber.
Tomar
um copo de água entre cada copo de bebida – O difícil era manter
a regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água
com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a
pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida.
Suco
de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta – Para ser tomado
no dia seguinte, de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary,
mas isto era para mais tarde um pouco.
Sumo
de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde
dissolvidas em querosene – Misturava-se tudo num prato pirex
forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um
algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha de
Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o
tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.
Uma
cerveja bem gelada na hora de acordar – Por alguma razão o método
mais popular.
Canja
– Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada
resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era
para tomar. No entanto, muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham
de ser socorridos às pressas antes do afogamento.
Minha
experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos de
ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês
que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se
sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque
falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma
harpa guarani e no depósito de instrumentos da boate Catito’s em
Assunção.
A
pior ressaca era de gim.
Na
manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo
tempo. Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava
com o ouvido tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São
Pedro, em Roma.
Ressaca
de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão
como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava
correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.
Ressaca
de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava
alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira
em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por
hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a
umidade. Era deserdado na hora.
Ressaca
de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do
quarto. Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera
como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando
conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e
uma clavícula no canto.
Olhava
para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no
teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando para
você.
Ressaca
de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite
a eutanásia.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Hoje
não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada.
No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas
a respeito.
De
vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em
silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os
companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo.
Estivemos
no inferno e voltamos, inteiros.
Um
brinde.
E
um Engov.
Luís
Fernando Veríssimo, in O suicida e o computador
sábado, 25 de abril de 2015
O passado
“E
se procurarem saber porque é que todas as imaginações humanas,
frescas ou murchas, tristes ou alegres, se voltam para o passado,
curiosas de nele penetrarem, acharão sem dúvida que o passado é o
nosso único passeio e o único lugar onde possamos escapar dos
nossos aborrecimentos quotidianos, das nossas misérias, de nós
mesmos. O presente é turvo e árido, o futuro está oculto.”
Anatole
France,
in
A Vida em Flor
Do nada
“O
amor surgiu diante de nós, como um assassino que surge do nada em
uma travessa, e nos acertou em cheio. Da mesma forma que um relâmpago
acerta, ou uma faca finlandesa.”
Mikhail
Bulgarov, in Mestre e Margarida
Faz de conta
“Faz
de conta que vivia e que não estivesse morrendo pois viver afinal
não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que
ela não ficava com os braços caídos de perplexidade quando os fios
de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino
fio frio, faz de conta que ela era sábia o bastante para desfazer os
nós de corda de marinheiro que lhe atavam os punhos, faz de conta
que tinha um cesto de pérolas só para olhar a luz da lua pois ela
era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados
surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta
que tudo o que não era faz de conta, faz de conta que se descontraía
o peito e uma
luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes e de
tranquilas
mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que
ela não estava chorando por dentro.”
Clarice
Lispector,
in Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Madeira torta, o homem
“Os sinais dos tempos não são apenas faustos. Há também muitos infaustos. Aliás, nunca se multiplicaram tanto os profetas de desventuras como hoje em dia: a morte atômica, a segunda morte, como foi chamada, a destruição progressiva e irrefreável das próprias condições de vida nesta terra, o niilismo moral ou a “inversão de todos os valores”. O século (que chegou ao fim) já começou com a ideia do declínio, da decadência, ou, para usar uma metáfora célebre, do crepúsculo. Mas sempre se vai difundindo, sobretudo por sugestão de teorias físicas apenas ouvidas, o uso de uma palavra muito forte: catástrofe. Catástrofe atômica, catástrofe econômica, catástrofe moral. Havíamos nos contentado até ontem com a metáfora kantiana do homem como madeira torta. Em um dos ensaios mais fascinantes do rigorosíssimo crítico da razão, Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant perguntou a si mesmo como, de uma madeira torta como a que constitui o homem, podia sair algo inteiramente reto. Mas o próprio Kant acreditava na lenta aproximação ao ideal da retificação através dos “conceitos justos”, “grande experiência” e, sobretudo, “boa vontade”. Da divisão da sociedade, razão pela qual a humanidade continua a ir em direção ao pior, e que ele chamava de terrorista, Kant dizia que “recair no pior não pode ser um estado constantemente duradouro na espécie humana porque, em um determinado grau de regressão, ela destruiria a si mesma”. Mas é exatamente a imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões catastróficas de hoje. Segundo um dos mais impávidos e melancólicos defensores da concepção terrorista da história, o homem é um “animal errado”, não culpado, atenção, porque essa é uma velha história que conhecemos bem, culpado, porém redimível e, talvez, sem que ele mesmo saiba, já redimido, mas errado. É possível retificar uma madeira torta. Porém, parece que o erro do qual fala esse amaríssimo intérprete do nosso tempo é incorrigível.”
Norberto Bobbio, A era dos direitos
Verbo ser
Que
vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.
Carlos
Drummond de Andrade
Atrás de cada arte, há uma paixão
Contei a Kafka que meu pai se opunha a
que eu estudasse música.
- Você respeitará essa proibição? -
perguntou-me Kafka.
- Nem pense nisso – respondi. - Sou
teimoso.
Kafka olhou-me com um ar muito grave e
disse:
- É quando se é teimoso que se perde
mais facilmente a cabeça. Dizendo isso, não quero de modo algum
criticar seus estudos de músico, naturalmente. Pelo contrário! Só
a paixão que resiste à prova da razão tem energia e profundida.
- Mas a música não é uma paixão, é
uma arte – falei.
Mas Kafka sorriu.
- Atrás de cada arte, há uma paixão.
Por isso você sofre e luta por sua música. Por isso você não se
dobra à proibição materna, porque ama a música e o que está
ligado à música mais do que seus próprios pais. Mas é sempre
assim em matéria de arte. É preciso rejeitar a vida, para
ganhá-la.”
Gustav Janouch, in Conversas
com Kafka
O diabo
“Uma das piores formas de
intelectualismo: falar com certa constância e certo brilho sobre
coisas a que não se dá nenhum crédito… Por exemplo, o diabo. Não
há dúvida que para muitos escritores é ele apenas um tema rico,
desses que enchem o vazio de uma crônica ociosa ou faz resplandecer
as páginas de um livro morto. Tem-se a impressão de que se trata de
um belo motivo para composição, mais ou menos idênticos aos que
nos são apresentados na escola pública. Mas através dessas linhas
tortas, o diabo irrompe nítido, sublinhando o inútil de todas as
vaidades e o artifício dessas caricaturas sem fé.”
Lúcio
Cardoso, in Diários
quinta-feira, 23 de abril de 2015
Os jovens e os momentos
“Apenas
os jovens têm tais momentos. Não me refiro aos muito jovens. Não.
Os muito jovens não têm, a bem dizer, momento algum. É um
privilégio do começo da juventude viver adiante de seus dias, em
toda a bela continuidade de esperança que não conhece pausas ou
interrupções.
Fecha-se
atrás de si o pequeno portão da mera meninice - e adentra-se um
jardim encantado. Até as sombras aqui resplandecem cheias de
promessas. Cada curva da vereda tem suas seduções. E não porque se
trate de um país desconhecido. Sabe-se muito bem que a humanidade
toda já trilhou aquela senda. É o encanto da experiência
universal, da qual se espera extrair uma sensação incomum ou
pessoal - um algo que seja só nosso.
Vai-se
reconhecendo os marcos dos predecessores, excitado, divertindo-se,
aceitando a boa como a má sorte - as rosas e os espinhos, como se
costuma dizer -, o pitoresco lote padrão, que guarda tantas
possibilidades para os merecedores, ou talvez para os afortunados.
Sim. Vai-se adiante. E o tempo, também, caminha - até que se
percebe logo adiante uma linha de sombra avisando-nos que também a
região da mocidade deverá ser deixada para trás.
Este
é o período da vida no qual os tais momentos de que falei costumam
aparecer. Que momentos? Ora, os momentos de tédio, de desânimo, de
insatisfação. Momentos temerários. Quero dizer, momentos em que os
ainda jovens estão propensos a cometer gestos temerários, como
casar-se de repente ou então abandonar um emprego sem motivo algum.”
Joseph
Conrad,
in A
linha de sombra
A civilização
“Existem
infinitamente mais homens que aceitam a civilização como hipócritas
do que homens verdadeiramente e realmente civilizados, e é lícito
até perguntarmo-nos se um certo grau de hipocrisia não será
necessário à manutenção e à conservação da civilização, dado
o reduzido número de homens nos quais a tendência para a vida
civilizada se tornou uma propriedade orgânica.”
Sigmund
Freud
À beira-mar
Porque será que tem gente que vive se metendo com que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler "Maravilhas da Biologia", do do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia. O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós
olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na
barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao
sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram
dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela
graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante
vegetação capilar, se nos permitem o termo.
— Eu
vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se
abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra
fungada.
O
intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
— Não
faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos a saber que o
menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do
garotinho e prosseguiu: — deixe o casal em paz. Você ainda é
pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar
areia em cima dos outros.
O
menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
— Deixa
eu jogar neles.
O
camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais
incisivo:
— Não
senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O
menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: — Tá
certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?
— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é sua.
— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?
— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é sua.
Sérgio
Porto (o Stanislaw Ponte Preta),
in O melhor do
Stanislaw
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Que conhecemos do mundo?
“De agora em diante, a filosofia se autoriza a só se satisfazer no estupro do puro espírito. O mundo é uma realidade inacessível que seria inútil tentar conhecer. Que conhecemos do mundo? Nada. Como todo conhecimento é apenas a autoexploração da consciência reflexiva por si mesma, pode-se, portanto, mandar o mundo para o quinto dos infernos.”
Muriel Barbery, in A elegância do ouriço
Conselho de pai
“Em
meus anos mais juvenis e vulneráveis, meu pai me deu um conselho que
jamais esqueci:
-
Sempre que você tiver vontade de criticar alguém - disse-me ele, -
lembre-se de que criatura alguma neste mundo teve as vantagens de que
você desfrutou.
Ele
nada mais disse, mas sempre fomos comunicativos de uma maneira
bastante incomum e reservada, e eu compreendi que ele queria dizer
muito mais do que isso. Por conseguinte, sinto-me inclinado a guardar
para mim todos os meus juízos, hábito esse que fez com que muitas
naturezas curiosas se abrissem comigo, mas que também me tornou
vítima de muitos maçadores inveterados.
A
mente anormal percebe-a rapidamente e sente-se atraída por essa
qualidade, quando ela aparece numa pessoa normal, e, assim, aconteceu
que, na universidade, eu fui injustamente acusado de ser um político,
por saber guardar as mágoas secretas de indivíduos violentos,
desconhecidos. Quase todas as confidências eram espontâneas, eu
fingia, não raro, que estava dormindo, que me achava preocupado ou,
então, revelava uma leviandade hostil, ao perceber, por certos
sinais inconfundíveis, que uma revelação íntima palpitava no
horizonte - pois que as revelações íntimas dos jovens ou, pelo
menos, os termos em que eles as exprimem, têm, habitualmente, muito
de plágio e, o que é pior, de plágios desfigurados por evidentes
supressões. Reservar para nós os nossos juízos, é coisa que
proporciona infinitas possibilidades. Tenho ainda certo receio de
perder alguma coisa, se esquecer que, como meu pai pretensiosamente
sugeria, e eu, pretensiosamente, repito, um certo senso de decência
fundamental é concedido, ao homem, desigualmente, ao nascer.”
F.
Scott Fitzgerald,
in
O
grande Gatsby
Honestidade X desonestidade
“Os
exemplos de honestidade que se encontram neste mundo são tão
incríveis quanto os exemplos de desonestidade. Depois de quarenta e
cinco anos nos misturando com nossa própria espécie, devíamos ter
adquirido o hábito de ser capazes de conhecer alguma coisa dos
nossos próximos. Mas não se conhece.”
Ford
Madox Ford, in O bom soldado
Vigília
Não,
meu amigo, não precisas ter
nenhum
cuidado: havendo o que cuidar,
cuidarei
eu constantemente a te poupar
coitas
que vão teu coito arrefecer.
Coitado
de quem deixa a noite ser
vinda
fora de tempo e de lugar
sombreando
as alturas do prazer
com
rasteiras tribulações do lar.
Antes
que venha a noite, vai o dia
mostrando
os horizontes de alegria
que
tem a palmilhar no corpo dela:
são
costas, são gargantas, são colinas
— toda
uma geografia em que te empinas
enquanto
pelo teu meu amor vela.
Geir
Campos
terça-feira, 21 de abril de 2015
Isto é o homem
“Os
Estados ocidentais sentiam-se inquietos como os cavalos antes da
trovoada. Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a
metamorfose, sem atinarem, no entanto, com a sua natureza. Os grandes
proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o governo de
poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam
os novos impostos e os novos planos, ignorando que todas essas coisas
são efeitos e não causas. As causas escondiam-se bem no fundo e
eram simples – as causas eram a fome, a barriga vazia, multiplicada
milhões de vezes, fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um
pouco de tranquilidade, multiplicada milhões de vezes; músculos e
cérebros que ansiavam por crescer, trabalhar, criar, multiplicados
milhões de vezes. A última função clara e definida do homem –
músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar algo além
da mera necessidade – isto é o homem. Construir um muro, construir
uma casa, um dique, e pôr nesse muro, nessa casa, nesse dique algo
do próprio homem, é retirar para o homem algo desse muro, dessa
casa, desse dique. Obter músculos fortes à força de movê-los,
obter linhas e formas elegantes pela concepção. Porque o homem, ao
contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do universo,
cresce para além do seu trabalho, galga os degraus das suas próprias
ideias, emerge acima das próprias realizações. É isto o que se
pode dizer a respeito do homem.”
John
Steinbeck,
in As
vinhas da ira
Lei: benefício de poucos
“A
maioria das leis não passam de privilégios, isto é, um tributo de
todos em benefício de alguns poucos.”
Cesare
Beccaria,
in
Dos
delitos e das penas
Locomotiva
“Graças
ao lápis que hoje trago à mão, mantenho-me desperto. Vejo,
entrevejo imagens bizarras que não podem ter qualquer relação com
meu passado: uma locomotiva que resfolega pela encosta acima a
arrastar inúmeros vagões; sabe-se lá de onde vem e para onde vai e
o que estará fazendo nestas recordações?!”
Italo
Svevo, in
A
consciência de Zeno