sábado, 28 de fevereiro de 2015

A Arte

Como toda forma de Arte, tem a missão de tornar suportável a realização de nossos deveres vitais. Para uma criatura que, como o humano, molda seu destino na base de reflexão e da reflexividade, o conhecimento que daí decorre tem o caráter insuportável de toda a lucidez nua. Sabemos que somos animais dotados de uma arma de sobrevivência, e não deuses moldando o mundo com seu pensamento próprio, e é preciso algo para que essa sagacidade se torne tolerável, algo que nos salve da tristeza e eterna febre dos destinos biológicos. Então, inventamos a Arte, esse outro processo dos animais que somos, a fim de que nossa espécie sobreviva.”
Muriel Barbery, in Elegância do ouriço

Sobre cretinos

O maior dos cretinos pode a qualquer momento se transformar e crescer além; pode apaixonar ou horrorizar. Não há cerca inviolável ao redor da vida de homem algum.”
Lúcio Cardoso, in Diários

Medo

De que Ivanóv tinha medo? Ansky se perguntava em seus cadernos. Não do perigo físico, já que como ex-bolchevique muitas vezes esteve perto da detenção, da prisão e da deportação, e embora não se pudesse dizer que fosse um tipo valente, também não podia afirmar, sem faltar com a verdade, que fosse uma pessoa covarde e sem peito. O medo de Ivánov era de índole literária. Isto é, seu medo era o medo que sente a maioria daqueles cidadãos que um belo (ou horrendo) dia decidem transformar o exercício das letras e, sobretudo, o exercício da ficção em parte integrante das suas vidas. Medo de serem ruins. Também medo de não serem reconhecidos. Mas, sobretudo, medo de serem ruins. Medo de que seus esforços e seus labores caiam no esquecimento. Medo da pisada que não deixa marca. Medo dos elementos do acaso e da natureza que apagam as marcas pouco profundas. Medo de jantarem sozinhos e de que ninguém repare na sua presença. Medo de não serem apreciados. Medo do fracasso e do ridículo. Mas sobretudo medo de serem ruins.”
Roberto Bolaño, in 2666

A pesada compaixão

Não existe nada mais pesado que a compaixão. Mesmo nossa própria dor não é tão pesada como a dor co-sentida com outro, pelo outro, no lugar do outro, multiplicada pela imaginação, prolongada em centenas de ecos.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Produtos famosos em branco

O projeto Brand Spirit, do publicitário Andrew Miller, expõe produtos marcas e produtos famosos sem suas cores marcantes. Você consegue identificar esses produtos?

92/100: Underwood

96/100: Levi’s

99/100: Macintosh

42/100: Band-Aid

98/100: Singer

87/100: Barbie

95/100: Casio

53/100: Lego

83/100: Sony Walkman

81/100: Converse

26/100: BIC

Veja outros produtos, e suas respectivas identificações, aqui.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A opinião em palácio

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:
Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado. ― Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

Coisas simples, grandes coisas

Todas as grandes coisas são simples. E muitas podem ser expressas numa só palavra: liberdade; justiça; honra; dever; piedade; esperança.”
Winston Churchill

O sofrimento interminável dos não-humanos

No momento, nosso mundo de humanos é baseado no sofrimento e na destruição de milhões de não-humanos. Aperceber-se disso e fazer algo para mudar essa situação por meios pessoais e públicos, requer uma mudança de percepção, equivalente a uma conversão religiosa. Nada poderá jamais ser visto da mesma maneira, pois uma vez reconhecido o terror e a dor de outras espécies, você irá, a menos que resista à conversão, ter consciência das permutações de sofrimento interminável, em que se apoia a nossa sociedade.”
Arthur Conan Doyle

Não tenho pressa

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exatamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.
Alberto Caeiro, Heterônimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A dona do cabaré

Se a prova testemunhal foi chamada por juristas antigos de “a prostituta das provas”, a delação premiada é a dona do cabaré.
O sujeito é suspeito de corrupção, não merece o crédito de ninguém. Muito menos do MP. De suspeito, vira acusado. De acusado, vira indiciado. De indiciado, vira réu. Até aí, é um mentiroso culpado de tudo, enquanto negar a culpa e não acusar ninguém.
De repente, o caráter muda.
Resolve assumir a culpa e culpar terceiros. Aí adquire crédito. De mentiroso, vira patriota. E tudo que antes era mentira, agora vira estuário da verdade.
O delator premiado é a cara do Brasil institucional. Da desonestidade institucionalizada. Da mentira edificada. Do arrependimento conveniente.
Onde a incompetência inquisitorial oferece à sociedade um porrete melado de bosta nas duas pontas.
Se o esclarecimento de crimes e descoberta de criminosos só se dá pela delação, pra que então gastar dinheiro público com todo esse aparato investigativo? É melhor fazer caixa para comprar delatores.
No Direito Processual, assim como na Arte, a forma da feitura supera o conteúdo do feito!
François Silvestre

Dói, mas aguenta

Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai aguentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar.”
Caio Fernando Abreu

A luz branca

Por que é que eu me importava com o chiado do pequeno euzinho que vagava por todos os lados? Eu atuava no campo da inspiração, isolamento, corte, expiração, exibição, decepção, desacontecimento, fim, finalização, elo cortado, nada, elo, sei lá, acabou! “A poeira dos meus pensamentos guardada em um globo”, pensei, “nesta solidão atemporal”, pensei, e sorri de verdade porque estava vendo a luz branca em tudo em todos os lugares afinal.”
Jack Kerouac, in Os vagabundos iluminados

Topografia

Bondes de Porto Alegre
Antiga parada de bondes no Mercado Público de Porto Alegre

Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina, apenas. É uma ruazinha tão discreta que logo faz uma curva e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o nome, nem nunca andei por ela. Mas faz anos que me vem alimentando de mistério. Se eu fosse lá, encontraria alguns poetas: o Marcelo, o Wamosy, o Juca… todos mortos de há muito, todos no mesmo bar. A! Ruazinha… ruazinha que leva à Babilônia, eu sei… ao porto inventado de Stargiris… a regiões entressonhadas a medo.
Mário Quintana, in Sapato florido

Sozinho

Cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho.”
Guimarães Rosa

A Fita Branca e as raízes do nazismo

A Fita Branca é uma obra-prima do diretor Michael Haneke. Perturbador, reflexivo e tecnicamente impecável, o filme traz à tona uma discussão antiga, as raízes do nazismo.

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A Fita Branca é um filme de 2009, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, dirigido e escrito pelo aclamado diretor Michael Haneke. Numa pequena vila alemã, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, diversos acontecimentos brutais se desenrolam. O primeiro é o impacto do médico do vilarejo. Voltando para casa, ele é derrubado de seu cavalo ao passar pela entrada de sua propriedade, onde alguém havia esticado um arame. Tempos após o incidente, temos a morte aparentemente acidental de uma lavradora a serviço do Barão, proprietário rural de quem todos dependem para trabalhar. Logo após, o filho da lavradora reage destruindo uma plantação de repolhos do Barão, pois acredita que ele seja culpado da morte da mãe. Tempos depois, o filho do Barão e o filho da parteira, que sofre de Síndrome de Down, são vítimas de violência.
Esses acontecimentos chocam a pequena comunidade, arraigada aos seus princípios morais e religiosos, regidos por um Pastor Protestante que disciplina e orienta com toda a severidade, especialmente seus filhos, que são obrigados a usar uma fita branca que os lembre de sua condição de pecadores. A fita é um sinal de vergonha por não ter seguido todas as regras de sua sociedade. Uma educação severa e cruel, que não permite a opinião das crianças sobre nada. Também percebemos que o machismo exerce um papel de destaque sobre as famílias da vila.
Podemos perceber ao longo do filme que não há no vilarejo uma aparente justiça organizada. Ao que parece, o próprio Barão é quem comanda a região econômica e politicamente, mesmo a polícia parece manter certa distância. As relações de trabalho nas terras do Barão também permanecem medievais. Dentro desse cenário, o único que parece destoar do comportamento geral é o professor, que veio de uma vila perto dali. Ele é também o narrador da história, que, logo nos primeiros segundos do filme, durante a narração, mostra a sua opinião, afirmando que os fatos ocorridos no local, embora não fossem esclarecidos, teriam grande importância sobre o que viria a acontecer anos depois, quando inicia o nazismo.

Matéria completa aqui.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Prazer de viver

É o prazer de viver que dispersa, suprime a concentração, paralisa todo o impulso para a grandeza. Mas sem prazer de viver... Não, a solução não existe... A menos que seja uma solução fazer de um grande amor uma raiz e nele encontrar a fonte de vida sem o castigo da dispersão.”
Albert Camus, in Cadernos

Alegria áspera e eficaz

Minha alegria é áspera e eficaz, e não se compraz em si mesma, é revolucionária. Todas as pessoas poderiam ter essa alegria, mas estão ocupadas demais em ser cordeiros de deuses.”
Clarice Lispector, in Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

Procurarás

Há uma coisa que se chama tempo, Rocamadour, é como um bicho que anda e anda. Não posso explicar porque ainda és muito pequeno, mas quero dizer que Horácio vai chegar daqui há pouco. Achas que devo deixar ele ler esta carta, para que também te escreva qualquer coisa? Não, eu não desejaria que outra pessoa lesse uma carta que fosse somente para mim. Um grande segredo entre nós Rocamadour. Já não choro mais, estou contente, mas é tão difícil entender as coisas, preciso tanto tempo para entender um pouco daquilo que Horácio e os outros compreendem tão depressa; mas eles, que tudo compreendem tão bem, não podem compreender nem a ti, nem a mim, não compreendem que não posso te ter comigo, te dar de comer, e trocar tuas fraldas, te fazer dormir ou brincar, não compreendem e, na realidade, pouco se importam. Só eu que tanto me importo, sei que não posso te ter comigo, sei que isso é muito ruim para nós dois, sei que preciso estar sozinha com Horácio, quem sabe até quando, ajudando-o a procurar o que ele procura e que tu também procurarás, Rocamadour, porque serás um homem e também procurarás como um grande tolo.”
Julio Cortázar, in O jogo da amarelinha

Aliados preciosos

Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não se tornaram ainda acessíveis à ciência.”
Sigmund Freud

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Pensamentos

Os grandes pensamentos não necessitam apenas de asas, mas também de algum veículo para aterrissar.”
Neil Armstrong

O que chamamos de vida


Há certas circunstâncias e ocasiões bizarras neste estranho e caótico negócio que chamamos de vida nas quais um homem considera todo o universo uma grande piada, ainda que mal perceba a sua graça, e mal do que suspeita que a piada seja feita à sua custa e de mais ninguém. No entanto, nada o desanima, e nada parece valer o esforço de uma disputa. Ele engole todos os acontecimentos, todas as crenças e credos, e convicções, todas as coisas difíceis, visíveis ou invisíveis, pouco importando quão intricadas sejam; como uma avestruz de estômago poderoso devora cartuchos e pedras de fuzis. Quanto às pequenas dificuldades e preocupações, expectativas de desastres súbitos, perigo de vida ou ferimentos; tudo isso e a própria morte lhe parecem apenas manhosos e bem-humorados safanões, tapas nas costas dados pelo galhofeiro invisível e inexplicável. Esse tipo estranho de humor caprichoso ao qual me refiro assola o homem apenas nos momentos de tribulação extrema; assola-o em meio à sua seriedade, de tal modo que aquilo que lhe parecia uma coisa muito importante se afigura, então, como parte da piada geral. Não há nada como os perigos da pesca da baleia para gerar esse tipo indulgente e liberto de filosofia genial daquele que não tem nada a perder; e assim eu agora encarava toda a viagem do Pequod, e a grande Baleia Branca, seu propósito.”
Herman Melville, in Moby Dick

Como vai o mundo

Olhe pela janela, você verá como vai o mundo. Para onde correm as pessoas? Não diferençamos mais o encadeamento das coisas que lhes daria um sentido supra-pessoal. A despeito do rumor geral, cada um está mudo e isolado e isolado em si mesmo. O encaixe dos valores do mundo e dos valores do eu já não funcionam convenientemente. Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado”.
Franz Kafka

Igualdade: um fato?

 “A igualdade pode ser um direito, mas não há poderes sobre a Terra capaz de torná-la um fato.”
Honoré de Balzac

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

(Cemitério) de bolso

Do lado esquerdo carrego meus mortos.
Por isso caminho um pouco de banda.
Carlos Drummond de Andrade

Para valer a pena

"Se você não quer ser esquecido quando morrer, escreva coisas que valham a pena serem lidas ou faça coisas que valham a pena escrever a respeito."
Walter Benjamin

O juízo final

Chegou o miserável milionário no céu e, impacientemente, esperou a sua vez de ser julgado. Introduziram-no numa sala, noutra sala, noutra sala, até que se viu frente a uma luz ofuscante, na qual pouco a pouco foi distinguindo a figura santa do pai dos Homens. Em voz tonitroante este, tendo à direita, Pedro, e, à esquerda, uma figura que ele não conhecia, julgou sumariamente dois outros pecadores que estavam à sua frente. E, afinal, dirigiu-se a ele:
- Que fez você de bom na sua vida?
- Bem, eu nasci, cresci, amei, casei, tive filhos, vivi.
- Ora - disse o Senhor - isso são atos sociais e biológicos a que você estava destinado. Quero saber que bondade específica e determinada você teve para com o seu semelhante.
- Bem - disse o milionário - eu criei indústrias, comprei fazendas, dei emprego a muita gente, melhorei as condições sociais de muita gente.
- Não, isso não serve - disse o Todo-Poderoso - essas ações estavam implícitas ao ato de você enriquecer. Você as praticou porque precisava viver melhor. Não foram intrinsecamente boas ações, desprendidas, não servem.
O milionário escarafunchou o cérebro e não encontrou nada. Em verdade, passara uma vida egoísta, pensando apenas em si mesmo. Nunca o preocupara seu semelhante, nunca olhara para o ser humano a seu lado senão como uma fonte de lucro para as suas indústrias. Mas, de repente, lembrou-se das obras de filantropia.
- Ah - disse, puxando uma caderneta - aqui está. Uma vez dei cem cruzeiros para uma velhinha da Casa dos Artistas, outra vez contribuí com duzentos cruzeiros para o Hospital dos Alienados e outra vez contribuí com quinhentos cruzeiros para a Fundação das Operárias de Jesus.
- Só? - perguntou Deus.
- Só - disse o milionário contrafeito.
- Josué! - gritou o Todo-Poderoso -, dê oitocentos cruzeiros ao cavalheiro aqui e que vá para o Inferno.
Moral: Amor com amor se paga e o dinheiro com dinheiro também.


Millôr Fernandes, in Pif-paf

Etapas da filosofia

A cada etapa da vida do homem corresponde uma certa Filosofia. A criança apresenta-se como um realista, já que está tão convicta da existência da peras e das maçãs como da sua. O adolescente, perturbado por paixões interiores, tem que dar maior atenção a si mesmo, tem que se experimentar antes de experimentar as coisas, e transforma-se protanto num idealista. O homem adulto, pelo contrário, tem todos os motivos para ser um céptico, já que é sempre útil pôr em dúvida os meios que se escolhem para atingir os objectivos. Dito de outro modo, o adulto tem toda a vantagem em manter a flexibilidade do entendimento, antes da acção e no decurso da acção, para não ter que se arrepender posteriormente dos erros de escolha. Quanto ao ancião, converter-se-á necessariamente ao misticismo, porque olha à sua volta e as mais das coisas lhe parecem depender apenas do acaso: o irracional triunfa, o racional fracassa, a felicidade e a infelicidade andam a par sem se perceber porquê. É assim e assim foi sempre, dirá ele, e esta última etapa da vida encontra a acalmia na contemplação do que existe, do que existiu e do que virá a existir.”
Johann Wolfgang von Goethe, in Máximas e Reflexões

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Trecho de "Os Companheiros no jardim"

Nossa amizade é a nuvem branca preferida do sol.
nossa amizade é uma casca livre. Não pode ser separada
das proezas do nosso coração.
Ali onde o espírito não desenraiza mas replanta e cuida,
nasço. Ali aonde começa a infância do povo, amo.
século XX: o homem desceu ao máximo. As mulheres
se iluminavam e se deslocavam rapidamente num
super-patamar a que só nossos olhos tinham acesso.
A uma rosa me uno.
René Char

Volta ao trabalho

"Mas depois ele voltou para o seu trabalho como se nada tivesse acontecido." Esta é uma observação que nos é familiar de uma plenitude confusa de narrativas antigas, embora talvez não ocorra em nenhuma.”
Franz Kafka, in Aforismos de Zurau

Leis estranhas fotografadas

Nos Estados Unidos têm leis que em outros lugares ao redor do mundo gostariam de ter, mas, dentro dessas leis que causam alguma inveja, também têm os seus inconvenientes; algumas muito ridículas e outras involuntariamente hilariantes. A fotógrafa Olivia Locher, nascida em Johnstown na Pensilvânia, retratou em seu projeto fotográfico “I Fought the Law” (Eu Combato a Lei) algumas das leis mais ridículas deste país, no qual ela mostrar como seria se essas leis fossem descumpridas, de forma satirizada, é claro, utilizando referências da cultura contemporânea.


No estado do Alabama é ilegal colocar sorvete no bolso de trás em qualquer estação
No estado do Alabama é ilegal colocar sorvete no bolso de trás em qualquer estação

Na Califórnia ninguém está permitido a andar de bicicleta na piscina
Na Califórnia ninguém está permitido a andar de bicicleta na piscina

No Texas é contra lei as crianças terem cortes de cabelo fora do normal
No Texas é contra lei as crianças terem cortes de cabelo fora do normal

Imaginem que em Wisconsin, USA, é proibido servir tortas de maçã sem queijo em locais públicos
Em Wisconsin, é proibido servir tortas de maçã sem queijo em locais públicos

No Havaí terminantemente proibido colocar moedas na orelha
No Havaí é terminantemente proibido colocar moedas na orelha

 Em Delaware, USA, é ilegal usar calças que ajudem a modelar a cintura, já pensou ?!
Em Delaware, é ilegal usar calças que ajudem a modelar a cintura, já pensou?!

No Arizona você não pode ter mais do que dois vibradores em casa, também para que exagero...rs
No Arizona você não pode ter mais do que dois vibradores em casa

Olivia-Locher-5
Em Connecticut pickles devem saltar para ser considerados pickles

Girar a grande ilusão universal

“Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado.”
Muriel Barbery, in Elegância do ouriço

Metáfora

“Tomás compreendeu então que as metáforas são perigosas. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora.”
Milan Kundera, in A insustentável leveza do ser

Os lugares são como as pessoas

“Foi então que percebi que, de muitas formas, os lugares são como as pessoas: pensam nas pessoas queridas quando estão longe, esperam elas voltarem e ficam felizes quando isso acontece.”
Crystal Chan, in Passarinho

Da carta de Maga a seu filho II

“Há uma coisa que se chama tempo, Rocamadour, é como um bicho que anda e anda. Não posso explicar porque ainda és muito pequeno, mas quero dizer que Horácio vai chegar daqui há pouco. Achas que devo deixar ele ler esta carta, para que também te escreva qualquer coisa? Não, eu não desejaria que outra pessoa lesse uma carta que fosse somente para mim. Um grande segredo entre nós Rocamadour. Já não choro mais, estou contente, mas é tão difícil entender as coisas, preciso tanto tempo para entender um pouco daquilo que Horácio e os outros compreendem tão depressa; mas eles, que tudo compreendem tão bem, não podem compreender nem a ti, nem a mim, não compreendem que não posso te ter comigo, te dar de comer, e trocar tuas fraldas, te fazer dormir ou brincar, não compreendem e, na realidade, pouco se importam. Só eu que tanto me importo, sei que não posso te ter comigo, sei que isso é muito ruim para nó dois, sei que preciso estar sozinha com Horácio, quem sabe até quando, ajudando-o a procurar o que ele procura e que tu também procurarás, Rocamadour, porque serás um homem e também procurarás como um grande tolo.”
Julio Cortázar, in O jogo da amarelinha

Nossa vida é truculenta

É preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes. Quem sabe, se não comêssemos os bichos, comêssemos gente com seu sangue. Nossa vida é truculenta, Loreley: nasce-se com sangue e com sangue corta-se para sempre a possibilidade de união perfeita: o cordão umbilical. E muitos são os que morrem com sangue derramado por dentro ou por fora. É preciso acreditar no sangue como parte importante da vida. A truculência é amor também.”
Clarice Lispector, in Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Vida em erros

“A vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho.”
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Esperas e lembranças

“Quando esperamos, os segundos são anos; quando nos lembramos, os anos são segundos.”
Victor Hugo

Nada subsistirá

“A espécie humana há de passar como passaram os dinossauros e os estegocéfalos. Pouco a pouco, a pequena estrela que nos serve de sol perderá o seu poder iluminador e aquecedor... Terá, nessa altura, cessado toda a vida sobre a Terra, que continuará, como astro caduco, o seu voltear sem fim nos espaços sem limites... E então, de toda a civilização humana ou sobre-humana – descobertas, filosofias, ideais, religiões -, nada subsistirá. Não restará mesmo, de nós, o que resta hoje do homem de Neandertal, do qual, pelo menos, alguns ‘despojos’ encontraram asilo nos museus do seu sucessor. Será anulada, para sempre, neste recanto do Universo, a aventura grotesca do protoplasma. Aventura que, talvez, se renove noutros mundos, sempre sustentada pelas mesmas ilusões, criadoras dos mesmos tormentos, sempre igualmente absurda, igualmente vã e igualmente condenada, desde o princípio, à frustração final e à treva infinita...”
Jean Rostand, in Pensamentos de um biólogo

Aceitação do dogma

“Que valor pode ter o dogma diante de uma alma inconformada?
Se há possibilidade de aceitação do dogma, ela só pode vir depois do exame total e sem camuflagens, depois da estimativa dos sentimentos, depois do ataque à existência do mal no mundo, ainda quando uma imensa destruição está no caminho a ser traçado.”
Lúcio Cardoso, in Diários

Então queres ser um escritor?

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.
Charles Bukowski. Tradução: Manuel A. Domingos

Educar os corações

“A importância da educação já foi compreendida, mas cérebros brilhantes também podem produzir grandes sofrimentos. É preciso educar os corações.”
Tenzin Gyatso, 14º Dalai Lama

Imaginação

“A imaginação é a memória que enlouqueceu.”
Mário Quintana

Não há diferença entre mim e todas as outras coisas

Bom, mesmo que tudo isso seja verdade, eu continuo não dando a mínima.” Todo entusiasmado, voltei para o mato naquela noite e pensei: “O que significa eu estar neste universo infinito, pensando que sou um homem sentado sob as estrelas na varanda da terra, mas na verdade sou o vazio e estou desperto naquele vazio e despertar de todas as coisas? Significa que eu sou vazio e estou desperto, e eu sei que sou o vazio, que estou desperto, e que não há diferença entre mim e todas as outras coisas. Em outras palavras, significa que eu me transformei na mesma coisa que tudo o mais. Significa que eu me transformei no Buda”. Eu sentia aquilo de verdade e também acreditava naquilo e exultava só de pensar no que eu tinha para contar a Japhy quando voltasse para a Califórnia. “Pelo menos ele vai escutar”, pensei, amuado. Sentia enorme compaixão pelas árvores porque éramos a mesma coisa; fazia carinho nos cachorros que nunca discordavam de mim a respeito de nada. Todos os cães amam Deus. Eles são mais sábios do que seus donos. Disse isso aos cachorros, também, eles me ouviram com as orelhas em riste e lamberam meu rosto. Para eles, não fazia a mínima diferença, contanto que eu estivesse lá. São Raymond dos Cachorros era quem eu fui naquele ano, se não mais ninguém nem nada mais. Às vezes, no mato, eu só ficava lá sentado olhando para as coisas em si mesmas, tentando, de qualquer modo, adivinhar o segredo da existência. Ficava olhando para as ervas longas e amarelas e encurvadas que ficavam na frente da minha esteira de capim, meu Assento Tathagata da Pureza e que apontavam em todas as direções e conversavam cabeludas à medida que os ventos ditavam Ta Ta Ta, em grupos de fofoca com alguns ramos solitários orgulhosos de se exibir de um lado, ou os doentes e os meio-mortos caídos, toda a congregação de mato vivo ao vento de repente parecia soar como sinos e parecia pular de tanta animação e tudo aquilo era feito de uma coisa amarela que despontava do solo e eu pensava: É isso aí. “Rop rop rop”, eu berrava para as ervas, e elas me mostravam a direção do vento apontando seus ramos inteligentes para indicar e castigar e se esquivar, algumas enraizadas na idéia da terra úmida florescente de imaginação que havia passado seu carma para a própria raiz e o caule …. Foi sinistro. Eu caíra no sono e sonhara com as palavras: “Por meio deste ensinamento a terra chegou ao fim”, e sonhara com minha mãe anuindo com a cabeça inteira solenemente, humpft, e com os olhos fechados. Por que é que eu iria me preocupar com todas as dores arrepiantes e tudo que há de tediosamente errado no mundo, os ossos humanos não passam de linhas vãs perdendo tempo, todo o universo é um molde vazio de estrelas. “Eu sou o Rato Vazio Bhikku!”, sonhei.
Jack Kerouac, in Os vagabundos iluminados

Duas literaturas diferentes

“Em todas as épocas, existem duas literaturas que caminham lado a lado e com muitas diferenças entre si: uma real e outra apenas aparente. A primeira cresce até se tornar uma leitura permanente. Exercida por pessoas que vivem para a ciência ou para a poesia, ela segue o seu caminho com seriedade e tranquilidade, produzindo na Europa pouco menos de uma dúzia de obras por século, que, no entanto, permanecem. A outra, exercida por pessoas que vivem da ciência ou da poesia, anda a galope, com rumor e alarido por parte dos interessados, trazendo anualmente milhares de obras ao mercado. Após poucos anos, porém, as pessoas perguntam: Onde estão essas obras? Onde está a sua glória tão prematura e ruidosa? Por isso, pode-se também chamar esta última de literatura que passa, e aquela, de literatura que fica.”
Arthur Schopenhauer, in Da leitura e dos livros

A volta do guerreiro

Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam deles, e muitas tinham estabelecido novos amores.
Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu, dizendo:
― Não quero mais ver a guerra diante de mim.
― Eu não sou a guerra, sou o amor, querido ― respondeu-lhe a mulher, assustada.
― Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na luta corpo a corpo, eu não quero saber de você.
― Então farei carícias lentas e suaves.
― O inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar o que houver no uniforme.
― Ficarei quieta, não farei nada.
― Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que nos observa para nos atacar à traição.
Separaram-se para sempre.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos Plausíveis