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sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Acerca do fanatismo
A essência do fanatismo consiste em considerar
determinado problema como tão importante que ultrapasse qualquer outro. Os
bizantinos, nos dias que precederam a conquista turca, entendiam ser mais
importante evitar o uso do pão ázimo na comunhão do que salvar Constantinopla
para a cristandade. Muitos habitantes da península indiana estão dispostos a
precipitar o seu país na ruína por divergirem numa questão importante: saber se
o pecado mais detestável consiste em comer carne de porco ou de vaca. Os reacionários
americanos prefeririam perder a próxima guerra do que empregar nas
investigações atómicas qualquer indivíduo cujo primo em segundo grau tivesse
encontrado um comunista nalguma região. Durante a Primeira Guerra Mundial, os
escoceses sabatários, a despeito da escassez de víveres provocada pela atividade
dos submarinos alemães, protestavam contra a plantação de batatas ao domingo e
diziam que a cólera divina, devido a esse pecado, explicava os nossos malogros
militares. Os que opõem objecções teológicas à limitação dos nascimentos,
consentem que a fome, a miséria e a guerra persistam até ao fim dos tempos
porque não podem esquecer um texto, mal interpretado, do Génese. Os
partidários entusiastas do comunismo, tal como os seus maiores inimigos,
preferem ver a raça humana exterminada pela radioatividade do que chegar a um
compromisso com o mal - capitalismo ou comunismo segundo o caso. Tudo isto são
exemplos de fanatismo.
Em cada comunidade há um certo número de fanáticos
por temperamento. Alguns desses fanáticos são essencialmente inofensivos e os
outros não fazem mal enquanto os seus partidários forem pouco numerosos ou estiverem
afastados do poder. Os “amish” na Pensilvânia pensam que é mau usar botões;
isto é completamente inofensivo, salvo na medida em que revela um estado de
espírito absurdo. Alguns protestantes extremistas gostariam de ressuscitar a
perseguição aos católicos; essas pessoas só serão inofensivas enquanto forem em
pequeno número. Para que o fanatismo se torne uma ameaça séria é preciso que
possua bastantes partidários para pôr a paz em perigo, internamente por meio de
uma guerra civil ou externamente por uma cruzada; ou quando, sem guerra civil,
estabeleça uma Lei dos Santos que implique a perseguição e a estagnação mental.
No passado, o melhor exemplo da história é o reinado da Igreja desde o século
IV ao século XVI.
(...) Para curar o fanatismo - salvo nas aberrações
raras dos indivíduos excêntricos - são necessárias três condições: segurança,
prosperidade e educação liberal.
Bertrand Russell,
in A Última Oportunidade do Homem
Nunca deixe seu filho mais confuso que você
De manhã,
na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara:
— Pai, o
que é genitália? O homem volta-se:
— Ge… o
quê?
—
Genitália.
— Onde é
que você tirou isso, da sua cabeça?
— Tá no
jornal, pai.
—
Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado
pro trabalho. Cadê sua mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se
enfiou? Rita, venha ouvir aqui o que seu filho está aprontando.
Dona Rita
desce esbaforida:
— Algum
problema, Gervásio?
—
Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália.
Explique pra ele. Estou de saída.
—
Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe?
— Saber
eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica
difícil de explicar na prática.
— Deixa
de bobagem.
— Tá bom.
Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver.
— Pode
deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma
palavra. Eu pergunto pra tia da escola.
— Tá
louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália
é o mesmo que partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia
no tempo do seu bisavô. No século passado, quando seu bisavô estava vivo, as
pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo.
Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam,
exatamente, a genitália. A genitália eram as partes pudendas.
— O
umbigo era genitália, pai?
— Não. Na
verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de
mostrar o corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não
aparecia nem em filme francês. As pessoas chamavam esse território misterioso
de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna.
— Bumbum
é genitália, pai?
— Não.
Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão?
— Não.
Assuma.
— Bom,
vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos.
Isso. Pronto, tá aí a genitália.
— O
umbigo?
— No
térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho?
— Pô,
pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai.
— Tá aí.
O bingolim é a genitália do homem.
— Puxa, o
senhor podia ter falado antes.
— Na
vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher
tem um nome delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe?
Começa com b.
— Barata
da vizinha?
— Não, filho. Borboleta.
Lourenço Diaféria
Raiva, não!
“Mas, na
ocasião, me lembrei dum conselho de Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado.
Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma
nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a
mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo
governando a ideia e o sentir da gente.”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Maria pintada de praia
Grandalhão,
voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria ambiciosa,
quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os
gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente
de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a
roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da
sorte, humilhando o homem na presença da sogra.
Para não
discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe
agarra a ponta do paletó:
— Não vá,
pai. Por favor, paizinho.
Comove-se
de ser chamado Paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um
grito castanho de ódio.
— O
paizinho vai dar uma volta.
Tão
grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável,
atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se
desgraçado, quer o conchego do corpo gostoso da mulher.
Mais
discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito
pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das
famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho
as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelha
e encurtar a saia — no braço o riso de pulseiras baratas.
Com uma
vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouro:
— Sou
artista exclusiva — ufana-se, com sotaque pernóstico. — A féria é gorda!
Aos
colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos,
envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto,
obrigado a dormir no sofá da sala. Noite de inverno, o filho mais velho, ao
escutá-lo gemer, traz um cobertor:
— Durma,
paizinho.
A cada
sucesso de Maria — o quinto prêmio da marchinha, o retrato no jornal, a carta
com pedido de autógrafo:
— Ela
ainda recebe uma vaia — é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!
Ó não —
essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo
parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências
ocultas. Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar
com os dois meninos. João sabe que é o fim — dona casada que tinge o cabelo não
é séria. Vai dormir no puxado da lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa
na mão.
Dois dias
fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e
desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam
de João, muda-se para casa dos pais.
Lá deixa
os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que
obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro
e, se a féria não é gorda, ainda apanha.
Cansada
de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as
pazes.
— Ela que
fique onde está. Não quero Maria, nem pintada de prata.
Despedido
da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga
surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo. Aranha cabeluda morde-lhe a
nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três — enrodilha-se
medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.
Domingo
recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público
a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mordiscam
deliciados. Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa
saliente no bolso traseiro da calça — as mãos cessam de tremer. Os meninos
desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a
mão gigantesca:
— Não,
paizinho. Não beba mais, pai.
Lágrimas
correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes.
Na esquina gorgoleja a cachaça até a última gota.
Em
delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da
desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no
primeiro boteco.
Maria cai
nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão
horrorosa, consola-se no tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos querem
saber dos piás, internados no asilo de órfãos.
Cada um
aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão
bem penteadinhos à casa do pai. Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns
goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho
irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa. Sentado
na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o
suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a
noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no
canto da boca.
Os
meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da
noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco. Fala com ele, não se mexe. Tem
medo e chama o irmão:
— O
paizinho morreu.
Sem
chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.
Dalton Trevisan, in 20 contos menores
Aos que vierem depois de nós
Realmente, vivemos muito
sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"
Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"
Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais frequentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.
Bertolt
Brecht - Tradução de Manuel Bandeira
O umbigo
“O homem
odeia tudo aquilo que não lhe parece ter sido feito por ele. É por isso que o
espírito de partido é tão zeloso. Qualquer tolo está convencido de que atingiu
o que há de melhor e de que o mundo, que sem ele nada era, passou a ser alguma
coisa.”
Johann Wolfgang von Goethe
terça-feira, 28 de outubro de 2014
Celebração da subjetividade
Eu já
estava há um bom tempo escrevendo Memória
do Fogo, e quanto mais escrevia mais fundo ia nas histórias que contava.
Começava a ser cada vez mais difícil distinguir o passado do presente: o que
tinha sido estava sendo, e estava sendo à minha volta, e escrever era minha
maneira de bater e abraçar. Supõe-se, porém, que os livros de história não são
subjetivos.
Comentei
isso tudo com José Coronel Urtecho: neste livro que estou escrevendo, pelo
avesso e pelo direito, na luz ou na contra luz, olhando do jeito que for,
surgem à primeira vista minhas raivas e meus amores.
E nas
margens do rio San Juan, o velho poeta me disse que não se deve dar a menor
importância aos fanáticos da objetividade:
—
Não se preocupe — me disse —. E assim que deve ser. Os que fazem da
objetividade uma religião, mentem. Eles não querem ser objetivos, mentira:
querem ser objetos, para salvar-se da dor humana.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços
Sonho
“Um
poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse
brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.”
Mário Quintana, in Caderno H
domingo, 26 de outubro de 2014
A Arte Popular do Mestre Zé de China, no meu quintal
Zé de China e o editor no Ateliê do artista, em Major Sales-RN
Fotos: Elilson Batista
Liberdade
“Nunca
acreditei que a liberdade do homem consiste em fazer o que quer, mas sim em
nunca fazer o que não quer, e foi essa liberdade que sempre reclamei, que
muitas vezes conservei, e me tornou mais escandaloso aos olhos dos meus
contemporâneos. Porque eles, ativos, inquietos, ambiciosos, detestando a
liberdade nos outros e não a querendo para si próprios, desde que por vezes
façam a sua vontade, ou melhor, desde que dominem a de outrem, obrigam-se
durante toda a sua vida a fazer o que lhes repugna, e não descuram todo e
qualquer servilismo que lhes permita dominar.”
Jean-Jacques Rousseau, in Os Devaneios do Caminhante Solitário
sábado, 25 de outubro de 2014
Meu pecado de pensar
“Meu
Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma
plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em
êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como
resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de
Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a
solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça
com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços
meu pecado de pensar.”
Clarice Lispector, in Um sopro de vida: pulsações
Datar poemas
“Mas por
que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas
galinhas que carimbam os ovos...”
Mário Quintana, in Caderno H
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
Nossos desejos e caprichos
“Realmente,
se um dia de fato se descobrisse uma fórmula para todos os nossos desejos e caprichos
- isto é, uma explicação do que é que eles dependem, por que leis se regem,
como se desenvolvem, a que é que eles ambicionam num caso e noutro e por aí
fora, isto é uma fórmula matemática exata - então, muito provavelmente, o homem
deixaria imediatamente de sentir desejo.
Pois
quem aceitaria escolher por regras? Além disso, o ser humano seria imediatamente
transformado numa peça de um órgão ou algo do gênero; o que é um homem sem
desejos, sem liberdade de desejo e de escolha, senão uma peça num órgão?”
Fiodor Dostoievski, in Cadernos do Subterrâneo
Verdade e erro
“Reconhecer
a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os
aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o
entendimento de tudo - quando o homem se ergue a este píncaro, está livre, como
em todos os píncaros, está só, como em todos os píncaros, está unido ao céu, a
que nunca está unido, como em todos os píncaros.”
Fernando Pessoa, Teoria da Heteronímia
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Playing For Change, neste sábado, no Teatro Riachuelo, em Natal - RN
A
banda Playing For Change, um movimento multimídia criado para
inspirar, conectar e trazer paz ao mundo através da música, que conta
com a participação de artistas de diferentes nacionalidades, está realizando
turnê internacional para divulgação de seu novo disco de trabalho: Playing For Change 3
“Songs Around The World”. Natal está entre as sete
cidades do país a receber a apresentação, dia 25 de outubro, no Teatro
Riachuelo.
Criada em 2005
por Mark Johnson e Whitney Kroenke, que deram forma ao conceito “Songs Around the World” (Músicas
no Mundo Inteiro), a Playing For Change uniu músicos de
diferentes países e culturas, com a ideia de que tocassem juntos uma
mesma canção. Mark e um pequeno grupo viajaram pelos cinco
continentes com uma equipe de gravação e câmeras, para filmar o que
eles chamam de “uma família global unida pelo poder da música”.
A
primeira destas canções é uma versão de “Stand By Me”, interpretada por mais de
35 músicos de dez países, que não se conheciam pessoalmente. Esta versão intercultural
da música foi vista mais de 100 milhões de vezes na internet. O êxito de “Songs
Around The World” inspirou a Playing For Change a
criar, em 2009,a Playing For Change Band. Em setembro
de 2013, a banda tocou a canção “A Better Place” na sede das Nações
Unidas e recebeu aplausos de um público formado por autoridades do
mundo inteiro.
A banda
também viajou por quatro continentes para fazer 150 apresentações ao vivo:
tocou em prestigiosos cenários como o Hollywood Bowl de Los Angeles,
o Festival Glastonbury na Inglaterra, o Festival Bourbon Street no
Brasil e o Byron Bay Bluesfest da Austrália.
Desde o
lançamento de seu primeiro vídeo
a Playing For Change vendeu mais de 550 mil cópias, liderou
os World Music Charts, teve mais de 200 milhões de visualizações na Internet,
foi finalista do prêmio do público no Festival de Cinema de Tribeca de
2008 e ganhadora do prêmio “Tribeca Disruptive
Innovation”, em 2012, um bairro nova iorquino, que reconhece ideias
originais que tiveram um impacto significativo.
A produção
dos atuais CD e DVD começou em 2012, com o
guitarrista do Rolling Stones, Keith Richards, um grupo de músicos
astecas e instrumentistas que se conheceram durante uma viagem pelo
Caribe. O álbum se transformou em uma aventura musical que incluiu
mais de 185 músicos de 31 países. Uma autêntica celebração mundial da
música em seus diferentes sons.
O disco
de trabalho Playing For Change 3 “Songs around the
World” poderá ser adquirido em formato físico durante a
apresentação em Natal. O álbum inclui atuações de Keith Richards,
Andrés Calamaro, Sara Bareilles, Toots Hibbert, de Toots & The Maytals,
César Rosas e David Hidalgo de Los Lobos, Preservation Hall Jazz
Band, Keb’Mo’ e Taj Mahal, além de uma faixa especial produzida por
Jackson Browne.
Durante
a apresentação em Natal, estarão presentes: os americanos, Grandpa Elliott
(vocais) e Peter Bunetta (bateria); o holandês, Clerence Bekker (vocais); os
sul-africanos, Titi Tsira (vocais) e Louis Mhlanga (guitarra); os conguianos,
Mermans Mosengo (vocais/guitarra/percussão) e Jason Tamba (vocais/guitarra); o
israelense, Tal Ben-Ari (vocais e percussão); o italiano, Roberto Luti
(guitarra); o japonês, Keiko Komaki (teclados); o cubano, Orbe Ortiz (baixo) e
o brasileiro Paulo Oliveira (percussão).
A
interpretação de canções consagradas, com a influência de
ritmos e sons de diversas partes do mundo, resulta em uma fusão única
de influências e talentos em constante evolução desde os
primeiros shows em 2008. Toda essa diversidade
musical e cultural poderá ser vista, dia 25 de outubro, no palco do
Teatro Riachuelo, em Natal.
Teatro Mágico - Outrora e agora
Ando, me indignando à beça
Como pode nossa festa
Ser de um só que não de dois?
Ando, duvidando do que nos contesta
Um mal termina e outro começa
E nossa pauta pra onde foi?
Quem apura esse socorro?
Qual apuro é primordial?
Se nada adianta, nada acontece
O que fortalece a não dispersar
Quem resiste, insiste no fronte
Quer ver novo horizonte se levantar
Sente seguro pra cá do muro
Pra cada ponte, onde se esconde
Pra cá do fundo de outro mundo
Pra cada luto, um horizonte
Quem fecha a conta, a flecha aponta
Outra matilha, matilha pra sustentar
Vacina ofício, fome família e cita um verso avulso
A vida não é fácil é faça
Corre vem disfarçar
Se nada adianta, nada acontece
O que fortalece a não dispersar
Quem resiste, insiste no fronte
Quer ver novo horizonte se levantar.
Como pode nossa festa
Ser de um só que não de dois?
Ando, duvidando do que nos contesta
Um mal termina e outro começa
E nossa pauta pra onde foi?
Quem apura esse socorro?
Qual apuro é primordial?
Se nada adianta, nada acontece
O que fortalece a não dispersar
Quem resiste, insiste no fronte
Quer ver novo horizonte se levantar
Sente seguro pra cá do muro
Pra cada ponte, onde se esconde
Pra cá do fundo de outro mundo
Pra cada luto, um horizonte
Quem fecha a conta, a flecha aponta
Outra matilha, matilha pra sustentar
Vacina ofício, fome família e cita um verso avulso
A vida não é fácil é faça
Corre vem disfarçar
Se nada adianta, nada acontece
O que fortalece a não dispersar
Quem resiste, insiste no fronte
Quer ver novo horizonte se levantar.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Cesta feira, de Paulo Leminski
oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
as roupas brancas da cesta
as roupas brancas de sexta
as roupas brancas da cesta
oxalá teu dia de festa
cesta cheia
feito uma lua
toda feita de lua cheia
cesta cheia
feito uma lua
toda feita de lua cheia
no branco
lindo
teu amor
teu ódio
tremeluzindo
se manifesta
lindo
teu amor
teu ódio
tremeluzindo
se manifesta
tua pompa
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta
oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa
mesmo
na idade
de virar
eu mesmo
na idade
de virar
eu mesmo
ainda
confundo
felicidade
com este
nervosismo
confundo
felicidade
com este
nervosismo
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
este poema me olha.
este poema me olha.
Respostas
“Uma
resposta que não pode ser exprimida supõe uma questão que tampouco pode ser
exprimida. O enigma não
existe. Se uma questão pode ser inteiramente colocada, ela pode também encontrar a sua resposta.”
Ludwig
Wittgenstein, in Tratado
Lógico-Filosófico
Verdade
“A
verdade é aquilo que todo o homem precisa para viver e que ele não pode obter
nem adquirir de ninguém. Todo o homem deve extraí-la sempre nova do seu próprio
íntimo, caso contrário ele arruína-se. Viver sem verdade é impossível. A
verdade é talvez a própria vida.”
Franz Kafka, in Conversas com Kafka
terça-feira, 21 de outubro de 2014
Bilhetinho sem maiores consequências
Uma retificação, meu bom Vinícius:
Você falou em "bares repletos de homens vazios"
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios
Homens cheios.
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à última geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade das coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizam os fatos
E você
que os conhece tão de perto
Vinícius "Felicidade" de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.
Você falou em "bares repletos de homens vazios"
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios
Homens cheios.
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à última geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade das coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizam os fatos
E você
que os conhece tão de perto
Vinícius "Felicidade" de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.
Com
uma admiração "deste tamanho".
Torquato
Neto - Rio, 7. 7.62
A Bíblia pela ótica feminina
A menina marcava as
páginas onde estavam impressas aquelas leis absurdas com a intenção de, mais
tarde, arrancá-las. 0 pai explicou-lhe que era inútil, havia muitos outros
livros com as mesmas leis. Quisesse mudá-las, teria de convencer as pessoas que
faziam leis.
Lida por esta ótica,
a Bíblia revela a igualdade entre homens e mulheres e denuncia a leitura
machista que pretende derivar dos desígnios de Deus instrumentos de dominação,
como a interdição de acesso das mulheres ao sacerdócio e ao episcopado, e a
preponderância masculina sob o pretexto de que Eva foi criada a partir da
costela de Adão — quando a natureza não deixa dúvidas de que todo homem nasce
do corpo de uma mulher.
0 evangelista Mateus
aponta, na árvore genealógica de Jesus; cinco mulheres. Tamar, Raab, Rute e
Maria; e de modo implícito, a mãe de Salomão, aquela “que foi mulher de Urias”.
Não é bem uma ascendência da qual um de nós haveria de se orgulhar.
Em sua atividade
pública, Jesus se fez acompanhar pelos Doze e por algumas mulheres: Maria
Madalena; Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes; Susana e várias
outras. Portanto, o grupo de discípulos de Jesus não era propriamente machista.
Além disso, Jesus frequentava, em Betânia, a casa de suas amigas Marta e Maria,
irmãs de Lázaro.
O primeiro milagre
de Jesus foi para atender ao pedido de uma mulher, Maria, sua mãe, preocupada
com a falta de vinho numa festa de casamento em Canã.
Escolhido por Jesus para ser o
primeiro Papa, Pedro era casado.
Em
nosso país, destacam-se Ana Flora Anderson, Teresa Cavalcanti, Wanda Deifelt e
Athalya Brenner. O Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) há anos forma, pelo Brasil
afora, homens e mulheres dos setores populares em novos métodos de
interpretação bíblica, pondo fim ao monopólio clerical e machista.
Descobrir que a mulher ocupa na Bíblia lugar e
importância iguais aos do homem é questionar as igrejas que, às vésperas do
terceiro milênio, insistem em reservar aos homens as funções de poder. E, por
tabela, subverter os valores desta sociedade que considera a direção política
um talento masculino e a questão social um derivativo da primeira dama, e
ilustra sua publicidade televisiva e as páginas das revistas com mulheres que
se prestam a ser reificadas, reduzidas ao mero apelo de consumo material e
simbólico e, no entanto, queixam-se quando tratadas pelos homens como objetos
descartáveis.
Frei Betto
O melhor amigo
Imagem: Google
A
mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado,
arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe
não se voltasse
Para
vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais
natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem
levantara a cabeça? Sentindo-se perdido, tentou ainda ganhar tempo.
–
Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma
coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava
negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio caminhando desconsolado até a sala,
mostrou à mãe o que estava carregando:
–
Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou
isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é,
mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o
filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha
que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro
agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de
choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho
na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar,
Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O
menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto,
emburrado:
A gente também não tem nenhum direito
nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo,
enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é
proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou esperando a reação da mãe.
–
Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não
tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo
mais, não vou mais ao colégio, não faço mais nada.
–
Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem
coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria
apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo, e depois… ao fim de
dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
–
Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda:
– Meu melhor amigo, não tenho mais ninguém nesta vida.
–
E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam
vingança. A mãe chegou a se reocupar: meninos nessa idade, uma injustiça
praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa.
–
Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de
dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinquenta, tenho
certeza que ele dava murmurou, pensativo.
Fernando
Sabino
O prazer: vício
"Todo o prazer é um vício, porque
buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o
que toda a gente faz."
Fernando
Pessoa, in Livro do desassossego
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
Tão bom aqui
Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.
Adélia
Prado
O boi velho
Uma das
coisas mais ingênuas e comoventes da vida do Barão do Rio Branco era o seu
sonho de fazendeiro. Homem nascido e vivido em cidade, traça de bibliotecas,
urbano até a medula, cada vez que uma coisa o aborrecia em meio às batalhas
diplomáticas, seu desabafo era o mesmo, em carta a algum amigo: “Penso em
largar tudo, ir para São Paulo, comprar uma fazenda de café, me meter lá para o
resto da vida…”
Nunca
foi, naturalmente; mas viveu muito à custa desse sonho infantil, que era um
consolo permanente.
Por que
não confessar que agora mesmo, neste último carnaval, visitando a fazenda de um
amigo, eu, pela décima vez, também não me deixei sonhar o mesmo sonho? Com
fazenda não, isso não sonhei; os pobres têm o sonho curto; sonhei com o mesmo
que sonham todos os oficiais administrativos, todos os pilotos de aviação
comercial, todos os desenhistas de publicidade, todos os bichos urbanos mais ou
menos pobres, mais ou menos remediados: pegar um dinheirinho, comprar um sítio
jeitoso, ir melhorando a casa e a lavoura, vai ver que no primeiro ano dava
para se pagar, depois quem sabe daria uma renda modesta, mas suficiente para
uma pessoa viver sossegada; com o tempo comprar, talvez mais uns alqueires…
Meu pai
foi durante algum tempo sitiante, minha mãe era filha de fazendeiro, meus tios
eram todos da lavoura… Mas que brasileiro não é mais ou menos assim, não guarda
alguma coisa da roça e não tem a melancólica fantasia, de vez em quando, de
voltar?
Aqui
estou eu, falso fazendeiro, montado no meu cavalo, a olhar minhas terras. Chego
até o curral, um camarada está ordenhando as vacas. Suas mãos hábeis fazem
cruzar-se dois jatos finos de leite que se perdem na espuma alva do balde.
Parece tão fácil, sei que não é. Deixo-me ficar entre os mugidos e o cheiro de
estrume, assisto à primeira aula de um boizinho que estão experimentando para
ver se é bom para carro. Seu professor não é o carreiro que vai tocando as
juntas nem o pretinho candeeiro que vai na frente com a vara: é um outro boi,
da guia, que suporta com paciência suas más-criações, obrigando-o a levantar-se
quando se deita de pirraça, arrasta-o quando é preciso, não deixa que ele
desgarre, ensina-lhe ordem e paciência.
No
coice há um boi amarelo que me parece mais bonito que os outros. O carreiro
explica que aquele é seu melhor boi de carro, mas tem inimizade àquele zebu
branco vindo de Montes Claros, seu companheiro de canga; implica aliás com
todos esses bois brancos vindos de Montes Claros. O caboclo sabe o nome, o
sestro, as simpatias e os problemas de cada boi, sabe agradar a cada um com uma
palavra especial de carinho, sabe ameaçar um teimoso – “Mando te vender para o
corte, desgraçado!” – com seriedade e segurança.
Ah,
não dou para fazendeiro; sinto-me um boi velho, qualquer dia um novo diretor de
revista acha que já vou arrastando devagar demais o carro de boi de minha
crônica, imagina se minhas arrobas já não valem mais que meu serviço, manda-me
vender para o corte…
Rubem Braga
domingo, 19 de outubro de 2014
Para sempre
“O
que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é
liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre se
achava diante de meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto – e também este
escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para
sempre, escorreria e passaria – e comigo, como uma carga de detritos sem
sentidos e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até
mesmo minha própria fidelidade. Sim que é para sempre senão a última imagem
deste mundo – não exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele
numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e
prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – a
forca enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o
constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um
amor que não se consegue, e que afinal é apenas a lembrança de um bem perdido –
quando? – num lugar que ignoramos, as cuja perda nos punge, e nos arrebata, totais,
a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempre nos
confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos.”
Lúcio Cardoso, in Diário de André
Círculo vicioso
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- "Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- "Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume:
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
Claridade imortal, que toda a luz resume:
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
- "Pesa-me esta
brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"
Machado
de Assis
sábado, 18 de outubro de 2014
Saudade
“A
gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso,
estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar,
entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o
formar daqueles cavaleiros, escorridos, se divisava. E o senhor me desculpe, de
estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus
olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa
Advertências
"Os
que cuidam que tudo sabem necessitam de mais advertências, porque erram mais
torpemente; por isso necessitam de mais conselhos, porque presumem que de nada
carecem, cegueira em que os mais advertidos tropeçam."
Padre Antônio Vieira
Leitura
“Livro
bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até
onde? — uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira
leitura continuada.”
Mário Quintana, in Caderno H