terça-feira, 30 de setembro de 2014

O tempo não existe


“Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a ideia de imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado. E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia.”
Clarice Lispector, in Um Sopro de Vida

O primeiro livro lido

Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra “m” se chamasse “éme” e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse “éme” e sim “ma”. Era-me impossível ler assim. Por fim, quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes. Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu-me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: “Caramba!, este menino vai ser escritor”.
Dito por ele, que vivia de escrever, causou-me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era “As Mil e Uma Noites”. O conto de que mais gostei - um dos mais curtos e o mais simples que li — continuou a parecer-me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém me tenha podido esclarecer. O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer-lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e, quando a mulher abriu o peixe para o frigir, tinha dentro um diamante do tamanho de uma amêndoa.
Gabriel García Márquez, in Viver para Contá-la

A eterna e monótona novidade


Imagem: Google

Foi assim que Euclides da Cunha fotografou a seca. Eterna porque independe da ação humana, fenômeno natural com registro no passado, atestado no presente e previsível no futuro. Monótona porque vem em ciclos, repetidamente; de fácil constatação. E novidade por conta da incompetência gerencial do poder político, que faz da seca uma surpresa a cada ano.
Em casos mais graves, nem é incompetência. É cumplicidade política, onde a seca serve para produzir mais riqueza pra quem já é rico e aprofundar mais miséria para os que continuam pobres. Essa prática é também uma novidade eterna e monótona.
Até um órgão com a denominação estúpida de “contra a seca” foi criado. E o pior: de “obras contra”… De lá pra cá, o mesmo ritual de remendos e assistencialismo. Onde o vício dessa “arrumação” encontrou agasalho no poder e nos “favorecidos”. O poder caridoso de um povo mendicante.
Não consigo ver uma ação governamental que pelo menos saia do ramerrão continuado. A transposição do São Francisco? É tão antiga e distante que mais parece piada. Só não é uma piada, porque já derramou e pôs dinheiro público em canos e canais vazios. Essa sim, a transposição de grana do bolso do povo para a botija de empresas e empreiteiras. Tudo devidamente licitado, ao sabor da burocracia.
Vejamos alguns aspectos dessa monumental mentira. Em primeiro lugar é de se constatar o desgaste do próprio São Francisco. Nascentes agonizantes e matas mortas. Seja pela estupidez dos nativos dessas regiões, seja pela falta de fiscalização do Governo e das chamadas entidades de defesa do meio ambiente. O Governo encastelado nos “negócios” políticos. As entidades ambientais vendendo ilusões nas salas refrigeradas e nas luzes da mídia. Muita picaretagem e pouca ação.
Outra constatação. A água que por ventura aqui chegue dessa transposição, será insuficiente para estancar esse processo perverso das relações com a seca. Fossem suficientes as águas de um rio, ao passar numa cidade ou comunidade, não haveria miséria nas cidades ribeirinhas onde passa o São Francisco. Só aí já se desmoraliza a propaganda enganosa.
Há soluções pequenas e pontuais, que mesmo não resolvendo o problema geral, podem atenuar bastante os efeitos da seca.
Vejamos uma. Os açudes e açudecos, das pequenas e médias propriedades, inclusive nas beiras das estradas, estão assoreados. Com menos da metade de sua capacidade de acúmulo. Todo ano, nesta época, eles estão secos e se oferecendo para uma solução. Qual? A dragagem. Coisa que um pequeno trator, com uma escavadeira, aprofundará dois ou três, num dia, dependendo da distância. Refaz o porão e com o material retirado, reforça a parede. Onde se acumulava água por seis meses, passará ao dobro, com reserva para um ano. Fácil e simples. Todo ano, eu repito isso aqui.
Eterna sacanagem. Monótona patifaria. Enrugada novidade. Té mais.
François Silvestre, in Novo Jornal, de 28/09/2014

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Breve permanência neste mundo

“Das coisas tangíveis, as menos duráveis são as necessárias ao próprio processo da vida. O seu consumo mal sobrevive ao ato da sua produção; no dizer de Locke, todas essas ‘boas coisas’ que são ‘realmente úteis à vida do homem’, à ‘necessidade de subsistir’, são ‘geralmente de curta duração, de tal modo que - se não forem consumidas pelo uso - se deteriorarão e perecerão por si mesmas’.
Após breve permanência neste mundo, retomam ao processo natural que as produziu, seja através de absorção no processo vital do animal humano, seja através da decomposição; e, sob a forma que lhes dá o homem, através da qual adquirem um lugar efêmero no mundo das coisas feitas pelas mãos do homem, desaparecem mais rapidamente que qualquer outra parcela do mundo.”
Hannah Arendt, in A condição humana

Legenda

No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol
Oculto em pleno dia.
No princípio
Houve silêncio até para escutar-se
O germinar atroz de uma desgraça
Maquinada no horror do meio-dia.
E havia, no princípio,
Tão vegetal quietude, tão severa
Que se estendia a queda de uma lágrima
Das frondes dos heróis de cada dia.

Havia então mais sombra em nossa via.
Menos fragor na farsa da agonia,
Mais êxtase no mito da alegria.

Agora o bandoleiro brada e atira
Jorros de luz na fuga de meu dia —
e mudo sou para contar-te, amigo,
O reino, a lenda, a glória desse dia.
Mário Faustino

Oportunismo

"Os homens hão de aprender que a política não é a moral e que se ocupa apenas do que é oportuno."
Henry David Thoreau

domingo, 28 de setembro de 2014

Brasil e o reino de Lilipute

“De um ato do nosso governo só a China poderá tirar lição. Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar ao reino de Lilipute.”
Machado de Assis, in Diário do Rio de Janeiro, de 29/12/1861

Meio Fio - Rita Lee



Onde quer que eu vá
Levo em mim o meu passado
E um tanto quanto do meu fim
Todos os instantes que vivi
Estão aqui
Os que me lembro
E os que esqueci

Carrego minha morte
E o que da sorte eu fiz
O corte e também a cicatriz

Mas sigo meu destino
Num yellow submarino
Acendo a luz
Que me conduz
E os deuses me convidam

Para dançar
No meio fio
Entre o que tenho
E o que tenho que perder
Pois se sou só, eu só
Flutuando no vazio
Vou dando voz ao ar que eu receber

Pra ficar comigo
Corro, salto me equilibro
Entre minha neta e minha avó
Fico firme, sigo adiante
Ante o perigo
Vejo o que me aflige virar pó

Às vezes, acredito em mim
Às vezes, não acredito
Também não sei se devo duvidar

Mas sigo meu destino
Num yellow submarino
Acendo a luz
Que me conduz
E os deuses me convidam

Para dançar
No meio fio
Entre o que tenho
E o que tenho que perder
Pois se sou só, eu só
Flutuando no vazio
Vou dando voz ao ar que receber
Composição: Arnaldo Antunes e Roberto de Carvalho

Um silêncio

Ela descalçou os chinelos
e os arrumou juntinhos
antes de pôr a cabeça nos trilhos
em cima do pontilhão,
debaixo dos qual as lavadeiras amavam.
O barulho do baque com o barulho do trem.
Foi só quando a água principiou a tingir
a roupa branca que dona Dica enxaguava
que ela deu o alarme
da coisa horrível caída perto de si.
Eu cheguei mais tarde e assim vi para sempre:
a cabeleira preta,
um rosto delicado,
do pescoço a água nascendo ainda alaranjada,
os olhos belamente fechados.
O cantor das multidões cantava no rádio:
“Aço frio de um punhal foi teu adeus pra mim”.
Adélia Prado

O que é o medo?

“O que é o medo? Um produzido dentro da gente, um depositado; e que às vezes se mexe, sacoleja, e a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só estão é fornecendo espelhos. A vida é para esse sarro de medo se destruir, jagunço sabe. Outros contam de outra maneira.”
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

sábado, 27 de setembro de 2014

Citação

E melhor se poderia dizer dos poetas o que disse dos ventos Machado de Assis: "A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude a constância."
Mário Quintana, in Caderno H

Cão feroz


Cão feroz é uma placa de metal pregada no portão. Cão feroz em caixa alta, em relevo branco, sobre campo azul. Cão feroz é o título da casa. Cão feroz é pura retórica para os visitantes. Cão feroz late súbito. Cão feroz não tem raça, tamanho, marca. Cão feroz não tem nome próprio. Cão feroz nasceu nas entranhas. Cão feroz aparece mais de noite. Cão feroz de dia é mais espacejado. Cão feroz só morde no escuro. Cão feroz não vai cruzar. Cão feroz não vai fugir. Cão feroz não usa coleira. Cão feroz não passeia. Cão feroz confinado por natureza. Cão feroz não tem necessidades. Cão feroz não come de tudo. Cão feroz não tem dono. Cão feroz avança, movediço. Cão feroz não lambe. Cão feroz fareja. Cão feroz tem um dia interminável. Cão feroz escuta. Cão feroz depois do muro. Cão feroz atrás da porta. Cão feroz fuça. Cão feroz monótono. Cão feroz não tem filhos. Cão feroz não tem pai nem mãe. Cão feroz não tem irmão. Cão feroz ideia fixa. Cão feroz refrão. Cão feroz pega. Cão feroz vai pra cima. Cão feroz fiel a si mesmo. Cão feroz não dá folga. Cão feroz se repete. Cão feroz xerox. Cão feroz resiste ao banho. Cão feroz não dorme. Cão feroz é sexto sentido. Cão feroz é reza forte. Cão feroz e seu ranho matutino. Cão feroz de guarda. Cão feroz veraz. Cão feroz não vaza. Cão feroz contido por oito letras e um espaço apertado. Cão feroz contra-ataca. Cão feroz não larga o osso estranho. Cão feroz feito de histéricas lágrimas da raiva. Cão feroz de surpresa. Cão feroz é tradução feroz de cave canem. Cão feroz não sai do pé. Cão feroz de fé e de ferro. Cão feroz diário. Cão feroz não descansa. Cão feroz tem mau hálito. Cão feroz não esquece. Cão feroz encarniçado. Cão feroz tem uma vida de cachorro. Cão feroz dolorido. Cão feroz assalta. Cão feroz se desdobra. Cão feroz mordente 7 vezes. Cão feroz baba. Cão feroz invisível para as visitas. Cão feroz enfezado. Cão feroz em riste. Cão feroz não é de paz. Cão feroz ouve sem parar a guerra angustiosa e sub-reptícia no jardim e dentro de casa. Cão feroz agudo uiva em U maior opus um e único. Cão feroz não brocha. Cão feroz arreganhado. Cão feroz é pau. Cão feroz cacete. Cão feroz é um modo de ser. Cão feroz sistemático. Cão feroz ferrolho. Cão feroz é maralto. Cão feroz tem horário rígido. Cão feroz não tem morada. Cão feroz sem eira nem beira. Cão feroz não usa mordaça. Cão feroz avisa e se publica. Cão feroz frio e firme. Cão feroz cheira mal. Cão feroz indomesticável. Cão feroz não cabe na página. Cão feroz extrapola. Cão feroz pula. Cão feroz assusta quem passa. Cão feroz fora da pauta. Cão feroz não deixa passar a mão. Cão feroz não guia ninguém. Cão feroz é onipresente. Cão feroz faz das tripas coração. Cão feroz instantâneo. Cão feroz indefensável. Cão feroz impedido. Cão feroz lugar-comum. Cão feroz não tem hífen. Cão feroz a rigor. Cão feroz não deixa ninguém parar defronte. Cão feroz ligado à campainha. Cão feroz há tanto tempo. Cão feroz ininterrupto. Cão feroz sempre ali e além. Cão feroz não freia. Cão feroz instintivo e íntimo. Cão feroz todo dentes. Cão feroz mórbido. Cão feroz não sossega. Cão feroz é escrita automática. Cão feroz subverte a ordem sintática. Cão feroz morde a mão que o escreve. Cão feroz transtorna a calçada e a rua toda. Cão feroz vem do subterrâneo. Cão feroz não tem culpa. Cão feroz não tem perdão. Cão feroz não desanda. Cão feroz não divaga. Cão feroz não enlouquece. Cão feroz espera. Cão feroz fermenta. Cão feroz quer chegar ao fim da página. Cão feroz não quer acabar. Cão feroz implacável. Cão feroz quer passar para outra página. Cão feroz caligráfico. Cão feroz não para de cair dentro da bocarra da toca. Cão feroz família. Cão feroz obsessivo. Cão feroz não tem por quê. Cão feroz substantivo. Cão feroz não faz parágrafos. Cão feroz não dá espaço na mancha gráfica. Cão feroz contraditório. Cão feroz marginal. Cão feroz manuscrito, datilográfico, digital. Cão feroz cambiante. Cão feroz quase chegando. Cão feroz textual. Cão feroz emplacado. Cão feroz solto. Cão feroz continua mesmo que a folha termine e não haja outra. Cão feroz é um apontamento. Cão feroz.
Armando Freitas Filho, in Revista Piauí 96

A busca de Pessoa


Em “Diário da Tarde”, livro de notas avulsas de Paulo Mendes Campos (Companhia das Letras), encontro um brevíssimo artigo sobre Fernando Pessoa que me chama a atenção. Estanco, em particular, em uma frase: “É possível que Pessoa tenha passado a existência toda a pretender-se um gênio, a posar de gênio, sem ter a certeza do que era de fato um gênio”. Tomo a liberdade de imaginar um pequeno lapso de revisão e transformo o final da frase em: “sem ter a certeza de que era de fato um gênio”. Nas duas versões, a frase é assombrosa.
Primeiro preciso explicar o que é “Diário da Tarde”. Depois de se aposentar, nos anos 1980, Paulo Mendes Campos se transferiu para um sítio na serra de Petrópolis. Lá, para preencher seu vazio, imaginou um jornal, o “Diário da Tarde”, de que era o editor-chefe, o único redator e o único repórter. Naquela altura já famoso pelas crônicas que publicava na grande imprensa, Paulo se divertia fazendo seu próprio jornal, no qual escreveu artigos, comentários de futebol, análises literárias, crônicas e aforismos. A nota literária que leio é apenas um desses textos avulsos. Que formam um livro inspirador.
Volto à frase de Paulo sobre Pessoa. Primeiro penso no “pretender-se gênio”. Ainda hoje, na era dos grandes bestsellers internacionais, na época em que parece ser melhor ganhar uma adaptação para o cinema, ou uma tradução em língua estrangeira, do que ser lido – ainda hoje, apesar disso, muitos escritores ainda se alimentam da ideia do “gênio”. O Houaiss me ajuda a defini-lo: “extraordinária capacidade intelectual, notadamente a que se manifesta em atividades criativas”. Existem gênios sim. Pessoa foi um gênio, assim como Virginia Woolf – citada por Paulo no mesmo texto – também foi. Uma coisa é ser, outra bem diferente é pretender-se. O impasse começa no conceito exagerado a respeito de si mesmo. Ali não se avança mais.
O risco dessa pretensão é impedir que o escritor reconheça, de fato, quem ele é. Impedir que ele chegue a si e à sua voz. Gênios só existem “a posteriori”. Primeiro o escritor se debruça sobre a obra, se desdobra, dá o melhor de si. Só depois, muito depois, a posteridade afirmará, ou negará, sua genialidade. Chego aqui, então, ao segundo momento da frase que me interessa: “posar de gênio”. Esse parece ser um efeito ainda mais disseminado em nossos tempos. No século 21, o escritor - mesmo que não seja lido, ou em geral sem que seja lido - se tornou uma figura popular, um astro pop. Não é mais sua palavra que vale, mas sua imagem. Sua pose. Muitos escritores cultivam uma postura genial que não corresponde a suas obras. No mundo de imagens e de flashs em que vivemos, essa postura costuma valer mais do que mil palavras.
Chego, enfim, ao momento da frase em que, graças à troca de um “do” por um “de”, o significado vacila. “Sem ter a certeza do que era de fato um gênio” indica, antes de tudo, uma aceitação da própria ignorância. Você faz a pose _ mas não sabe o que ela significa. Você simula um status _ mas não sabe a que ele exatamente corresponde. “Sem ter a certeza do” indica uma valorização da ignorância – isso apesar da pretensão ou da arrogância. Pessoa quer ser algo que não sabe o que é. Mas ainda assim deseja ser. O importante aqui é que ele desconhece o destino grandioso que planeja para si mesmo.
Experimento, porém, a segunda versão: “sem ter a certeza de que era de fato um gênio”. Aqui a frase nos traz um “de” e não um “do”. Em consequência, ela já não fala mais da ignorância, mas da dúvida. Nesse caso, Pessoa sabe o que é ser um gênio - mas não sabe se ele mesmo se encaixa, ou não, nessa classificação. Não tem dúvidas a respeito do que deseja ser, só não sabe se conseguiu, ou conseguirá. A hesitação dele se apossa. Ao contrário do que acontece na versão anterior, ele tem certeza do que deseja ser. Só não sabe se é. Exibe, com isso, sua insegurança. Forte sentimento que não o impediu, ao contrário, o alimentou. Que se tornou capital em uma obra cheia de heterônimos, de assinaturas, de cisões nunca completadas.
Seja como for, fica um desejo vago, mas insistente, de se superar. De ir além de si, quando um escritor deve, antes de tudo, sustentar a si mesmo _ o que significa, também, chegar aquém de si. Assinala Paulo, nessa frase (e em qualquer uma das duas versões, a real ou a imaginária), o desejo de Pessoa de ultrapassar-se - seja para a frente, ou para trás. A frase fala, portanto, de uma insatisfação do poeta consigo mesmo. Eis onde quero chegar: nesse sentimento de insatisfação, cada vez mais incomum em nosso mundo de pessoas “cheias de si”. Talvez a genialidade de Pessoa comece justamente aí: em seu descontentamento consigo mesmo. Ou quer ser um gênio, mas não sabe o que é ser um gênio. Ou quer ser um gênio, mas não tem certeza de que é. Nos dois casos, há um poeta insatisfeito – há um sentimento incompleto que entrava, mas também estimula. Que foi, no fim das contas, o combustível de sua escrita.
Se não houvesse o que buscar, Pessoa nada teria escrito.
José Castello, in O Globo

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Esquentando as baterias


Eles nunca desconfiaram que aquele “folclore baiano” fora feito no quarto de hotel em São Paulo. Pelo menos nunca deixaram transparecer. Naturalmente, eu tinha dez anos na prática de parecer ausente de minhas composições.
Graças a Nemésio Salles, fui contratado por trinta cruzeiros mensais para trabalhar com o poeta José Carlos Capinam e dirigir o Departamento de Música do CPC. (os CPCS eram os Centros Populares de Cultura, núcleo de atividades artísticas organizados pela classe universitária de esquerda) Capinam, Emanoel Araújo, Geraldo Fidélis Sarno, eu e muitos amigos fazíamos uma pluralidade de tarefas: cantávamos nas escolas, nos sindicatos, nas festas da cidade de Salvador. Lembro-me de que numa greve de bancários moramos no sindicato da classe por três semanas. Para motivar a vigília da paralisação, compusemos músicas com as reivindicações; eram cantadas nas passeatas. Fazíamos shows diários, à tarde e à noite. Com bonecos de Emanoel Araújo, Fidélis Sarno e Capinam escreveram uma peça de teatro de títeres que, musicada por mim, representávamos no sindicato e em qualquer lugar em que o movimento atuasse.
Algumas dessas canções fizeram parte, em 1965, do meu primeiro compacto pela RCA e do elepê de estreia, Grande Liquidação, de 68.
Ainda naquele ano de 61, antes de entrar para a Escola de Música, Orlando Senna fez com que fôssemos apresentados, Gil, Caetano e eu. Começamos a atuar juntos. Apesar disso passaria sete anos sem compor uma só canção, mas estudando música. Só voltaria a compor música popular em 1968.
De 68 a 73 foi uma luta, para me adaptar a forma A-B-A simples de música popular, isto é, 1ª parte, 2ª parte, 1ª parte. Depois de 1961 só voltei a praticar o que chamo realmente de composição em 73, com TomZéTodososOlhos, da Continental, quando esquentei as baterias para Estudando o Samba, de 1976.
Tom Zé, in Tropicalista lenta luta

O maior pecado

“No passado cometi o maior pecado que um homem pode cometer: não fui feliz.”
Jorge Luis Borges

Impeçam os furtos futuros

“(...) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.
O que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a fazenda real ou a dos particulares; e uma outra têm obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de restituí-la, assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.
Padre Antônio Vieira, in Sermão do bom ladrão

A escrita

"A escrita tem as suas próprias leis de perspectiva, de luz e de sombras, como a pintura e a música. Se nasces com elas, perfeito. Se não, aprende-as. Em seguida, reorganiza as regras à tua maneira."
Truman Capote

Instantâneo

“Às vezes, olhando um instantâneo tirado numa praia ou numa festa, percebia com leve apreensão irônica o que aquele rosto sorridente e escurecido me revelava: um silêncio. Um silêncio e um destino que me escapavam, eu, fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo. Ao olhar o retrato eu via o mistério. Não. Não vou perder o resto do medo do mau gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é coragem – e vou dizer que na minha fotografia eu via O Mistério.”
Clarice Lispector, in A Paixão Segundo G.H.

Imortalidade


“A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.”
José Saramago, in Ensaio sobre a cegueira

Sertão é quando menos se espera



“Um lugar conhece outro é pôr calúnias e falsos levantados; as pessoas também, nesta vida. Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. 
Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Quadrante que assim viemos, pôr esses lugares, que o nome não se soubesse. Até, até. A estrada de todos os cotovelos. Sertão, — se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, pôr si, quando a gente não espera, o sertão vem. O sertão não chama ninguém às claras, mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente…”
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Lápide para Steve Jobs

A Deus entrego meus pecados,
entrego-os a quem pertencem,
não a Satanás que é um dos nossos
e sofre também o tormento dos filhos
que têm o Pai ocupado em alimentar pardais.
Nem torres que tocam a lua,
ou o que quer que nos roube o fôlego,
fazem assomar Seu rosto.
Por que nos abandonastes?
Vosso Filho soube, na obediência da morte,
e o que se viu foi só um tremor rasgando a pele da terra.
Alguém no derradeiro instante exclamou Oh! Oh!
e fechou os olhos.
Eu não tenho aonde ir, tudo me ignora,
ignoro tudo, pois sou natureza.
Um beija-flor enfia numa flor natalina
o seu bico comprido e come e bebe e voa,
não pousa no meu ombro,
não bebe do meu olho a água de sal.
Por agora, o que me faz prosseguir
é sua indiferença. Esta ausência de milagre.
Adélia Prado

A verdade

“Embora ela pareça suscetível de unir, nada divide tanto como a verdade.”
Jean Rostand

Uma menina valente


Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Também estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como um menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:
- Tu tá gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
- Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites:
- Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
- ... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
- Isso mesmo - sua voz estava cheia de resolução.
- Tu endoidou...
Dizia com voz soturna, porque, para ele, ela também não era mãe. Também para o Professor ela era a Amada.
- Não sei por quê.
- Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.
- Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder:
- Mas a gente veste calça, não é saia.
- Eu também, e mostrava as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela e pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:
- Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?
- É igual.
- Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é...
- Tem nada, não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado.
Por isso ainda disse:
- Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
- Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não aguenta um empurrão...
- Posso fazer outras coisa.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse medo dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendi a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão. O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto:
- É valente como um homem...
Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o  na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:
- Ladrão! Ladrão! Me furtaram...
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri.
Jorge Amado, in Capitães da areia

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Meu melhor amigo

"Perguntas-me qual foi o meu progresso? Comecei a ser amigo de mim mesmo."
Sêneca

A mão


Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
E nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta 

o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos.
A mão cresce mais e faz
do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor.
Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica,
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem.

Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.

Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.
Carlos Drummond de Andrade, dedicado a Portinari por ocasião de sua morte

domingo, 21 de setembro de 2014

Uma luta repetida


“Ele continuou a ler:
Os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo – pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fora de sua vida – é abolir todas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagero dizer que não se registra na história progresso material. Mesmo hoje, neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro a igualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação histórica significou mais do que uma mudança de nome dos amos.”
George Orwell, in 1984

Fé e amor

“Deus, para a felicidade do homem, inventou a fé e o amor. O Diabo, invejoso, fez o homem confundir fé com religião e amor com casamento.”
Machado de Assis

Vacilações e certezas

“Nossas vacilações levam a marca de nossa honradez; nossas certezas a de nossa impostura. A desonestidade de um pensador se reconhece pela quantidade de ideias precisas que enuncia.”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

sábado, 20 de setembro de 2014

Vanguart - "Se Tiver Que Ser Na Bala"



“Se tiver que ser na bala, vai
Se tiver que ser sangrando, vai
Se você quiser, eu vou...”

Rios

“Gosto dos rios. E gosto mais quando eles estão nas margens dos meninos, dos pássaros, das árvores, das pedras, das lesmas, dos ventos, do sol, dos sapos, das latas e de todas as coisas sem tarefas urgentes. Os rios são uma das fontes da minha poesia  porque as garças pousam neles com os olhos cheios de sol e de neblina. Porque as rãs paridas nas suas margens gorjeiam como os pássaros. Porque as libélulas, também chamadas de lava-bundas, farreiam na flor de suas águas. E porque o menino, em cujas margens o rio corre, guarda no olho as coisas que viu passar.”
Manoel de Barros

As influências na liberdade

“Se examinarmos um indivíduo isolado sem o relacionarmos com o que o rodeia, todos os seus atos nos parecem livres. Mas se virmos a mínima relação entre esse homem e quanto o rodeia, as suas relações com o homem que lhe fala, com o livro que lê, com o trabalho que está fazendo, inclusivamente com o ar que respira ou com a luz que banha os objetos à sua roda, verificamos que cada uma dessas circunstâncias exerce influência sobre ele e guia, pelo menos, uma parte da sua atividade. E quantas mais influências destas observamos mais diminui a ideia que fazemos da sua liberdade, aumentando a ideia que fazemos da necessidade a que está submetido.
(...) A gradação da liberdade e da necessidade maiores ou menores depende do lapso de tempo maior ou menor desde a realização do ato até à apreciação desse mesmo ato. Se examino um ato que pratiquei há um minuto em condições quase as mesmas em que me encontro atualmente, esse ato parece-me absolutamente livre. Mas se aprecio um ato realizado há um mês, ao encontrar-me em circunstâncias diferentes, a meu pesar, se não tivesse realizado esse ato, não existiriam muitas coisas inúteis, agradáveis e necessárias que derivam dele. Se me translado com a memória a um ato mais remoto, a um ato de há dez anos ou mesmo mais, então as suas consequências ainda se me apresentarão mais evidentes e ser-me-á difícil representar-me seja o que for, caso aquele ato remoto nunca tivesse existido.
Quanto mais retroceder na minha memória, ou, o que vem a dar na mesma, quanto mais projetar no futuro o meu juízo, tanto mais duvidosos me parecerão os meus raciocínios acerca da liberdade do ato realizado.”
Leon Tolstoi, in Guerra e Paz

Medo

“Afinal, é covardia reconhecer o medo?”
Markus Suzak, in A menina que roubava livros

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Foto de índio brasileiro vence concurso global

Fotografia vencedora do concurso Survival International (Foto: Giordano Cipriani)

A foto de um índio brasileiro, de uma tribo do Tocantins, foi a vencedora do primeiro concurso global de fotografia lançado pela ONG Survival International, que luta pelos povos indígenas.
O autor da imagem, o italiano Giordano Cipriani, captou toda a cor e a expressão de um índio da tribo Asurini e faturou o prêmio, deixando para trás concorrentes de várias partes do mundo. Segundo a ONG, o objetivo do concurso era expor a rica diversidade dos povos indígenas ao redor do planeta.
A Survival International aproveitou o concurso para lançar o calendário para 2015 "We, The People" (Nós, As Pessoas, em tradução livre).
Para outras fotos, acesse aqui.

Acerca dos prazeres

“Parece-me que a natureza trabalhou para ingratos: somos felizes, mas os nossos discursos são tais que parecemos nem sequer suspeitar disso. No entanto, encontramos prazeres em toda a parte: estão ligados ao nosso ser, e os pesares não passam de acidentes. Os objetos parecem em toda a parte preparados para os nossos prazeres: quando o sono nos chama, as trevas nos aguardam; e, quando acordamos, a luz do dia nos arrebata. A natureza é enfeitada de mil cores; os nossos ouvidos são lisonjeados pelos sons; as iguarias têm gosto agradável; e, como se a felicidade da existência não fosse suficiente, é ainda necessário que a nossa máquina precise de ser incessantemente reparada para os nossos prazeres.”
Montesquieu, in Os meus pensamentos

Experiências


“Será que não há nenhum contexto para as nossas vidas? Nenhuma canção, nenhuma literatura, nenhum poema cheio de vitaminas, nenhuma história ligada à tua experiência que possas passar para nos ajudarem a ficar mais fortes? Tu és um adulto. O mais velho, o mais sábio. Para de pensar em salvar a tua imagem. Pensa sobre as nossas vidas e conta-nos sobre o teu mundo em particular. Desenvolve uma história. A narrativa é radical, cria-nos a nós próprios no momento exato em que está a ser criada. Nós não vamos te culpar se o teu alcance excede a tua compreensão, se o amor incendeia as tuas palavras, se elas descem em chamas e nada deixam a não ser a queimadura. Ou se, com a reticência das mãos de um cirurgião, as tuas palavras apenas suturam os locais por onde o sangue pode ter fluído. Sabemos que nunca o conseguirás fazê-lo corretamente – de uma vez por todas. A paixão nunca é suficiente; nem a habilidade. Mas tenta. Por nós, e por ti próprio, esquece o teu nome na rua; conta-nos aquilo que o mundo tem sido para ti, tantos nos bons como nos maus momentos. Não nos digas o que acreditar, o que recear. (...) A linguagem é a meditação.”
Toni Morrison, trecho da palestra na entrega do Prêmio Nobel de Literatura de 1993

Transmutação

“A felicidade não precisa ser transmutada em beleza, mas a desventura sim.”
Jorge Luis Borges

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Diferentes

“Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.”
Mário de Andrade, in Caderno H

A dor é algo que você inflige a si mesmo

“Um instrutor de combate de um braço só chamado Cliff (sim, eu sei, ele ensinava combate sem armas e só tinha um braço –  muito raramente a vida é assim mesmo) me disse uma vez que a dor é algo que você inflige a si mesmo. Outras pessoas fazem coisas com você – batem, esfaqueiam ou tentam quebrar seu braço – , mas quem produz a dor é você. Portanto, dizia Cliff que tinha passado duas semanas no Japão  e que por isso se sentia no direito de descarregar esse tipo de merda em seus alunos – está sempre em seu poder parar a própria dor. Cliff foi morto em uma briga de pub três meses depois por um viúva de 55 anos, por isso não terei a chance de dizer a ele que isso não era verdade.
A dor é um evento. Ela acontece com você, e você lida com ela da melhor maneira possível.”
Hugh Laurie, in O vendedor de armas

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Lembrar para prolongar

“Comportamo-nos como se as pessoas de quem gostamos fossem durar para sempre. Em vida não fazemos nunca o esforço consciente de olhar para elas como quem se prepara para lembrá-las. Quando elas desaparecem, não temos delas a memória que nos chegue. Para as lembrar, que é como quem diz, prolongá-las. A memória é o sopro com que os mortos vivem através de nós. Devemos cuidar dela como da vida.
Devemos tentar aprender de cor quem amamos. Tentar fixar. Armazená-las para o dia em que nos fizerem falta. São pobres as maneiras que temos para o fazer, é tão fraca a memória, que todo o esforço é pouco. Guardá-las é tão difícil. Eu tenho um pequeno truque. Quando estou com quem amo, quando tenho a sorte de estar à frente de quem adivinho a saudade de nunca mais a ver, faço de conta que ela morreu, mas voltou mais um único dia, para me dar uma última oportunidade de a rever, olhar de cima a baixo, fazer as perguntas que faltou fazer, reparar em tudo o que não vi; uma última oportunidade de a resguardar e de a reter. Funciona.”
Miguel Esteves Cardoso, in As Minhas Aventuras na República Portuguesa

Até o Fim

Até o fim com esta garganta
e estes olhos
líquidos, até o fim
com estas mãos
trêmulas.

Até o fim com estes pés exaustos
e estes lábios costurados
ao pé da noite. Até o fim
sem dizer nada.

Até o fim estes canais premindo
o sangue.
Até o fim o obrigatório oxigênio
sobrevivência
no abstrato
difícil ar.

Até o fim a tinta ilesa do amor
na alma,
até que quebrem as epidermes
desta mentira,
e o fim prossiga
até o fim.
Walmir Ayala

Confiança e amor

“Não ir embora: ato de confiança e amor, comumente decifrado pelas crianças.”
Markus Suzak, in A Menina que roubava livros

Viver!

Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas águias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia.
Ahasverus. — Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o último; posso morrer. Morrer! Deliciosa idéia! Séculos de séculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova, terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me. Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também, águias divinas? Prometeu. — Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.
Ahasverus. — Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus grandes olhos alguma cousa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; não és homem...
Prometeu. — Não.
Ahasverus. — Raça divina? Prometeu. — Tu o disseste.
Ahasverus. — Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da vida.
Prometeu. — A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor deles é que voltará à terra para reger as coisas. Os tempos serão retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...
Ahasverus. — Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.
Prometeu. — Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias? Ahasverus. — A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio da existência.
Prometeu. — Milheiros de anos? Ahasverus. — Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.
Prometeu. — Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das cousas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.
Ahasverus. — Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.
Prometeu. — Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...
Ahasverus. — Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos? Prometeu. — Mas não padeceste, creio; é alguma cousa não padecer nada.
Ahasverus. — Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada.
Prometeu. — Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos inúmeros o efeito da cólera divina? Ahasverus. — Tu? Prometeu. — Prometeu é o meu nome.
Ahasverus. — Tu Prometeu? Prometeu. — E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.
Ahasverus. — Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.
Prometeu. — Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão elas...
Ahasverus. — O tempo que tudo rói não as quis então? Prometeu. — Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissários do céu vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...
Ahasverus. — Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da imaginação antiga? Prometeu. — Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.
Ahasverus. — Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens? Prometeu. — Foi o meu crime.
Ahasverus. — Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa, foste a causa original de tudo.
Prometeu. — A morte próxima obscurece-te a razão.
Ahasverus. — Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão: és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas lágrimas.
Prometeu. — Chorei-as pela tua raça.
Ahasverus. — Ela chorou muito mais por tua culpa.
Prometeu. — Ouve, último homem, último ingrato! Ahasverus. — Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora? Prometeu. — Hércules.
Ahasverus. — Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais ser novamente agrilhoado.
Prometeu. — Deliras.
Ahasverus. — O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.
Prometeu. — Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo rejeitá-lo.
Ahasverus. — És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora as pernas...
Prometeu. — Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim; mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro, anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.
Ahasverus. — Deliras tu? Prometeu. — A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia. Anda, acaba.
Ahasverus. — A glória não paga nada, e extingue-se.
Prometeu. — Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não escutes nada; não podes entender-me.
Ahasverus. — Fala, fala.
Prometeu. — O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu serás o elo entre ambos.
Ahasverus. — Dize tudo.
Prometeu. — Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre família, lúcida e poderosa, será perfeita comunhão do divino com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo é preciso, e esse elo és tu.
Ahasverus. — Eu? Prometeu. — Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.
Ahasverus. — Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu? Prometeu. — Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens. Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão-somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.
Ahasverus. — Visão luminosa! Eu mesmo? Prometeu. — Tu mesmo.
Ahasverus. — Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? Não, tu mofas de mim.
Prometeu. — Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás tranqüilo. Vai.
Ahasverus. — Saudarei outra vez o sol? Prometeu. — Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.
Ahasverus. — Não posso.
Prometeu. — Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza, enérgico ou sutil, cintilante ou puro.
Ahasverus. — Jura que me não mentes.
Prometeu. — Verás se minto.
Ahasverus. — Fala, fala mais, conta-me tudo.
Prometeu. — A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer, lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma túnica incorruptível.
Ahasverus. — Verei ainda este imenso céu azul! Prometeu. — Olha como é belo.
Ahasverus. — Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites amigas...
Prometeu. — Auroras sobre auroras.
Ahasverus. — Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias...
Prometeu. — Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vás ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e não passarás a ela." Tu passarás a ela, Ahasverus; tu habitarás Jericó.
Ahasverus. — Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste? Prometeu. — Rei eleito de uma raça eleita.
Ahasverus. — Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias aproximam-se.) Uma águia. — Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida.
A outra. — Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.
Machado de Assis, in Várias histórias