domingo, 31 de agosto de 2014

Livre

Ser intransigente e perseverante.
Não abafar a alma, não sufocar a vida, não esconder Deus, não cultivar o ressentimento ou elaborar a falsidade, não estrangular a poesia, a sinceridade, a grandeza. Fugir do medo e da superstição. Teimar. Deixar o sentimento ir tão longe quanto possível.
Apenas num clima assim livre, crítico e intransigente é que posso admitir que brote a religião.
Lúcio Cardoso, in Diários

Humildade

Que a voz do poeta nunca se levante
para ter ressonâncias nas alturas.
Que o canto, das contidas amarguras,
somente seja a gota transbordante.
Que ele, através das solidões escuras
do ser, deslize no preciso instante.
Saia da avena do pastor errante,
sem aplausos buscar de outras criaturas.
 

Que o canto simples, natural, rebente,
água da fonte límpida, do fundo
da alma, de amor e de humildade cheio.

Que o canto glorificará somente
a origem, quando mais ninguém no mundo
saiba ele de quem foi ou de onde veio.
Mauro Mota

SILVA - Okinawa (ao vivo) feat. Fernanda Takai



“Já deu a hora
Não me conformo
O mar não é de calma
A calma é um naufrágio
E é tudo um desencontro.”
............................................

A assembleia dos ratos

Ilustração: Gustave Doré

Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer tal destroço na rataria duma casa velha que os sobreviventes, sem ânimo de sair das tocas, estavam a ponto de morrer de fome.
Tornando-se muito sério o caso, resolveram reunir-se em assembleia para o estudo da questão.  Aguardaram para isso certa noite em que Faro-Fino andava aos mios pelo telhado, fazendo sonetos à lua.
– Acho — disse um deles — que o meio de nos defendermos de Faro-Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxime, o guizo o denuncia e pomo-nos ao fresco a tempo.
Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia.  O projeto foi aprovado com delírio. Só votou contra, um rato casmurro, que pediu a palavra e disse — Está tudo muito direito.  Mas quem vai amarrar o guizo no pescoço de Faro-Fino?
Silêncio geral.  Um desculpou-se por não saber dar nó.  Outro, porque não era tolo.  Todos, porque não tinham coragem. E a assembleia dissolveu-se no meio de geral consternação.
Moral da estória: falar é fácil; fazer é que são elas.
Monteiro Lobato, in Fábulas

Ulisses e as sereias

Ulisses e as sereias (1908), de Herbert James Draper 

Nessa pintura, temos a representação de um episódio do poema grego Odisseia, que conta a guerra de Troia. Depois de lutar contra os troianos, Ulisses e seus guerreiros voltam para casa. Mas, nessa viagem, eles têm de enfrentar obstáculos incríveis. Um deles é o assédio das sereias, que seduzem os homens com seu canto, atraindo-os para a morte no fundo do mar.

sábado, 30 de agosto de 2014

Paradoxo doloroso

"Um dos paradoxos dolorosos do nosso tempo reside no fato de serem os estúpidos os que têm a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões."
Bertrand Russell

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio.

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.
António Ramos Rosa

Uma selfie com o velho marinheiro


Toninho Veludo entrou no bar do Carneiro mais saltitante e exibido que nunca – e ele sempre estava saltitante e exibido, era sua condição natural. Mostrou a todos a câmara digital nova que acabara de comprar, das mais modernas. Do nada, sem pedir licença, puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, entre o Velho Marinheiro e Ananias. Colocou um braço sobre o ombro do nosso Lobo do Mar. E disparou:
- Vou fazer uma selfie com o senhor. Adoro o senhor. Depois, faço uma selfie com você Ananias. Por fim, farei uma selfie do nosso grupo…
- Fazer o quê?
- Uma sel-fi-eeee.
- Só não lhe dou uma garrafada na cabeça em respeito ao seu pai, que morre de vergonha de seus maneirismos. Você vai fazer isso com gente de sua laia, vagabundo – retrucou nosso Lobo do Mar.
- Nossa! Que agressividade! O senhor sabe o que é sel-fi-e?
- Não sei nem quero saber. Partindo de você só pode ser bandalheira.
Ananias resolveu intervir, na tentativa de serenar os ânimos do Velho Marinheiro:
- Selfie está na moda, é um autorretrato. As pessoas tiram fotos delas próprias, sozinhas ou acompanhadas, e divulgam pela internet, nas redes sociais. Não tem nada demais.
- Quer dizer que Veludo quer tirar uma fotografia me abraçando e ainda mostrar pra todo mundo? E você acha que não tem nada demais, Ananias? Não me faltava mais nada!
- Todo mundo faz  tentou justificar-se o autorretratista. Em vão.
- Pois fique sabendo de uma coisa, seu Veludo: o que você faz eu nunca fiz, não faço e jamais farei. Não ouse apertar botão algum. Tire um retrato com Ananias, pelo visto ele também gosta dessas coisas. Papo encerrado. Carneiro, mais tarde eu volto, pra pagar a conta.
E lá se foi o Velho Marinheiro, pisando duro, desconjurando o mundo moderno.
Orlando Silveira, in orlandosilveira1956.blogspot.com.br

Intertextualidade: diálogo entre textos

Por meio de suas obras, os artistas estão sempre dialogando com outros de sua época ou de épocas passadas, recuperando certos traços de estilo ou de visão de mundo, para revalorizá-los, criticá-los ou satirizá-los.
Esse processo ocorre também na arte literária, quando um texto dialoga com outros, citando-os ou fazendo referências a eles. A essa relações entre os textos dá-se o nome de intertextualidade.
Observe um exemplo de um exemplo comparando os textos abaixo:

Mulher, Irmã, escuta-me: não ames,
Quando a teus pés um homem terno e curvo
jurar amor; chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
as lágrimas são gotas de mentira
E o juramento manto da perfídia.
Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882)

Teresa, se algum sujeito bancar o
sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredite não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.
Manuel Bandeira (1886-1968)
Douglas Tufano, in Literatura brasileira e portuguesa

Educação

“O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.”
Mário Quintana

Manhã de sol com azulejos

Tudo se veste da cor de teu vestido azul
Tudo — menos a dona do vestido:
meus olhos te passeiam nua
pela grama do campo de golfe.

Uma curva e eis-nos diante de meu coração.

Não, amiga, não temas
meu coração;
é apenas um chapéu surrado
que humildemente estendo
para colher um pouco de tua alegria,
de tua graça distraída,
de teu dia.
Francisco Alvim

Finitos

“Fossemos infinitos, tudo mudaria... Como somos finitos muito permanece.”
Bertolt Brechet

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sonhar

Fotograma da minissérie Capitu, da Globo

"– É pecado sonhar?
– Não, Capitu. Nunca foi.
– Então por que essa divindade nos dá golpes tão fortes de realidade e parte nossos sonhos?
– Divindade não destrói sonhos, Capitu. Somos nós que ficamos esperando, ao invés de fazer acontecer."
Machado de Assis, in Dom Casmurro

Um garoto afetado


O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu tempo livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas completos do repertório popular que nessa altura eram de uso corrente na Colômbia, e os mais belos do Século de Ouro e do romantismo espanhóis, muitos deles aprendidos nos próprios textos do colégio. Estes conhecimentos extemporâneos na minha idade exasperavam os professores, pois cada vez que me faziam na aula qualquer pergunta difícil, respondia-lhes com uma citação literária ou com alguma ideia livresca que eles não estavam em condições de avaliar. O padre Mejia disse: ‘É um garoto afetado’, para não dizer insuportável. Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns trechos de boa prosa clássica ficavam-me gravados em três ou quatro releituras. Ganhei do padre prefeito a primeira caneta de tinta permanente que tive porque lhe recitei sem erros as cinquenta e sete décimas de A vertigem, de Gaspar Núnez de Arce.
Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever as minhas tolices, era solista no coro, desenhava caricaturas cômicas, recitava poemas nas sessões solenes e tantas coisas mais fora de horas e de lugar que ninguém entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples: não estudava.
No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo por que razão os professores se interessavam tanto por mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas cartas para o manter vivo e outras mas devolvia corrigidas e às vezes com os parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso das palavras. Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista. Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas sem razão.
Gabriel García Marquez, in Viver para Contá-la

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Clarice Lispector: sempre atual

“Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança. E isso porque o povo já tem dado mostras de ter maior maturidade política do que a grande maioria dos políticos, e é quem um dia terminará liderando os líderes. Daqui a vinte e cinco anos o povo terá falado muito mais.
Mas se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome. Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para subnutridos. Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome. Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.”
Clarice Lispector, in Crônicas no Jornal do Brasil (1967)

Seja autêntico!

"Não faças o que os outros fazem, porque eles o fazem, nem o que os outros não fazem porque eles não fazem."
Fernando Pessoa

domingo, 24 de agosto de 2014

O grande drama do prazer

“Volta-se o rico para os prazeres da carne e a maior parte do mundo faz o mesmo. E não sem acerto, porque todas as coisas agradáveis devem ser tidas como inocentes, e até que se provem culpadas todas as presunções pendem a seu favor. A vida já é bastante penosa para que ainda a agravemos com proibições e obstáculos aos seus deleites; tão arisca se mostra a felicidade que todas as portas por onde ela queira entrar devem permanecer escancaradas. A carne enfraquece muito precocemente - e os olhos olham com melancolia para os prazeres de outrora. Muito rapidamente todas as alegrias perdem a vivacidade - e admiramo-nos de como pudessem ter-nos interessado tanto. O próprio amor torna-se grotesco logo que atinge os seus fins. Guardemos o ascetismo para a estação própria - a velhice.
É este o grande drama do prazer; todas as coisas agradáveis acabam por amargar; todas as flores murcham quando as colhemos, e o amor morre tanto mais depressa quanto é mais retribuído. Por isso o passado parece-nos sempre melhor que o presente; esquecemos os espinhos das rosas colhidas; saltamos por cima dos insultos e injúrias e demoramo-nos sobre as vitórias. O presente parece muito mesquinho diante de um passado do qual só retemos na memória o bom, e diante de um futuro que ainda é sonho. O que alcançamos nunca nos contenta; ‘olhamos para diante e para trás em procura do que não está ali’; não somos bastante sábios para amar o presente do mesmo modo que o amaremos quando se tornar passado. Quando mergulhamos num prazer, o nosso olhar vai para longe - a felicidade ainda não está alcançada apesar de termos o deleite nos nossos braços. Que mau demônio nos afeiçoou assim?”
Will Durant, in Filosofia da Vida

Cultura

"Cultura é o sistema de ideias vivas que cada época possui. Melhor: o sistema de ideias das quais o tempo vive."
José Ortega y Gasset

sábado, 23 de agosto de 2014

Soneto de Contrição

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma…

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.
Vinicius de Moraes

O homem e as coisas

“Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de ideias e de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra.”
Machado de Assis, in Quincas Borba

O trágico dilema

“Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.”
Mário Quintana, in Caderno H

Estremecimento

"O que procuramos na literatura é um estremecimento na espinha dorsal."
Vladimir Nabokov

A dura verdade

"O obséquio produz amigos; a verdade, ódio."
Terêncio

Fome do corpo; fome do espírito

“Dia entre pescadores. Eles a pescarem sardinha para a fome orgânica do corpo, e eu a pescar imagens para uma necessidade igual do espírito. Tisnados de saúde, os homens olham-me; e eu, amarelo de doença, olho-os também. Certamente que se julgam mais justificados do que eu, e que o mundo inteiro lhes dá razão. Mas da mesma maneira que eles, sem que ninguém lhes peça sardinha, se metem às ondas, também eu, sem que ninguém me peça poesia, me lanço a este mar da criação. Há uma coisa que nenhuma ideologia pode tirar aos artistas verdadeiros: é a sua consciência de que são tão fundamentais à vida como o pão. Podem acusá-los de servirem esta ou aquela classe. Pura calúnia. É o mesmo que dizer que uma flor serve a princesa que a cheira. O mundo não pode viver sem flores, e por isso elas nascem e desabrocham. Se olhos menos avisados passam por elas e as não podem ver, a traição não é delas, mas dos olhos, ou de quem os mantém cegos e incultos.”
Miguel Torga, in Diário (1943)

Tempo que foge!

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim-de-semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembleias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de “confrontação”, onde “tiramos fatos à limpo”. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.
Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada: – Gosto, e ponto final! Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: “As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos”. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos.
Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a “última hora”; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus. Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim 
(Sobre a polêmica da autoria desse texto, acesse aqui)

A bailarina gris

A aula de dança, de Edgar Degas

PENDIDA
como de uma corola o tempo de
uma flor, ela treme:
seu rosto de vinho e maçã
flui no nostálgico acento
com que ao vento se curva, uma tênue
figura.
De chuva
é a leveza de seu olhar parado, de espuma
é seu sapato, e seu pé
informado e prudente arma um pássaro triste na sombra.

PENDIDA,
debruçada de si como uma lágrima
a bailarina rompe
o segredo: do outro lado é que se esvai
a rosa, seu sangue
é este espanto de que se forma o corpo
do silêncio.
Walmir Ayala

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Vexame de pensar

“Uma seita ou um partido político é apenas um eufemismo elegante para poupar um homem do vexame de pensar.”
Ralph Waldo Emerson

O velho

Da cidade, correndo à superfície do rio, chagavam os sons graves de um sino de bronze, oferecido ao mosteiro por um amador de carrilhões de igreja.
O cocheiro, que estava muito próximo de Nekliudov, e todos os carroceiros, foram tirando os bonés, cada um por sua vez, e persignaram-se. Um velhote de estatura baixa, andrajoso, em que Nekliudov não reparara, em princípio, por estar mais perto da borda que os outros, foi o único que não se persignou, mas, levantando a cabeça. Olhou para ele. Estava vestido com uma longa peliça, de calças de pano e de sapatos cambados e remendados. Trazia um saco pendurado nas costas e na cabeça um boné alto de pele muito surrado.
- Então tu, velho, não te benzes? – perguntou o cocheiro de Nekliudov, depois de ter posto novamente o boné. – És capaz de nem ser batizado?
- Benzer-me? Em nome de quem? – replicou o velho com um ar decidido e provocante, salientando cada uma das sílabas.
- De quem? De Deus, com certeza! – respondeu o cocheiro, ironicamente.
- Pois bem, mostra-mo então! Onde está o teu Deus?
Havia na expressão do velho algo de tão grave e tão duro que o cocheiro, sentindo que estava em presença de uma natureza forte, ficou um pouco desconcertado. Todavia, dissimulou a sua perturbação e, esforçando-se por ter a última palavra, para não se sentir diminuído perante os outros, respondeu com vivacidade.
- Onde? Toda a gente sabe: no céu!
- Já foste lá?
- Tenha lá ido ou não, toda gente sabe que é preciso rezar a Deus.
- Nunca ninguém viu Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o deu a conhecer – continuou o velho com a mesma vivacidade, franzindo o sobrolho.
- Já estou a ver que tu és um pagão, um descrente. Adoras o vazio – disse o cocheiro estalando o chicote na cintura e ajustando os arreios do cavalo.
Ouviu-se uma risada.
- E qual é a tua religião, avô? – perguntou um homem de certa idade que estava próximo da carroça, na extremidade da barcaça.
- Não tenho religião porque não creio em ninguém, a não ser em mim próprio -assim respondeu com rapidez e firmeza.
- Mas como é que se pode crer em si próprio? – perguntou Nekliudov, por sua vez. – Podemos nos enganar.
- Nunca! – replicou o velho, com um movimento de cabeça.
- Então, porque é que existem tantas religiões diversas?
- Elas são diversas porque os homens creem nos outros e não em si próprios. Também eu tive fé nos homens e errei na taiga. Perdi-me de tal forma que já não esperava sair de lá. E os velhos crentes, e os novos crentes, e os Subootniki, e os Klysty, e os Poptsy, e os Bezpotovtsy, e os Austriacki, e os Molokanes, e os Skoptsy, todos exaltam a sua religião como se fossem a única. E todos se dispersaram como uma matilha de cachorros cegos. Inúmeras são as crenças, mas o Espírito é apenas um. Ele está em mim, em ti, em nós. Portanto, que cada um creia no seu próprio espírito e então estaremos todos unidos! Que cada um volte a ser ele próprio e todos estarão com ele.
O velho falava muito alto e olhava sem cessar em seu redor como que para ter o maior número de ouvintes possível.
- Há muito que tem essa fé? – perguntou Nekliudov.
- Eu? Há muito. Já vão fazer vinte e três anos que eles me perseguem.
- Como! Perseguem-te?
- Sim, tal como perseguiram Cristo, perseguem-me a mim. Perndem-me e levam-me perante os tribunais e perante os popes – os escribas e os feriseus. Encerraram-me numa casa de doidos. Mas nada podem contra mim, porque eu sou livre. ‘Como é que te chamam?’, perguntam eles. Imaginam que eu voudizer-lhes um título qualquer. Abjurei tudo: nome, domicílio, pátria. Nada tenho. Tornei-me eu próprio.  Como é que me chamo? Um homem! – ‘E que idade tens?’ – ‘Não contei.’ É o que lhes respondo. E, aliás, não se pode contar, visto que sempre existi e sempre existirei. – ‘E quem são o teu pai e a tua mãe?’, perguntam eles. ‘Não tenho pai nem mãe, a não ser Deus e a Terra. O primeiro é meu pai, a outra é minha mãe.’ – ‘E o czar, reconhece-o?’  -‘Porque não o hei de reconhece-lo? Ele é o seu czar e eu sou o meu czar.’ – ‘Oh! É impossível discutir contigo!’ – ‘Não te peço que discutas comigo’, respondo eu. E é assim que eles me atormentam.
- E para onde é que vai agora? – perguntou Nekliudov.
- Para onde Deus me conduzir. Trabalho e, quando não há trabalho, mendigo – acrescentou o velho, passeando sobre os seus ouvintes um olhar triunfante. A barcaça aproximava-se da margem.
Acostou. Nekliudov puxou pelo porta-moedas e ofereceu dinheiro ao velho, que recusou.
- Não aceito dinheiro. Só aceito pão.
- Então, adeus e desculpe-me!
- Nada há a perdoar. Não me ofendeste. Aliás, não é possível ofenderem-me – disse o velho voltando a por o saco às costas.
Entretanto haviam feito sair a tróica e atrelaram-na.
- Porque se ralou a falar-lhe? – perguntou o cocheiro a Nekliudov, quando este, depois de ter dado uma gorjeta aos robustos barqueiros, subiu para o carro. – Um vagabundo! Um homem sem préstimo!
Leon Tolstoi, in Ressurreição

Destino

Fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente.”
Guimarães Rosa

Viver o escrito

"Os homens só podem compreender um livro profundo, depois de terem vivido pelo menos, uma parte daquilo que ele contém."
Ezra Pound

O passado

"O passado é sempre uma terra inventada."
Orhan Pamuk

domingo, 17 de agosto de 2014

A dança

Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas escuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascender da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

se não assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que a tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
Pablo Neruda

Nada sobrou

“As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas... Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou.  Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada”.
Mário Quintana, in Caderno H

Uma didática da invenção - IX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta
que o rio faz por trás de sua casa se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros

sábado, 16 de agosto de 2014

O tempo

"O meu passatempo favorito é deixar passar o tempo, ter tempo, aproveitar o meu tempo, perder o tempo, viver a contratempo."
Françoise Sagan

Vivo

"Um dia, descerrando as pálpebras, e chorando, pensei: 'vivo'. Então começou a angústia, este sopro de animal estranho."
Alfonso Reyes

Risadas descomunais

“Escutando as risadas descomunais de alguns companheiros de trabalho, que se divertem enchendo a noite de urros, pergunto a mim mesmo o que é o riso. Bergson definiu-o num pequeno livro magistral. E eu, sem pretender entrar na sua metafísica, acho apenas que é a explosão de um ser recôndito e monstruoso, uma pura vitória do ‘outro’ que irracionalmente nos habita. Não somos nós, não é a consciência que dita aquele ruído – ao contrário, esquecemos tudo, entregamo-nos a uma noite inesperada e violenta, transmitindo através desse cascatear absurdo, a voz de alguém que ordinariamente o espírito domina.”
Lúcio Cardoso, in Diários

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Linguagem: elemento vivo

"Os escritores mais verdadeiros são aqueles que veem a linguagem não como um processo linguístico, mas como um elemento vivo."
Derek Walcott

A piedade às vezes engana-se

“É que não foram tão poucas como isso as vezes que vi a piedade enganar-se. Nós, que governamos os homens, aprendemos a sondar-lhes os corações, para só ao objeto digno de estima dispensarmos a nossa solicitude. Mais não faço do que negar essa piedade às feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como também a nego aos moribundos, e além disso aos mortos. E sei bem porquê.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas úlceras. Até chegava a apalavrar curandeiros e a comprar bálsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longínqua unguentos derivados do ouro, que têm a virtude de voltar a compor a pele ao cimo da carne. Procedi assim até descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportável fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com bosta aquelas pústulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e gabavam-se das esmolas recebidas.
Aquele que mais ganhara comparava-se a si próprio ao sumo sacerdote que expõe o ídolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilência e pelas proporções. Chegavam a empregar os cotos para conquistar um lugar no mundo. Daí também o aceitarem os cuidados como uma homenagem e oferecerem os membros a abluções bajuladoras. Mas, apenas o mal os deixava, descobriam-se sem importância. Já nada alimentavam que fossem deles próprios, davam-se por inúteis. O único remédio era ressuscitar de novo essa úlcera que vivia à custa deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal, gloriosos e vãos, pegavam na escudela, e tornavam a empreender o caminho das caravanas. Voltavam a espoliar os viajantes em nome dos seus sórdidos deuses.”
 Antoine de Saint-Exupéry, in Cidadela

Fanart de Peter Quill


Peter Quill, o Senhor das Estrelas. Uma fanart de meu filho Pablo Einstein Batista para o filme Guardiões da Galáxia, em Photoshop+Wacom.

Haicai

De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de mamão.
Dalton Trevisan, in Dinorá: novos mistérios

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Nada, em absoluto, vale nada

“Aqui tenho à mesa de cabeceira o último livro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não há dúvida nenhuma que o concebi, que o realizei, e que, depois disso, com os magros vinténs que vou ganhando por estes montes, consegui pô-lo em letra redonda — a forma material máxima que se pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta realidade que eu tirei do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mesmo desânimo com que olho uma teia de aranha. E não é por saber de antemão que o livro vai ser abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei natural que aconselha a que não haja homem sem homem, é preciso que a santa cegueira do artista lhe dê a força bastante para, em última análise, ficar só e confiante. Ora eu tenho, como artista, essa cegueira. O meu desalento vem duma voz negativa que me acompanha desde o berço e que nas piores horas diz isto: Nada, em absoluto, vale nada.”
Miguel Torga, in Diário (1936)

A linguagem

“A linguagem disfarça o pensamento. E principalmente de tal forma que, segundo a forma exterior da roupagem, não é possível concluir sobre a forma do pensamento disfarçado; porque a forma exterior da roupagem visa a algo bem diferente do que permite reconhecer a forma do corpo. Os arranjos tácitos para a compreensão da linguagem quotidiana são de uma enorme complicação.”
Ludwig Wittgenstein, in Tratado Lógico-Filosófico

O amor?

"O que é o amor? - um conto simples, dito de muitas maneiras."
Émile Zola

Palavras

"Descobri que servia era pra aquilo: ter orgasmo com as palavras."
Manoel de Barros

A fraude primitiva e a particular

“Tão mais opressiva que a convicção implacável do nosso presente estado pecaminoso é a mais frágil convicção da antiga, eterna justificação da nossa existência temporal. Só a capacidade de suportar desta segunda convicção, que na sua pureza abrange completamente a primeira, é a medida da fé.
Muitos consideram que, ao lado da grande fraude primitiva, existe em cada caso particular uma pequena fraude especial, encenada em proveito próprio, do mesmo modo como, por exemplo, numa intriga amorosa, representada no palco, a atriz, além do falso sorriso para o seu amante, tem ainda outro, particularmente pérfido, dirigido a um espectador determinado na última fileira da galeria. Isso significa ir longe demais.”
Franz Kafka

Alguém imprevisto


“O trajeto era interminável. Teria deixado escapar uma volta na estrada ou a próxima morada seria aquilo mesmo: um caixão que conduzíamos pelas trevas sem espaço, contanto e recontando os eventos incontroláveis que nos levaram a transformarmo-nos em alguém imprevisto. E tão depressa! Tão rapidamente! Tudo fica para trás, a começar por quem somos, e a certa altura indefinível acabamos por compreender parcialmente que o implacável antagonista somos nós mesmos.
Philip Roth, in Teatro de Sabbath

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Chama

Não chama, só arde,
É muda, plantada,
Em chamas, calada,
Nunca muda nada,
Até que seja tarde.
Atanágoras Sena

As Perseidas 2014: chuva de meteoros ganha Doodle do Google em vídeo



A chuva de meteoros Perseidas acontece anualmente entre julho e agosto e é tema do Doodle do Google desta segunda-feira (11). O fenômeno ganhou um time lapse no You Tube, mostrando detalhes animados no céu. Ao final do vídeo, o Doodle mostra uma constelação que forma a palavra Google. É possível ainda compartilhar a bela experiência espacial nas redes sociais.
O que é a Perseida?
A Chuva de Meteoros Perseida já foi ilustrada em um doodle estático em 12 de agosto de 2009. No Doodle desta segunda-feira (11), disponível também no YouTube, uma música composta por Niko Leiva, inspirada nas montanhas da Bolívia, aumentam o estado de espírito contemplativo. Vale conferir o resultado.
Observada ao longo dos últimos dois mil anos, as Perseidas - ou Perséiades, como também são chamadas -  são formadas por um rastro de fragmentos expelidos pelo cometa Swift-Tuttle e que se estendem ao longo de sua órbita, ficando mais visíveis quando sua trajetória está mais próxima do Sol.

Foto do pico da chuva de meteoros Perseidas em 2012, tirada na cidade de Weikersheim, Alemanha (Foto: Reprodução/NASA) (Foto: Foto do pico da chuva de meteoros Perseidas em 2012, tirada na cidade de Weikersheim, Alemanha (Foto: Reprodução/NASA))
Foto do pico da Perseidas em 2012, tirada na cidade de Weikersheim, Alemanha (Foto: Reprodução/NASA)
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O Tempo

“O tempo é o melhor antologista, ou o único, talvez.”
Jorge Luis Borges 

Castello Branco - Crer-Sendo*



Preciso amar de menos
De menos a mim e mais atento

Preciso amar atento
Atendo pra não ceder por dentro

Por dentro que está
Por dentro que palpita aqui por dentro
Amar jamais será demais
E equilibrar

Não há
Não há
Não há porque viver
Se não pra crer e ser crescendo sendo
Não há
Não há
Não há porque amar
Se não pra semear conhecimento

Preciso amar sabendo
Sabendo que as vezes só eu só e só
Preciso amar eu só
Que é só que só me encontro dentro

Por dentro que está
Por dentro que walkie talkie por dentro
Amar
E equilibrar.

*Música do primeiro álbum do Castello Branco, chamado Serviço, que está para download GRATUITO no próprio site do Castello: www.castellobranco.nu.

Me belisque

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:
- Eu posso não estar aqui.
O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:
- Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.
- Então você está aqui disse o dr. Abreu.
- Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.
- O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.
- Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.
- Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.
- O senhor acha?
- Acho. Deite-se, por favor.
- Aqui, no divã?
- Por favor.
O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.
- Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?
- Como, teste?
- Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.
- Me belisque.
- Como?
- É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.
- Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.
- Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.
- Não posso.
- Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.
- Desculpe.
- Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?
- Não, eu.
- A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?
- Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.
- Então me belisque, para provar.
- Não.
- Me belisque!
- Não posso.
- Me belisque!
Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.
Luis Fernando Veríssimo