sábado, 31 de maio de 2014

Tal a literatura, somos seres singulares

"E a literatura conta histórias porque os sentimentos precisam de uma história para que você se dê conta deles. Então, a literatura pensou em dar conta de quem somos, dessa nossa complexidade extraordinária. Porque somos seres fundamentalmente singulares. E, por isso, a literatura é singular."
Nélida Piñon

Gostosuras brasileiras

Tapioca com recheio

Feijoada

Pastel

Mini cuscuz paulista

Quindin

Acarajé

Brigadeiro

Escondidinho de carne de sol

Biscoito de polvilho

Fonte: brazilwonders.tumblr.com

Arrependido

"Se um homem está verdadeiramente arrependido, se conhece verdadeira e profundamente as suas culpas, nunca ninguém dirá dele tanto mal, que ele se não julgue por muito pior."
Padre Antônio Vieira

Por quem os sinos dobram

“Toda morte não me diminui, porque eu sou uma parcela da humanidade; não me perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”
John Donne

Aula de inglês

—  Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um elefante; mesmo que morra em consequência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza o grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convincentemente:
—  No, it's not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente perguntou:
—  Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro a primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras — sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos:
—  No, it's not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita — mas só por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas.
—  Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca... Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
—  No, it's not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; não sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma palavra decisiva.
—  Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray.  Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de 13 centímetros de comprimento.
As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas — duas ou três — na parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi:
—  Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por onda de alegria; os olhos brilhavam — vitória! vitória! — e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta.  Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada:
—  Very well!  Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
-  It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado.
Rubem Braga, in Um pé de milho

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Os óculos sociais

“A nossa percepção é toldada pelos óculos sociais que a cultura e a sociedade vão preparando para nós.”
Adam Schaff

O que faz durar uma obra

Se Nietzsche, Proust, Baudelaire e Rimbaud sobrevivem às flutuações da moda, devem isso à gratuidade de sua crueldade, à sua cirurgia demoníaca, à generosidade de seu fel. O que faz durar uma obra, o que a impede de envelhecer é sua ferocidade. Afirmação gratuita? Considere o prestígio do Evangelho, livro agressivo, livro venenoso entre todos.
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

Cinco provas da evolução das espécies

Este é um assunto dos mais controversos: a origem das espécies, desde as bactérias mais simples até os orgulhosos seres humanos. A razão básica da confusão é que algumas pessoas querem fazer crer que existe um conflito intrínseco entre a teoria da evolução pela seleção natural e as religiões. É mentira.

Fósseis do gênero Homo de 1,8 milhão de anos encontrados na Ásia: nossos parentes evolutivos.
Fósseis do gênero Homo de 1,8 milhão de anos encontrados na Ásia: nossos parentes evolutivos.
A ciência, aliás, não é inimiga da religião. As duas são naturalmente complementares, e existe beleza no equilíbrio — admirá-las igualmente pelo que são, tentativas de contextualizar a existência humana respectivamente nos níveis natural e espiritual.
Uma diferença importante entre elas é que a ciência, por sua própria natureza, se propõe a estabelecer (tanto quanto possível) fatos objetivos. Já a religião fala de “verdades” pessoais. Por isso cada um de nós pode ter suas próprias crenças, mas temos todos em comum uma única ciência. E também é por isso que neste texto, daqui em diante, vamos discutir apenas ciência. Começando do rasinho. Como se produz o conhecimento científico?
A coisa funciona do seguinte modo: primeiro deparamos com um fenômeno que desejamos compreender. Pode ser qualquer coisa. Um exemplo simples: como acontece a chuva? Diante do enigma, parte-se para formular uma hipótese. Podemos, por exemplo, imaginar que a chuva está ligada à temperatura da água. Se aquecida, ela vira vapor e sobe. Se resfriada, ela cai de volta no chão. Certo, temos nossa hipótese. E agora? A ciência dita que precisamos colocar essa ideia à prova. Testá-la com experimentos e observações.
Podemos esquentar a água com fogo e notar que, a partir de um determinado momento, ela começa a subir para o ar, na forma de fumaça. E se aprisionarmos esse vapor ascendente num recipiente notaremos que, ao entrar em contato com a superfície mais fria, ele volta a virar líquido. E percebemos que isso acontece também no mundo lá fora, embora em ritmo bem mais lento. Uma poça d’água desaparece sob a ação da luz do Sol e volta a se formar quando água cai do céu em forma de chuva. Grosso modo, a confirmação de nossa hipótese a converte em teoria. Ela não é mais só um exercício racional de adivinhação. Ela é uma explicação concreta que nos permite compreender e até mesmo prever fenômenos.
Essa nossa teoria simples da chuva explica toda a história? Claro que não. Sobre ela outros cientistas teriam de formular outras hipóteses, que explicam como a água pode evaporar mesmo que a poça inteira nunca atinja a temperatura necessária, ou como a água se aglutina em nuvens e o que acontece na atmosfera para fazê-la se liquefazer e, enfim, chover de volta ao chão. Essas hipóteses serão postas à prova e gerarão novas teorias, que tornarão nossa compreensão do fenômeno ainda mais refinada. Mas note que novas teorias não substituem as antigas. Elas aprofundam o entendimento, sem anular as conclusões obtidas antes.
É a tal história do Isaac Newton, que ao formular as bases da física moderna se disse “sobre os ombros de gigantes”. Ele construiu sua obra sobre alicerces sólidos. A ciência é um muro de tijolos. Novos tijolos são constantemente colocados no muro. Mas os antigos raras vezes são substituídos. No mais das vezes, eles continuam formando a parede, que fica cada vez mais alta, permitindo que enxerguemos cada vez mais longe.
Por isso é de uma desonestidade intelectual profunda acusar a evolução pela seleção natural de ser “apenas uma teoria”. Em ciência, uma teoria é o máximo que uma ideia pode chegar a ser. E ela atinge esse ponto só depois que foi corroborada por observações e experimentos. Só depois que ela se mostra a melhor explicação possível para um certo conjunto de dados.
É nesse contexto que vamos apresentar aqui cinco provas da evolução das espécies. Os mais atentos talvez queiram criticar meu uso da expressão “provas”, lembrando o filósofo da ciência Karl Popper, que sugere que observações só podem refutar teorias, mas nunca prová-las. Concordo com Popper. Mas uso aqui o termo “provas” no sentido jurídico. Imagine que estamos num tribunal, que julgará a veracidade da teoria da evolução. O Mensageiro Sideral se apresenta como promotor, apontando provas circunstanciais conclusivas. Decerto os opositores apresentarão seus argumentos de defesa nos comentários abaixo. E o juiz do caso? É você, caro leitor. Leia, reflita e julgue os fatos.
Matéria completa aqui.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O Japão

O outono e o príncipe herdeiro
movem um pincel de ar
e avermelham
as árvores
da porta do sol. 

Silêncio e ausência penteiam a grama,
houvera ali um canto anunciador.
O jardim é um leque de ouro
ou cauda
de pássaro esponsal.
Os deuses invisíveis tangem
rebanhos de lã.
O outono
é menos que um murmúrio. 
Walmir Ayala

Nossa insuficiência

“Só há um ponto fixo: é a nossa própria insuficiência. É daí que é preciso partir.”
Franz Kafka

terça-feira, 27 de maio de 2014

Rapadura

Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.
A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia".
Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"
- Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: "Recebi a medida e lhe mando a encomenda".
A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.
Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento de vista - e aí não sabia mais de nada.
O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele".
A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.
O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
O marido infiel levou a mulher para casa - conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.
Rachel de Queiroz, in O Cruzeiro

Risco do erro e da ilusão

“Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais.”
Edgar Morin

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Cangaceiro (1955), de Cândido Portinari

Blog de acvieira :AC VIEIRA - ESCULTURAS, PINTURAS E GRAVURAS., 'Cangaceiro - 1955'

“Vim da terra vermelha e do cafezal.
As almas penadas, os brejos e as matas virgens

Acompanham-me como o espantalho,
Que é o meu autorretrato.
Todas as coisas frágeis e pobres
Se parecem comigo.”
Cândido Portinari

O Sol


“O Sol, com todos aqueles planetas que giram à sua volta e dele dependem, ainda pode amadurecer um cacho de uvas como se nada mais existisse a fazer no universo.”
Galileu Galilei

Dos mundos

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.
Mário Quintana

Janelas da alma

“Você precisa abrir as janelas da alma e deixar entrar a música das coisas.”
José Mauro de Vasconcelos

domingo, 25 de maio de 2014

Nenhuma luz

“No salão de Madame Verdurin, o autor faz tocar Beethoven e um protegido, pintor, antegozando o sarau, chega a dizer: ‘Não será preciso nenhuma luz e ele que toque a Sonata ao Luar no escuro, para melhor se esclarecerem as coisas.'”
Marcel Proust, in Em busca do tempo perdido

A outra vida do Sr. Antonio

Dona Julinha desconfiou quando entrou na sala a tempo de ouvir seu marido, o sr. Antonio, dizer "Tchau, amor" e desligar o telefone.
- Com quem você estava falando, Antonio?
- Ninguém.
- Como é possível falar no telefone com ninguém, Antonio?
O sr. Antonio apenas sorriu.
A mesma coisa aconteceu outras vezes depois disto, até que dona Julinha perdeu a paciência e pediu explicações. Com quem o sr. Antonio falava ao telefone tão carinhosamente - e se despedia tão rapidamente, quando a mulher aparecia? O sr. Antonio hesitou, depois falou.
- Está bem, Julinha. Se você quer mesmo saber... Eu tenho outra mulher. Uma amante. Nos conhecemos há 20 anos.
- O quê?!
E, diante do espanto da mulher, o sr. Antonio completou:
- O nome dela é Sulamita.
Dona Julinha não sabia o que fazer com aquela informação. De repente, uma Sulamita na vida deles! O sr. Antonio tinha outra mulher. Outro lar. Talvez outra família. Outra vida! Logo o sr. Antonio, que um dia declarara "Julinha, eu não sei se gosto mais de você ou dos meus chinelos de camurça". Logo o sr. Antonio, tão caseiro, tão pacato, com uma amante - chamada Sulamita!
Dona Julinha reuniu os filhos para pedir conselhos. O que deveria fazer? Seu primeiro impulso fora o de expulsar o marido de casa. Ele que fosse viver com a outra. Mas os filhos não concordaram. Um divórcio, àquela altura da vida do casal? Seria complicado. E desnecessário. Dona Julinha que aprendesse a viver com a nova realidade. Afinal, o sr. Antonio, apesar de ter uma amante durante 20 anos, escolhera ficar com a mulher. De uma certa maneira, optara pelos chinelos de camurça.
Durante semanas, dona Julinha não dirigiu uma palavra ao marido. Comiam em silêncio. Viam a novela em silêncio. Até que um dia, levada mais pela curiosidade do que por vontade de brigar, dona Julinha perguntou:
- Como vocês se conheceram?
- Quem?
- Você e essa... Como é o nome dela? Sulamita.
- Nos conhecemos no Cairo.
- No Cairo, Egito?
- É.
- E você alguma vez esteve no Cairo, Antonio?
- Tem muita coisa a meu respeito que você não sabe, Julinha.
E, de repente, dona Julinha se deu conta que o marido nunca estivera nem no Cairo nem em qualquer outro lugar longe dos seus chinelos. Não gostava de viajar e nunca saía de casa. Quando se encontraria com a outra se nunca saía de casa? Os telefonemas eram forjados. Ele realmente estava falando com ninguém.
- Você e a Sulamita têm filhos, Antonio?
E o sr. Antonio, distraidamente, respondeu:
- Isso eu ainda não decidi.
Luís Fernando Veríssimo, in www.oestadao.com.br

Me ensina a escrever - Oswaldo Montenegro



Meu amor,
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.

Meu amor,
Me ensina a fazer
Uma canção falando quanto custa
Trancar aqui dentro as palavras
Calando e querendo dizer
Não sei se o poema é bonito
Mas sei que preciso escrever.

Meu amor,
Me ensina a escrever
A folha em branco me assusta
Eu quero inventar dicionários
Palavras que possam tecer
A rede em que você descansa
E os sonhos que você tiver.

sábado, 24 de maio de 2014

azar e sorte

Sorte no jogo
azar no amor
de que me serve
sorte no amor
se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
meu amor?
Paulo Leminski

O mundo só se dá para os mais simples

“Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo e a fome com que nasci pelo leite — esta fome quis se estender pelo mundo e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível sim — mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas fome violenta é exigente e orgulhosa. E quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes eu fingi por orgulho que não doía eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver — e eu pensava que esta sim, é livre. Mas como foi que transformei sem nem sentir a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo: era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insônia sem eu entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme.”
Clarice Lispector, in Crônicas no Jornal do Brasil (1971)

Acerca dos desejos

“A influência dos nossos desejos sobre as nossas crenças é do conhecimento e da observação de todos, mas a natureza dessa influência é, em geral, muito mal interpretada. É costume supor que a massa das nossas crenças provém de alguma base racional e que o desejo é apenas uma força perturbadora ocasional. Exatamente o oposto se aproximaria mais da verdade: a grande massa de crenças pela qual somos amparados na nossa vida diária é apenas projeção do desejo, corrigida aqui e ali, em pontos isolados, pelo rude choque dos fatos.”
Bertrand Russell, in Ensaios Céticos: Sonhos e Fatos

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Oração natural

Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural
de oração.
Donizete Galvão

Trailer DOMINGUINHOS



DOMINGUINHOS é um documentário sobre a vida e a obra de um dos maiores mestres da música brasileira, intercalando imagens de arquivo e passagens em shows, além de encontros musicais exclusivos com artistas marcantes em sua trajetória. O filme propõe uma visão original sobre Dominguinhos, que revela o poder da música de uma maneira natural, espontânea e ao mesmo tempo precisa. O filme conta também com preciosas participações de renomados artistas de nossa música, importantes parceiros da trajetória musical de Dominguinhos, como: Gilberto Gil, Gal Costa, Elba Ramalho, Hermeto Paschoal, João Donato, Djavan, Nara Leão, Nana Caymmi, Luiz Gonzaga, Yamandu Costa e Hamilton de Holanda, entre outros.
O filme tem previsão de lançamento para maio de 2014.

Livro

“Um livro deve ser uma picareta para quebrar os mares congelados da alma.”
Franz Kafka

Os homens são como os rios

“Um dos preceitos mais enraizados e mais geralmente admitidos é o de acreditar que os homens possuem em si qualidades imutáveis: há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou apáticos, e por aí adiante. Ora, os homens não são assim. Podemos, apenas dizer que um homem é mais vezes bom que mau, mais vezes inteligente que estúpido, mais vezes enérgico que apático, ou o contrário; mas classificar um homem, como sempre fazemos, de bom ou inteligente e um outro de mau ou estúpido é um erro. Também os rios, todos de água, são umas vezes mais estreitos, outros rápidos, outros largos ou calmos, transparentes ou frios, caudalosos ou tépidos. Ora, os homens são como os rios. Cada um traz consigo a semente de todas as qualidades humanas, de que revela, em certos passos, umas características, noutros, outras, chegando mesmo, em certas ocasiões, a mostrar-se sob uma forma completamente oposta à sua natureza íntima, que, não obstante, mantém.”
Leon Tolstoi, in Ressurreição

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Um punhado de pó

Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?

Finalmente, foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.
Rumi

Prudência

“A prudência é uma solteirona rica e feia, cortejada pela incapacidade.”
William Blake

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O caminho a si

“Ah, eu o sei agora: nada custa mais ao homem do que seguir o caminho que conduz a si mesmo.”
Maurice Chapelan

Aniversário

Parentes e convidados rompem no parabéns pra você. De pé na cadeira, a aniversariante ergue os bracinhos:
— Pára. Pára. Pára.
Na mesa um feixe luminoso estraga o efeito das cinco velinhas.
— Mãe, apaga o sol.
Dalton Trevisan, in Dinorá: novos mistérios

Tentação

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
Clarice Lispector, in A legião estrangeira

Contradições

... Mas o que eles não sabem levar em conta é que o poeta é uma criatura essencialmente dramática, isto é, contraditória, isto é, verdadeira.
E por isso, é que o bom de escrever teatro é que se pode dizer, como toda a sinceridade, as coisas mais opostas.
Sim, um autor que nunca se contradiz deve estar mentindo.
Mário Quintana, in Caderno H

Amor e ódio

“Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca senti. Mas viver sem amor acho impossível.”
Jorge Luis Borges

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Pagamento de camponeses (1882), de Leon Augustin Lhermitte

Pagar as Colheitadeiras, 1882 por Léon Augustin L'hermitte (1844-1925, France)

No quadro, vemos camponeses recebendo o pagamento após uma árdua jornada de trabalho. Na figura em primeiro plano, o pintor retrata a exaustão do homem provocada pelo enorme força exaurida no trabalho. É a arte realista, que mostra o oposto da arte romântica, que idealizava o trabalho no campo, mostrando camponeses e pastores alegres, bonitos e saudáveis. A intenção de Lhermitte é mostrar a vida sofrida do homem do campo, sem nenhum traço de idealização.

O saber

“Não existe ocupação tão agradável como o saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares. O saber ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e sem vexames.”
Marcus Cícero, in Disputas Tusculanas

Meu pai


“Lembrava-se de ter visto o pai uma vez, alguns dias depois da morte de Omar, sozinho debaixo do gigantesco carvalho. O carvalho era mais alto do que qualquer coisa em Shadbagh, e a coisa viva mais velha da aldeia. O pai disse que não se surpreenderia se a árvore tivesse visto o imperador Babur conduzindo seu exército para tomar Cabul. Contou que havia passado metade da infância à sombra daquela copa maciça ou galgando seus longos galhos. O pai dele, avô de Abdullah, amarrara uma longa corda a um de seus galhos mais grossos e construíra um balanço, uma geringonça que sobrevivera a incontáveis gerações inclementes e até ao próprio velho. O pai disse que costumava se revezar com Parwana e a irmã Masooma naquele balanço, quando todos eram crianças.
Mas, naqueles dias, o pai estava cansado demais do trabalho quando Pari o puxava pela manga e pedia para ser empurrada no balanço.
Talvez amanhã, Pari.
Só um pouquinho, baba. Por favor, levante.
Agora, não. Em outra ocasião.
E ela acabava desistindo, largava a manga dele e saía de perto, resignada. Às vezes, o rosto magro do pai desabava ao ver Pari se afastando. Virava-se na cama, puxava o acolchoado e fechava os olhos cansados.
Abdullah não conseguia imaginar que o pai tivesse brincado alguma vez em um balanço. Não conseguia imaginar que o pai tivesse um dia sido garoto como ele. Um garoto. Despreocupado, com leveza nos pés. Correndo pelo campo aberto com os amigos. O pai cujas mãos eram cheias de cicatrizes, cujo rosto era rabiscado por profundas linhas de exaustão. O pai, que poderia muito bem já ter nascido com uma pá na mão e barro sob as unhas.”
Khaled Hosseini, in O silêncio das montanhas

domingo, 18 de maio de 2014

Desejos contraditórios

“Todos os desejos são contraditórios como o do alimento. Gostaria que aquele que amo me amasse. Mas se ele me for totalmente dedicado, deixa de existir, e eu deixo de o amar. E enquanto não me for totalmente dedicado, não me amará o suficiente. Fome e saciedade.
O desejo é mau e ilusório, mas, no entanto, sem o desejo não esquadrinharíamos o verdadeiro absoluto, o verdadeiro ilimitado. É preciso ter passado por isto. Infelizes os seres a quem o cansaço subtrai esta energia suplementar que é a fonte do desejo.
Infeliz, também, aquele a quem o desejo cega.
É preciso arrastar o desejo até ao eixo dos pólos.”
Simone Weil, in A Gravidade e a Graça

O medo

“Nada nos faz acreditar mais do que o medo, a certeza de estarmos ameaçados. Quando nos sentimos vítimas, todas as nossas ações e crenças são legitimadas, por mais questionáveis que sejam. Os nossos opositores, ou simplesmente os nossos vizinhos, deixam de estar ao nosso nível e transformam-se em inimigos. Deixamos de ser agressores para nos convertermos em defensores. A inveja, a cobiça ou o ressentimento que nos movem ficam santificados, porque pensamos que agimos em defesa própria. O mal, a ameaça, está sempre no outro. O primeiro passo para acreditar apaixonadamente é o medo. O medo de perdermos a nossa identidade, a nossa vida, a nossa condição ou as nossas crenças. O medo é a pólvora e o ódio o rastilho. O dogma, em última instância, é apenas um fósforo aceso.”
Carlos Ruiz Zafón, in O Jogo do Anjo

O Destino


“O destino mistura as cartas e nós jogamos.”
Arthur Schopenhauer

Caso de canário


Casara-se havia duas semanas. Por isso, em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do canário:
- Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele, seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
- Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
- Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom; vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de sua mulher pediram-lhe com doçura:
- Vai, meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto vivo. É, esse está mesmo na última lona, e dói ver a lenta agonia de um ser tão gracioso, que viveu para cantar.
- Primeiro me tragam um vidro de éter, e algodão. Assim ele não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos, no pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro, angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola, para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí, e seu desejo seria não voltar para casa nem para dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
- Ui!
Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva, com uma fome danada?
- Ele estava precisando mesmo era de éter - concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.
Carlos Drummond de Andrade, in Cadeira de balanço

sábado, 17 de maio de 2014

Palavra e sofrimento

“Toda palavra me faz sofrer. No entanto, como seria doce ouvir flores tagarelando sobre a morte!”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

Arte poética

Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as ideias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.

Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam a vida.

Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.

Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
Walmir Ayala