quarta-feira, 30 de abril de 2014

Vida

"Mesmo se devesses viver três vezes mil anos, e mesmo tantas vezes dez mil, lembra-te sempre de que todos só perdem a existência que vivem e que só se vive a que se perde."
Marco Aurélio

Deus é o Incriado 
é o tudo e o nada
 
o presente e o ausente
 
o respirado
 
e o expirado,
 
é a primeira imagem
 
e a última imagem
 
tocando-se num tempo
 
sem tempo; 
 
é anterior 
 
a todas as imagens,
 
é o que não teve espelho
 
é o que não se vestiu
 
e se vestiu de tudo
 
de água de ar de pó,
 
é o que manipulou
 
o pó e a brasa ardendo
 
ciclo perfeito, o anel.

É o brilho, a matéria 
o símbolo do anel
 
é o invisível dedo
 
da aliança, o espírito
 
do vinho, violeta
 
violáceo rá.

Deus é o que há 
sem ter sido, no entanto
 
inacabado sendo
 
o que não evolui,
 
é o santo
 
o címbalo
 
o fumo
 
o absinto
 
o abismo
 
o projeto
 
do amor
 
mais que perfeito.
 
É o último 
 
teto
 
do inimaginável. 
 
É a algema,
 
a asa livre:
 
é a Imagem.
 
 
Apago a luz e penso: 
mais uma vez apago a luz,
 
e respiro para me sentir respirando
 
com cautela e pasmo.

Hoje vi retratos de meus mortos, 
sorriem em praças e paisagens
 
inatuais.

E eu aqui, ainda vivo, 
como? por que? até quando?
 
Cada trilha me inspira
 
a despedida,
 
e eu me vejo ao lado dos mortos
 
e eles não me veem
 
na névoa dos retratos.

Quem me esqueceu neste lado?
Walmir Ayala

Crescer

“Não tema crescer lentamente; tema apenas ficar parado.”
Provérbio chinês

Direito de errar

“Cada um tem direito de errar por conta própria, sem que ninguém lhe transmita os próprios erros.”
José Paulo Paes

segunda-feira, 28 de abril de 2014

O enviado de Deus

Fazia um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma. O meu fusca deslizava dócil e macio no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida. Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de cristal: a da hora marcada no dentista.
Mais eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se aproxima de meu carro, pedindo com voz tímida:
– Moço, o senhor podia me dar uma carona até a cidade?
O que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi tranquilamente:
– Eu não vou até a cidade, meu filho.
Havia no meu tom algo de paternal e compassivo, mas que suficiência na minha voz! Que segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.
Logo uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:
– Por que você mentiu?
Tentei vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto…
– Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja ridículo.
Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu não admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera muito bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a outro, certamente seria atendido. Mas a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de mim, também se recusara, despachando-o com um gesto de enfado. Nem ao menos tinha dado uma desculpa qualquer como eu fizera. Não contaria com ninguém, o pobre diabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele não dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.
E eu no meu carro, de corpo e alma lavada todo catita no meu terninho novo. Comecei a aborrecer o terno novo, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel a voz agora ganhava o eco da própria voz de Deus!
- Não custava nada levá-lo.
Não, Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma simples carona? Pois então eu ficasse sabendo que aquele simplesmente era o teste, o Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus fosse me esperar numa esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para submeter-me à prova definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora apenas para disfarçar – Deus é muito disfarçado. Agora o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente para as profundezas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.
– Não tem dúvida: aquele cara me estragou o dia – resmunguei, aborrecido, acelerando mais o carro a caminho da cidade.
Quando dei por mim, já no Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber por que, de volta em direção ao túnel. Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que apenas me faria perder o dentista – o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde, e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a refazer todo o percurso.
Como explicar-lhe, além do mais, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.
Estava. Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando condução. Detive o carro a seu lado. Gaguejei uma desculpa qualquer, justificando meu regresso, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe oferecia, sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu ter voltado para buscá-lo.
Era mesmo um rapazinho que pedia condução porque não tinha dinheiro para o ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir – o que já é outra história. Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não perdi o dentista e, ainda por cima, Deus houve por bem distinguir-me com um nervo exposto.
Fernando Sabino, in Manchete

O bem e o mal

“O bem e o mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro.”
José Saramago

A bandeira pública e as particulares

“Quem não sabe que aos pés de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?”
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

domingo, 27 de abril de 2014

Saudade

“Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco:  quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.”
Clarice Lispector

Revelando a mágica

Um bom poema é como uma cerveja gelada
quando você esta a fim,
um bom poema é como um misto
quente quando você está
faminto,
um bom poema é uma arma quando
a multidão te cerca,
um bom poema é algo que
te permite atravessar as ruas da
morte,
um bom poema pode fazer a morte derreter como
manteiga quente,
um bom poema pode emoldurar a agonia e
pendurá-la na parede,
um bom poema permite teus pés tocarem
a China,
um bom poema pode fazer uma mente despedaçada
voar,
um bom poema te permite cumprimentar
Mozart,
um bom poema te permite jogar dados
com o diabo
e ganhar,
um bom poema pode fazer quase qualquer coisa,
e o mais importante,
um bom poema sabe quando
terminar.
Charles Bukowski

Querendo ainda mais vida


“Termino essa minha vida exausto de viver, mas querendo ainda mais vida, mais amor, mais travessuras. A você que fica aí inútil, vivendo essa vida insossa: só digo: - Coragem! Mais vale errar se arrebentando do que preparar-se para o nada. O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois seremos matéria cósmica. Apagados minerais. Para sempre mortos.”
Darcy Ribeiro, in Confissões

Números

"As pessoas grandes adoram os números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não perguntam: ‘Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que prefere? Será que ele coleciona borboletas?’ Mas perguntam: ‘Qual é sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?’ Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: ‘Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado...’ elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma ideia da casa. É preciso dizer-lhes: ‘Vi uma casa de seiscentos contos’. Então elas exclamam: ‘Que beleza!"
Antonie de Saint-Exupéry, in O Pequeno Príncipe

Entrevista

Telefonam-me do jornal:
- Fale de amor -
diz o repórter,
como se falasse
do assunto mais banal.
- Do amor? - Me rio
informal. Mas
ele insiste:
- Fale-me de amor -
sem saber, displicente,
que essa palavra
é vendaval.

- Falar de amor? - Pondero:
o que está querendo, afinal?
Quer me expor
no circo da paixão
como treinado animal?

- Fala... - insiste o outro
- Qualquer coisa.
Como se o amor fosse
“qualquer coisa”
pra se embrulhar no jornal.

- Fale bem, fale mal,
uma coisa rapidinha
- ele insiste, como se ignorasse
que as feridas de amor
não se lavam com água e sal.

Ele perguntando
eu resistindo,
porque em matéria de amor
e de entrevista
qualquer palavra mal dita
é fatal.
Affonso Romano de Sant'anna

Permuta de felicidades

“Se houvesse um escritório de permuta para as felicidades que uns invejam aos outros, todos iriam lá trocar a sua.”
Joaquim Nabuco

Repetir o passado

“Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo.”
George Santayana

Por uma sociedade mais justa e fraterna

“Acredito que é possível uma sociedade mais justa e mais fraterna. Não só é possível, como é indispensável que ela venha. E nós temos de lutar por ela seja de que forma for. Agora, cada vez mais eu estou descrente dos esquemas partidários e ideológicos, porque eu sei que eles são redutores.”
José Paulo Paes

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Dependência dos outros

As pessoas vivem toda a sua vida a acreditar no que os outros dizem, dependentes dos outros. É por isso que têm tanto medo da opinião dos outros. Se eles pensam que você é mau, torna-se mau. Se o condenam, começa a condenar-se. Se dizem que é pecador, começa a sentir-se culpado. E, como depende da opinião deles, é obrigado a conformar-se constantemente com as suas opiniões; senão eles mudarão de opinião. Ora isso cria uma escravidão, uma escravidão muito subtil. Se quiser ser considerado bom, digno, belo, inteligente, tem de fazer concessões, tem de se comprometer continuamente com as pessoas de quem depende.
E levanta-se um outro problema. Como há muitas pessoas, elas estão sempre a alimentar a sua mente com diferentes tipos de opiniões — opiniões conflituosas, ainda por cima. Uma opinião a contradizer outra opinião — daí que exista uma grande confusão dentro de si. Uma pessoa diz que você é muito inteligente, outra pessoa diz-lhe que é estúpido. Como decidir? Então fica dividido. Fica com dúvidas sobre si próprio, sobre quem é... uma ondulação. E a complexidade é muito grande, porque há milhares de pessoas à sua volta.
Você está em contato com muitas pessoas e cada uma delas mete a sua ideia na sua mente. E ninguém o conhece — nem você mesmo se conhece —, pelo que toda essa coleção se amontoa dentro de si. É uma situação de enlouquecer. Tem muitas vozes dentro de si. Sempre que se pergunta quem é, surgem muitas respostas.
Algumas dessas respostas serão da sua mãe, outras serão do seu pai, outras ainda do professor, e assim por diante e assim sucessivamente, e é impossível decidir qual delas é a resposta certa. Como decidir? Qual o critério? É aqui que o homem se perde. Chama-se a isto ignorância de si próprio.
Mas como depende dos outros, tem medo de entrar na solidão — porque no momento em que começar a entrar na solidão começará a ter muito medo de se perder. Em primeiro lugar, você não se tem a si próprio, mas, qualquer que seja o eu que criou a partir da opinião dos outros, tem de o deixar para trás. Daí que seja muito assustador interiorizar-se. Quanto mais fundo for, menos saberá quem é. É por isso que quando procura conhecer-se realmente a si próprio, antes de o conseguir terá de abandonar todas as ideias que tem sobre o seu eu. Haverá um hiato, haverá uma espécie de coisa nenhuma. Tornar-se-á uma não-entidade. Sentir-se-á completamente perdido, porque tudo o que conhece deixará de ser relevante e aquilo que é relevante ainda não conhece.
Osho, in Intimidade

Mensagem à Poesia

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.

Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso
reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.
Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem... – que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.

Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência.
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz. Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.
Vinícius de Moraes

Escritor clássico

“Clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos.”
Millôr Fernandes

Tolerância

“Os homens comprazem-se com o brando som dos instrumentos musicais e com o canto dos pássaros; comprazem-se com o espetáculo dos animais a brincar e a divertirem-se, mas ficam aborrecidos se estes rosnam, bramem ou ficam irados. Mas quando veem que as suas próprias vidas são carrancudas, taciturnas, opressas, e perturbadas por paixões intérminas e altamente nocivas, por preocupações e aborrecimentos, não encontram trégua nem alívio para si próprios; como o poderiam? Não apenas isso, mas quando os outros os incitam a encontrá-los, não dão atenção nenhuma ao argumento cuja aceitação os capacitaria a tolerar o presente sem recriminação, a recordar o passado com gratidão e a enfrentar o futuro sem apreensão nem receio, mas com gaia e luminosa esperança.”
Plutarco, in Do Contentamento

quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Sertão, do mesmo ângulo*

 
Foto de 03 de janeiro de 2013

Foto de 19 de abril de 2014

Fotografei do mesmo ângulo, a partir da janela da cozinha de minha sogra, D. Socorro Marinho, em Pau dos Ferros – RN, em épocas diferentes, ou seja, antes e durante o inverno. Reparem nos arvoredos e nas Moitas ressequidos, esquálidos, sem vida. Com as chuvas, viçosas, revigoradas. O pasto já não deixe ver o arame farpado. É o milagre da água, da invernada.

A carta


“Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.”
Mário Quintana, in Caderno H

A literatura e seu disfarce

“Despojar a literatura do seu disfarce, ver seu verdadeiro rosto, é tão perigoso como privar a filosofia de seu jargão. As criações do espírito se reduzem à transfiguração de bagatelas? E só haveria alguma substância, fora do articulado, no ríctus ou na catalepsia?”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

Nomes - 3


Assino Galeano, que é meu sobrenome materno, desde os tempos em que comecei a escrever. Isto aconteceu quando eu tinha dezenove anos, ou talvez apenas alguns dias, porque chamar-me assim foi um modo de nascer de novo.
Antes, quando era garoto e publicava desenhos, assinava Gius, por causa da difícil pronúncia espanhola de meu sobrenome paterno (meu tataravô galês se chamava Hughes, e aos quinze anos fez-se ao mar no porto de Liverpool e chegou ao Caribe, a República Dominicana, e tempos depois ao Rio de Janeiro, e finalmente a Montevidéu. Em Montevidéu atirou ao arroio Miguelete seu anel de maçom, e nos campos de Paysandu cravou as primeiras cercas de arame farpado e fez-se dono de terras e gentes, e morreu há mais de um século, enquanto traduzia Martin Fierro para o inglês.
Ao longo dos anos escutei as mais diferentes versões sobre essa questão de meu sobrenome escolhido. A versão mais boba, que ofende a inteligência, me atribui uma intenção anti-imperialista. A versão mais cômica supõe fins de conspiração ou contrabando. E a versão mais fodida me converte na ovelha vermelha da família: inventa para mim um pai inimigo e oligárquico, no lugar do pai real que tenho, que é um sujeito bacana que sempre ganhou a vida com o trabalho ou com a boa sorte que tem na loteria.
O pintor japonês Hokusai mudou de nome sessenta vezes para celebrar seus sessenta nascimentos. No Uruguai, país formal, teria sido enjaulado como louco ou perverso simulador de identidades.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

Homem da natureza


“Mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstâncias mais favoráveis é preciso conservar algo do caráter original de um Robinson Crusoé ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultivá-la.”
Vincent Van Vogh

O que foste comigo

“Tento recordar teu rosto, nome. Curioso, como às vezes nos escapam os traços da pessoa amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente. De ti resta-me o que foste comigo. E foste – ternura e descoberta do meu corpo, de minhas mãos até então inábeis que ensinaste a acariciar teus cabelos, a sentir teu corpo; e ainda descoberta de que a minha voz tinha um sentido para além de sons mais ou menos indistintos e vagos.”
Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso

terça-feira, 22 de abril de 2014

Oração no Saco de Mangaratiba

Nossa Senhora me dê paciência
Para estes mares para esta vida!
Me dê paciência pra que eu não caia
Pra que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...
Manuel Bandeira

Do amor, um cálculo errado

“Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa.”
Clarice Lispector, in Felicidade Clandestina

Mau romance

Em um mau romance policial, o culpado não está nunca longe: é o próprio autor.”
Robert Sabatier

Trecho de Carta à minha amada, de Ludwig Van Beethoven,



Manhã de 6 de julho
Meu anjo, meu tudo, meu eu... Por que esta profunda tristeza quando é a necessidade quem fala? Pode consistir nosso amor em outra coisa que em sacrifícios, em exigências de tudo e nada? Esqueceu de que você não é inteiramente minha e de que eu não sou inteiramente seu? Oh, Deus!
Contempla a maravilhosa natureza e tranquiliza seu ânimo na certeza do inevitável. O amor exige tudo e com pleno direito: eu para com você e você para comigo. No entanto, duvida tão facilmente que eu tenho que viver para mim e para você. Se estivéssemos completamente unidos, nem você nem eu estaríamos nos sentindo tão desolados. Minha viagem foi horrível...
Alegre-se, você é o meu mais fiel e único tesouro, meu tudo como eu para você. No mais, que aconteça o que tenha que acontecer e deva acontecer; os deuses saberão o que fazer...
Tarde de segunda-feira. Você sofre. Ah! onde estou, também ali está você comigo. Tudo farei para que possamos viver um ao lado do outro. Que vida!!! Assim!!! Sem você... perseguido pela bondade de algumas pessoas, que não quero receber porque não as mereço. Me dói a humildade do homem diante do homem. E quando me acho em sintonia com o Universo, o que sou e quem é aquele a quem chamam o Todo Poderoso? E sem dúvida... aí então aparece de novo o divino do homem. Choro ao pensar que provavelmente não receberá minha primeira carta antes de sábado. Tanto como você me ama, muito mais a amo!... Boa noite! Devo ir dormir. Oh, Deus! Tão perto! Tão longe! Não é nosso amor uma verdadeira morada do céu? E tão sólido como as muralhas do céu?!

Paz na dificuldade

“Meu berço foi embalado pelas Parcas. Só encontro paz na dificuldade.”
Oscar Wilde

Trecho de “There are more things”


(…) Também a porta da casa estava meio aberta. Uma rajada de chuva açoitou meu rosto e entrei.
Dentro haviam tirado as lajotas e pisei num capim desgrenhado. Um cheiro doce e nauseabundo penetrava na casa. À esquerda ou à direita, não sei muito bem, tropecei numa rampa de pedra. Subi apressadamente. Quase sem refletir, fiz girar a chave da luz.
A sala de jantar e a biblioteca de minhas lembranças eram agora, derrubada a parede divisória, num único grande cômodo desguarnecido, com um ou outro móvel. Não tentarei descrevê-las, porque não estou seguro de tê-las visto, apesar de impiedosa luz branca. Vou me explicar. Para ver uma coisa, é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõem o corpo humano, suas articulações e partes; as tesouras, o ato de cortar. Que dizer de uma lâmpada ou veículo? O selvagem não pode perceber Bíblia do missionário; o passageiro não vê o mesmo cordame que os homens de bordo. Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos.
Nenhuma das formas insensatas que aquela noite me deparou correspondia à figura humana ou a algum uso concebível. Senti repulsa e terror. Num dos cantos descobri uma escada vertical, que dava para outro andar. Entre os largos lanços de ferro, que não passariam de dez, havia vãos irregulares. Aquelas escada, que postulava mãos e pés, era compreensível e de algum modo de aliviou. Apaguei a luz e aguardei algum tempo no escuro. Não ouvi o menor som, mas a presença das coisas incompreensíveis perturbava-me. Afinal me decidi.
Jorge Luís Borges, in O livro de areia

domingo, 20 de abril de 2014

O mato



Veio o vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vaga-lumes nem grilos.
Pôs a mão no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na cara as gotas de água como se fosse uma benção. Ali perto mesmo a cidade murmurava, estava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar impacientes de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores, um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um telefone batia, silenciava, batia outra vez, interminável, paciente, melancólico. Alguém, com certeza já sem esperança, insistia em querer falar com alguém.
Por um instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana. Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao dinheiro e aos prazeres. Ainda bem que de todas as cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos mas um camaleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e úmida das árvores, e à pedra escura, com uma pele de musgo e seu misterioso coração mineral.
E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angustia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz.
Rubem Braga

Poesia

“A poesia: procura dos outros, descoberta da outricidade.”
Octavio Paz

O Grande Mestre* - Trailer legendado [HD]



*A história de Ip Man, o mestre de artes marciais que ficou conhecido no Ocidente por ter sido o mestre de Bruce Lee. No fim dos anos 30, no sul da China, ele derrota o grande e respeitado mestre Gong Yutian. A linda Gong Er, filha de Yutian, jura vingar a honra de seu pai e desafia Ip para uma luta. Tudo muda quando a Segunda Guerra Mundial se intensifica e Ma San, o melhor pupilo de Gong Yutian, escolhe o lado inimigo.

sábado, 19 de abril de 2014

Livre!

"Ser livre e agir é o mesmo”
Hannah Arendt

Cantiga de amor

"Se eu pudesse forçar meu coração, 
Obrigá-lo , senhora, a vos dizer
Quanta amargura me fazeis sofrer,
Posso jurar – dê-me Deus perdão! –
Que sentireis compaixão de mim.

Pois, senhora conquanto apenas dor
E nenhuma alegria me causeis,
Se soubésseis o mal que me fazeis,
Posso jurar – perdoa-me Senhor! –
Que sentireis compaixão de mim.

Não me querendo nenhum bem, embora,
Se soubésseis a pena que me dais,
E quanta dor há nos meus tristes ais,
Posso jurar – de boa fé, senhora! –
Que sentireis compaixão de mim.
E mal seria, se não fosse assim.
D. Dinis

Serenidade

“O mundo, às vezes, pode oferecer-nos coisas maravilhosas. Mas dá-se, então, o acidente e uma alma perde a serenidade.”
Sándor Márai

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Trechos de "Cem Anos de Solidão"


Uma noite, na época em que Rebeca se curou do vício de comer terra e foi levada para dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com eles acordou por acaso e ouviu um estranho ruído intermitente no canto. Sentou-se alarmada, pensando que tinha entrado algum animal no quarto, e então viu Rebeca na cadeira de balanço, chupando o dedo e com os olhos fosforecentes como os de um gato na escuridão. Pasmada de terror, perseguida pela fatalidade do destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença cuja ameaça os havia obrigado, a ela e ao irmão, a se desterrarem para sempre de um reino milenário no qual eram príncipes. Era a pesta da insônia.
Cataure, o índio, não amanheceu em casa. Sua irmã ficou, porque o coração fatalista lhe indicava que a doença fatal haveria de persegui-la de todas as maneiras até o último lugar da terra. Ninguém entendeu o pânico de Visitación. “Se a gente não voltar a dormir, melhor”, dizia José Arcadio Buendia, de bom humor. “Assim a vida rende mais”. Mas a índia explicou que o mais temível da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço nenhum, mas sim a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice sem passado. José Arcadio Buendia, morto de rir, considerou que se tratava de mais uma das tantas enfermidades inventadas pela superstição dos indígenas. Mas Úrsula, por via das dúvidas, tomou a precaução de separar Rebeca das outras crianças.
Ao fim de várias semanas, quando o terror de Visitación parecia aplacado, José Arcadio Buendia encontrou-se uma noite rolando na cama sem poder dormir. Úrsula, que também tinha acordado, perguntou-lhe o que estava acontecendo e ele respondeu: “Estou pensando outra vez em Prudencio Aguilar”. Não dormiram um minuto sequer, mas no dia seguinte se sentiam tão descansados que se esqueceram da noite ruim. Aureliano comentou assombrado na hora do almoço que se sentia muito bem, apesar de ter passado a noite no laboratório, dourando um broche que pensava dar a Úrsula no dia do seu aniversário. Não se alarmaram até o terceiro dia, quando na hora de deitar se sentiram sem sono, e deram conta de que estavam há mais de cinqüenta horas sem dormir.
- As crianças também estão acordadas – disse a índia com a sua convicção fatalista. – Uma vez que a peste entra em casa, ninguém escapa.
(...) Quando José Arcadio Buendia percebeu que a peste tinha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para explicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabeleceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para as outras povoações do pantanal. Foi assim que se tiraram dos cabritos os sininhos que os árabes trocavam por papagaios, e se puseram na entrada do povoado, à disposição dos que desatendiam os conselhos e as súplicas dos sentinelas e que insistiam em visitar a aldeia. Todos os forasteiros que por aquele tempo percorriam as ruas de Macondo tinham que fazer soar o sininho para que os doentes soubessem que estavam sãos. Não se lhes permitia comer nem beber nada durante a sua estada, pois não havia dúvidas de que a doença só se transmitia pela boca, e todas as coisas de comer e de beber estavam contaminadas pela insônia. Desta forma, manteve-se a peste circunscrita ao perímetro do povoado. Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir.
Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes de sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.
Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lembrava de si apenas como o homem moreno que havia chegado no princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas como a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mão esquerda, e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última quarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro (...).
Gabriel García Márquez, in Cem anos de solidão

O que não quer ver

"Aquele que não quer ver o que é elevado num ser humano olha com tanto maior acuidade para o que é nele baixo e superficial - e com isso denuncia a si mesmo."
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Os animais e a peste


Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas.
- Esta peste é um castigo do céu – respondeu o macaco – e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.
- Qual? – perguntou o leão.
- O mais carregado de crimes.
O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:
- Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o sacrifício necessário ao bem comum.
A raposa adiantou-se e disse:
- Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. São coisas que até que honram o nosso virtuosíssimo rei Leão.
Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.
Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência.
E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.
Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:
- A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário.
Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:
- Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.
Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimamente eleito para o sacrifício.

Moral da Estória:
Aos poderosos, tudo se desculpa…
Aos miseráveis, nada se perdoa.
Monteiro Lobato, in Fábulas