sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Estilo

“Com certezas, o estilo é impossível: a preocupação com a expressão é própria dos que não podem adormecer em uma fé. Por falta de um apoio sólido, agarram-se às palavras — sombras de realidade —, enquanto os outros, seguros de suas convicções, desprezam sua aparência e descansam comodamente no conforto da improvisação.”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade

“Jesus Cristo Superstar” fez mais por Jesus do que os grupos religiosos que querem proibir o musical

Ele
O ator Igor Rickli no papel de JC

Como diz o nosso querido Bertrand Russell, o problema do mundo é que os idiotas são cheios de certezas e os sábios cheios de dúvidas.
Grupos religiosos querem proibir “Jesus Cristo Superstar” no Brasil. A Associação Devotos de Fátima criou uma petição online exigindo que a ministra da Cultura, Marta Suplicy, “cancele esse espetáculo blasfemo, sacrílego, grotesco e pecaminoso!”
“Tenho certeza de que a senhora jamais daria dinheiro a alguém que estivesse preparando uma violência contra o senhor seu pai ou algum de seus entes queridos. Mas eu me sinto assim quando vejo os cartazes anunciando esse espetáculo de horror, com os dizeres ‘promovido pelo Ministério da Cultura’”, afirmam os autores da moção.
Também lhes incomodou o fato de o narrador da peça ser Judas Iscariotes; a sugestão de uma relação “indecente” com Maria Madalena; e JC se apresentar vestindo calça jeans.
Não vou me estender no resto do blablablá intolerante, rastaquera e biruta, mas a verdade é que a ópera-rock de Tim Rice e Andrew Lloyd Weber fez mais, provavelmente, pelo Senhor do que essas milícias medievais.
Desde a estreia na Broadway, em 1970, e depois no West End, de Londres, sempre foi um sucesso. Faturou mais de 120 milhões de dólares com montagens em mais de 40 países. A trilha sonora original vendeu mais de 7 milhões de cópias (Ian Gillan, antes de virar vocalista do Deep Purple, fazia a voz do filho de Deus). As pressões de fundamentalistas também não são novas (na África do Sul e na Bielorussia, houve banimento, aliás).
Em 1973, virou um filme dirigido por Norman Jewison. É, como todo musical, uma chatice, mas tem grandes momentos (o tema e a linda canção “Everything’s Alright”, entre outros). Uma leitura meio hippie da “maior história de todos os tempos”. Tim Rice disse que não via Cristo como Deus, mas “simplesmente como o homem certo no lugar certo”. Perto de “A Última Tentação de Cristo”, é um passeio no parque.
É útil para a causa. Mais útil do que o Padre Marcelo dando pulinhos aos domingos. Um clérigo viu isso: Nick Baines, bispo anglicano de Bradford, na Inglaterra.
Em 2012, quando a peça foi adaptada para a TV por lá, houve uma grita. Baines escreveu um belo artigo no jornal The Telegraph em que se apegava principalmente a uma passagem fundamental do texto, quando Judas pergunta “Quem você pensa que é?” ao mestre.
“Um musical pode atingir partes de nós que um sermão não pode, uma boa melodia toma conta da imaginação e permanece em nossa mente. Da mesma forma, as questões levantadas no musical podem atingir as pessoas que não têm intenção de ouvir um sermão ou ler sobre teologia”, escreveu. “Os cristãos se queixam de que é difícil capturar a imaginação (e a atenção) de muita gente — e no entanto, na peça, isso é oferecido como a cabeça de João Batista, num prato”.
Uma nova geração, acredita Baines, tem a oportunidade de estabelecer contato com as perguntas dos evangelhos. “Eles podem falar de Jesus num bar e em outros locais cheios de pessoas que não encontram seu caminho na igreja. Os seguidores de Jesus não eram os santos de plástico que vemos em vitrais com auréolas em torno da cabeça. Eram pessoas normais que se esforçaram para entender Jesus, frequentemente do lado errado da fronteira teológica. Estas eram pessoas reais – esse é o ponto”.
A obra, diz Baines, é um olhar para Jesus através dos questionamentos de Judas, o personagem mais intrigante das narrativas evangélicas.
“Assim como Jesus se envolveu com gente real no mundo real, ‘Jesus Cristo Superstar’ pode levar uma audiência improvável a se comunicar com ele. Pode até fazer com que um público que pensa que sabe tudo sobre ele dê mais uma olhada. Afinal de contas, os evangelhos desafiam seriamente aqueles com preconceitos arraigados a respeito de Deus a pensar duas vezes”.
Amém.
Kiko Nogueira, in www.diariodocentrodomundo.com.br

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Governo

“O melhor governo é aquele no qual o mínimo de pessoas inúteis.”
Jacques-Bénigne Bossuet

Viver

“É tempo de viver a vida que você imaginou para si mesmo.”
Henry James

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

[vooema]

coluna _19

Se a poesia tivesse um destino – este – seria o infinito, e não seus olhos. Lamento informar, senhora passageira: a leitura é apenas uma ponte entre a palavra realizada e a tão sonhada eternidade. A poesia existiria mesmo se não houvesse ninguém para decliná-la ou declamá-la. Ela não precisa da gente, ela se abastece do que sente e pranto. Ela não precisa de gente, ela se acompanha sozinha e pronto.
Seus olhos seriam úteis em outro momento, não agora que escrevo um poema. Um poema com asas, diga-se de passagem. Pois é, a poesia é uma espécie de pássaro: talvez um papagaio – desses que repete a alma do seu dono. Ou talvez seja mais poético acreditar que o poeta é o piloto das sílabas. Seu papel: levar as palavras desprotegidas para um lugar seguro.
(seus olhos?)
No saguão de embarque, os sentimentos já formam uma pequena fila. Todos já sabem o seu destino. O Amor, sempre ele, ocupa o assento 26B, e parece não se importar com a vizinhança. Bate um papo afetivo com a carência, que ainda se ajeita na poltrona perto do corredor, e oferece ajuda para o ego, que parece ignorar seus colegas de voo e coloca as malas no bagageiro sem responder. O Remorso fez check-in mais cedo e optou por uma poltrona perto da saída para que todos sejam obrigados a passar por ele ao menos uma vez nessa viagem. A Liberdade – essa passageira tão desejada – ficou ao lado da asa direita. Mas ela não fica parada muito tempo, e se levanta antes mesmo da fase da decolagem se dar por completa. Ela adora a sensação de se desafivelar por livre e espontânea necessidade. A Saudade não embarcou dessa vez. Já está do outro lado do mundo à espera do Passado, da Agonia ou de qualquer outra palavra dolorida. Todos os assentos estão ocupados. Minto: a Ausência se esqueceu do bilhete de embarque e, mais uma vez, deixou um vazio entre Você, na 18A e Eu, na 18C. O Tempo até se ofereceu para remediar a nossa distância na 18B. Negamos. Às vezes, é bom deixar o Nada entre nós.
Os motores estão com a força total disponível, na exata velocidade que eu preciso para alçar voo e ver cada verso se descolar da pista de decolagem – essa imensa página de concreto! Desligo o celular. Assim que o painel luminoso autorizar, ligarei a vida em modo avião.
Eu nunca escrevi um poema sequer para querer ser lido. Sempre escrevi para voar. Quando aprendi a escrever, na verdade, me foi ensinado a voar. E voar aos seis anos se faz sem rotas, sem fronteiras, sem medo. Bater asas aos 29 é mais perigoso. A gente sente tanta ânsia, tanta vertigem, contanto com uma pequena vantagem: os desenhos nas nuvens fazem mais sentido. Vemos nossa vida projetada em full-HD nessa imensa tela de algodão. Admiro um dragão. Será que ele vai engolir meu orgulho? Mergulho em outra imagem: quem aparece é seu rosto. Como você mudou! Agora é seu sorriso que se mostra. Sorrio de volta. Seu adeus entra em cena e acena. Recuso-me a devolver o gesto de despedida. Gosto quando você vive em mim. Se eu chorar, vai chover.
 Engraçado: mesmo aqui, a dez mil pés, penso em quando eu ainda dormia em suas mãos, ali, a dez centímetros do seu peito. Elas formavam uma espécie de pequeno travesseiro. Acredite: era o travesseiro mais confortável já inventado pela humanidade. A essa altura, não adianta se lamentar. O passado ficou para trás em itálico, o presente é seu NOME escrito em caixa-alta, e o futuro em negrito é um risco – em todos os sentidos.
Senhora passageira, lamento informar:
Nosso amor foi uma espécie de ponte aérea, com escala em tantas tentativas. Em algum momento dessa viagem poética, entre Dumont e Drummond, desviamos da zona de turbulência, mas perdemos a conexão.
Preciso pousar o ponto final.
Pela tensão, obrigado.

Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e criador de “Eu me chamo Antônio”, perfil do Instagram e página do Facebook que deram origem ao livro Eu me chamo Antônio, lançado pela Intrínseca.

A política enquanto arte

"A política foi primeiro a arte de impedir as pessoas de se intrometerem naquilo que lhes diz respeito. Em época posterior, acrescentaram-lhe a arte de forçar as pessoas a decidir sobre o que não entendem."
Paul Valéry

O Terraço do Café na Place du Forum, Arles, à Noite (1888)


"Procura compreender o que dizem os artistas nas suas obras-primas, os mestres sérios. Aí está Deus."
Vincent Van Gogh

O nosso variável "eu"

Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil. As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte, elementos inconscientes, quase inacessíveis à observação.
O único meio de descobrir o nosso “eu” real é, já o dissemos, a ação. Cada qual só se conhece um pouco depois de ter observado a sua maneira de agir em circunstâncias determinadas. Pretender adivinhar como procederemos numa situação dada é muito quimérico. O marechal Ney, quando jurou a Luís XVIII que lhe traria Napoleão numa gaiola de ferro, estava de muito boa fé, mas não se conhecia; um simples olhar do Imperador bastou para que mudasse a sua resolução; o infortunado marechal pagou com a vida a ignorância da sua própria personalidade. Se estivesse mais familiarizado com as leis da psicologia, Luiz XVIII ter-lhe-ia provavelmente perdoado.
As teorias expostas nesta obra relativamente ao caráter podem, por vezes, parecer contraditórias. De um lado, com efeito, insistimos na fixidez dos sentimentos que formam o caráter e, de outro, mostramos as variações possíveis da personalidade. Essas oposições irão dissipar-se rememorando os pontos seguintes:
1º. Os caráteres formam-se a partir de um agregado de elementos afetivos fundamentais, mais ou menos invariáveis, aos quais se juntam elementos acessórios, facilmente mutáveis. Estes últimos correspondem às modificações que a arte do criador aplica a uma espécie, sem modificar por isso os seus carácteres essenciais;
2º. As espécies psicológicas acham-se, como as espécies anatômicas, sob a estreita dependência do meio. Devem adaptar-se a todas as mudanças desse meio e a ele, de facto, se adaptam, quando essas transformações não são consideráveis em extremo nem demasiadamente súbitas;
3º. Os mesmos sentimentos podem oferecer a aparência de uma mudança quando se aplicam a assuntos diferentes, sem que, entretanto, haja sofrido modificação na sua natureza real. Tornando-se amor divino em certas conversões, o amor humano é um sentimento que mudou de nome, mas não de natureza.
Todas essas averiguações têm um interesse muito prático, porquanto se acham na própria base de muitos problemas modernos importantes, principalmente o da educação. Observando que a educação modifica a inteligência ou, pelo menos, a soma dos conhecimentos individuais, concluiu-se que ela podia modificar igualmente os sentimentos. Era esquecer por completo que os estados afetivos e intelectuais não apresentam uma evolução paralela.
Quanto mais se aprofunda o assunto, tanto mais firmemente se reconhece que a educação e as instituições políticas desempenham um papel bastante fraco no destino dos indivíduos e dos povos. Essa doutrina, contrária, aliás, às nossas crenças democráticas, parece, por vezes, contrariada também pelos fatos observados em certos povos modernos, e é isso que sempre a impedirá de ser facilmente admitida.
Gustave Le Bon, in As Opiniões e as Crenças

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Fugidio e breve

“Encontro fugidio e breve foi o nosso. Belo também da beleza que permanece na memória para além dos dias. Algures tu és, aqui eu sou. Porque imprecisa, a distância se resolve na certeza vaga de existirmos num como e num onde. Tanto basta. [Pergunta ou afirmação?]. Não há passos que nos aproximem no impreciso e no vago. O nosso reencontro está só na certeza vaga de existirmos com outros, sob o mesmo sol. Melhor assim.”
Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso

Liberdade?!



“Liberdade de imprensa é fácil. Difícil é ser jornalista livre.”
Leon Eliachar

Minha terra tem palmeiras...

Vejo de minha janela uma nesga do mar verde-azul de Copacabana e me penetra uma infinita doçura. Estou de volta à minha terra... A máquina de escrever conta-me uma antiga história, canta-me uma antiga música no bater de seu teclado. Estou de volta à minha terra, respiro a brisa marinha que me afaga a pele, seu aroma vem da infância. Retomo o diálogo com a minha gente. Uma empregada mulata assoma ao parapeito defronte, o busto vazando do decote, há toalhas coloridas secando sobre o abismo vertical dos apartamentos, dá-me uma vertigem. Que doçura!
Sinto borboletas no estômago, deve ter sido o tutu com torresmo ontem misturado ao camarão à baiana de anteontem misturado à galinha ao molho-pardo de trasanteontem misturada aos quindins, papos-de-anjo, doces de coco do primeiro dia. Digiro o Brasil. Qual canard au sang, qual loup flambé au fenouil, qual paté Strasbourgeois, qual nada! A calda dourada da baba-de-moça infiltra-se entre as papilas, elas desmaiam de prazer, tudo deságua em lentas lavas untuosas num amoroso mar de suco gástrico...
- É a brazuca! - disse-me Antônio Carlos Jobim balançando a cabeça com ar convicto, enquanto empinava o seu VW em direção ao Arpoador.
Há uma semana e meia atrás, pelas cinco da manhã, eu tocava violão para uns brasileiros e espanhóis da terceira classe, no Charles Tellier, que me trazia da Europa. De repente, um clarão lambeu o navio e todo mundo correu para a amurada. Era um farol de terra, possivelmente o de Cabo Frio. Havia entre nós um padre que regressava depois de quatro anos de estudos em Roma e Paris, um bom padre mineiro cheio de zelo pela nova missão de que vinha investido. Juro que vi o velho palavrão admirativo, o clássico palavrão labial de assombro formar-se em sua boca sem que ele sequer desse por isso.
Domingo passado fui almoçar na casa materna. Muito mais que as coisas vistas, os sons é que me emocionaram. Lá estava na parede o velho quadro de Di Cavalcanti, representando um ângulo da rua Direita pouco depois do antigo Hotel Toffolo, em Ouro Preto, mas o que me chegou foi o tinir das ferraduras dos burrinhos nas velhas pedras do calçamento, de mistura ao soar dos sinos e à voz presente de minha filha Luciana chamando-me: "Pai... iê!" para que eu fosse ver qualquer coisa. Depois, o sussurrar de vozes se amando baixinho no escuro de um beco, sob a luz congelada de estrelas enormes...
- Você gosta de mim?
- Gosto.
- Muito?
- Muito!
Minhas artérias entraram em constrição violenta, o peito doeu-me todo e eu me levantei e fui até a rua para respirar. Sei que morrerei um dia de uma emoção assim. Mas não adiantou. Lá estava o capim brotando de entre os paralelepípedos, lá estava a ladeira subindo para o verde úmido do morro, ali à esquerda ficava um antigo apartamento onde eu morei. Naquele tempo eu ganhava novecentos mil-réis por mês e estudava para o concurso do Itamarati. Dava apertado, mas dava.
Porque será que só no Brasil brota capim de entre os paralelepípedos, e particularmente na Gávea? Existe por acaso um sorvete como o do seu Morais às margens do Ródano? Veem-se jamais as silhuetas de Lúcio Rangel e Paulo Mendes Campos numa cervejaria em Munique? Quem já viu passar a garota de lpanema em Saint-Tropez?
Adeus mãe Europa. Tão cedo não te quero ver. Teus olhos se endureceram na visão de muitas guerras. Tua alma se perdeu. Teu corpo se gastou. Adeus, velha argentária. Guarda os teus tesouros, os teus símbolos, as tuas catedrais. Quero agora dormir em berço esplêndido, entre meus vivos e meus mortos, ao som do mar e à luz de um céu profundo. Malgrado o meu muito lutar contra, eis que me vou lentamente tornando - logo eu! - num isolacionista brasileiro.
Vinicius de Moraes, in Para uma menina com uma flor

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Água boa

“A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba.”
Guimarães Rosa

Cogito - 2

Sempre subindo a ladeira do nada,
Topar em pedras que nada revelam.
Levar às costas o fardo do ser
E ter certeza que não vai ser pago.

Sentir prazeres, dores, sentir medo,
Nada entender, querer saber tudo.
Cantar com voz bonita pra cachorro,
Não ver "PERIGO" e afundar no caos.

Fumar, beber, amar, dormir sem sono,
Observar as horas impiedosas
Que passam carregando um bom pedaço
da vida, sem dar satisfações.

Amar o amargo e sonhar com doçuras
Saber que retornar não é possível
Sentir que um dia vai sentir saudades
Da ladeira, do fardo, das pedradas.

Por fim, de um só salto,
Transpor de vez o paredão.
Torquato Neto

Ah, é? - 01

“Domingo inteiro em pijama, coça o umbigo. Diverte-se com os pequenos anúncios. Em sossego na poltrona, entende as borbulhas do gelo no copo de bebida. Uma velhice tranquila, regando suas malvas à janela, em manga de camisa. Única dúvida: ganhará o concurso de palavras cruzadas?”
Dalton Trevisan, in ministórias

Soneto 101

Ó, negligente Musa, que desculpas me darás
Por faltares com a verdade tingindo-a com a beleza?
Do belo e da verdade depende o meu amor;
E tu, também, para te tornares digna.
Responde, Musa: não me dirás, alegremente,
“A verdade não precisa de tom por ter sua própria cor,
Nem a verdade, de lápis para desenhá-la;
Mas o bom é o melhor, se jamais for corrompido?”–
Por ele não precisar de elogios, te entorpecerás?
Não desculpes o silêncio; por depender de ti
Para fazê-lo viver além da dourada tumba,
E ser aclamado longamente no porvir.
Assim, cumpre teu ofício, Musa; te ensinarei como
Fazê-lo parecer profundo então como se parece agora.
William Shakespeare

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sobre amigos e inimigos

“A tua atitude emerge do que costumas dizer: ‘Ainda sou capaz de utilizar quem é por mim. Mas prefiro, por comodidade, mandar o meu adversário para o outro campo e abster-me de agir sobre ele, a não ser pela guerra’.
Ao proceder assim, não fazes mais que endurecer e forjar o teu adversário.
E eu cá digo que amigo e inimigo são palavras da tua lavra. É certo que especificam qualquer coisa, como definir o que se passará se vos encontrardes num campo de batalha, mas um homem não se rege só por uma palavra. Sei de inimigos que estão mais perto de mim ou que me são mais úteis ou que me respeitam mais do que os amigos. As minhas faculdades de ação sobre o homem não estão ligadas à sua posição verbal. Direi mesmo que atuo melhor sobre o meu inimigo do que sobre o amigo: quem caminha na mesma direção que eu, oferece-me menos oportunidades de encontro e de troca do que aquele que vem contra mim, disposto a não deixar escapar a mínima palavra ou gestos meus, que lhe podem sair caros.”
Antoine de Saint-Exupéry, in Cidadela

Perguntas e respostas

— Qual é a coisa mais antiga do mundo?
— Poderia dizer que é Deus que sempre existiu.
— Qual é a coisa mais bela?
— O instante de inspiração.
— E Deus quando criou o Universo não o fez no momento de Sua maior inspiração?
— O Universo sempre existiu. O cosmos é Deus.
— Qual das coisas é a maior?
— O amor, que é o maior dos mistérios.
— Das coisas qual é a mais constante?
— O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança.
— Qual o melhor dos sentimentos?
— O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum mas é uma de minhas verdades.
— Qual é o sentimento mais rápido?
— O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.
— Qual é a mais forte das coisas?
— O instinto de ser.
— O que é mais fácil de se fazer?
— Existir, depois que passa o medo.
— Qual a coisa mais difícil de realizar?
— A própria relativa felicidade que vem do conhecimento de si mesmo.
Clarice Lispector, in Crônicas no Jornal do Brasil (1970)

As coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.
Jorge Luis Borges

Conversinha mineira

- É bom mesmo o cafezinho daqui, meu amigo?
- Sei dizer não senhor: não tomo café.
- Você é dono do café, não sabe dizer?
- Ninguém tem reclamado dele não senhor.
- Então me dá café com leite, pão e manteiga.
- Café com leite só se for sem leite.
- Não tem leite?
- Hoje, não senhor.
- Por que hoje não?
- Porque hoje o leiteiro não veio.
- Ontem ele veio?
- Ontem não.
- Quando é que ele vem?
- Tem dia certo não senhor. Às vezes vem, às vezes não vem. Só que no dia que devia vir em geral não vem.
- Mas ali fora está escrito "Leiteria"!
- Ah, isso está, sim senhor.
- Quando é que tem leite?
- Quando o leiteiro vem.
- Tem ali um sujeito comendo coalhada. É feita de quê?
- O quê: coalhada? Então o senhor não sabe de que é feita a coalhada?
- Está bem, você ganhou. Me traz um café com leite sem leite. Escuta uma coisa: como é que vai indo a política aqui na sua cidade?
- Sei dizer não senhor: eu não sou daqui.
- E há quanto tempo o senhor mora aqui?
- Vai para uns quinze anos. Isto é, não posso agarantir com certeza: um pouco mais, um pouco menos.
- Já dava para saber como vai indo a situação, não acha?
- Ah, o senhor fala da situação? Dizem que vai bem.
- Para que Partido?
- Para todos os Partidos, parece.
- Eu gostaria de saber quem é que vai ganhar a eleição aqui.
- Eu também gostaria. Uns falam que é um, outros falam que outro. Nessa mexida...
- E o Prefeito?
- Que é que tem o Prefeito?
- Que tal o Prefeito daqui?
- O Prefeito? É tal e qual eles falam dele.
- Que é que falam dele?
- Dele? Uai, esse trem todo que falam de tudo quanto é Prefeito.
- Você, certamente, já tem candidato.
- Quem, eu? Estou esperando as plataformas.
- Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que história é essa?
- Aonde, ali? Uê, gente: penduraram isso aí...
Fernando Sabino, in A mulher do vizinho

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A vida e o tempo

"Todos imos embarcados na mesma nau, que é a vida, e todos navegamos com o mesmo vento, que é o tempo."
Padre Antônio Vieira

Ser, parecer

Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida.

Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
Mia Couto

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Nossas dúvidas

“Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica.”
Emil Michel Cioran, in Silogismos da amargura

Alvinho, bom palpite

O Alvinho encarava um batente que não era mole. Se virava mais que charuto em boca de bêbado por uma grana muito mixuruca, que mal dava pra ele escorar os repuxos. Coisa que não é mole, hoje em dia, com a vida custando os olhos da cara como anda. Muito nego se abilola. Principalmente se o pinta é casado e tem montes de filhos pra sustentar. Às vezes, entra em bobeira e sai falando sozinho. E esse era o lance do Alvinho. Cheio de bronca com a sinuca de bico em que estava, ficava pelos botecos cavernosos e biroscas escamosas fazendo o maior quás-quás-quás da paróquia:
— Estou na piorada. Sei que estou. Mas um dia vira o jogo. Tem que virar. Do jeito que está não pode ser. Vê eu? Mino linha de frente, me atucanando nessa zorra encardida. Tá direito? Tá, não. Eu, Alvinho boa cuca, cheio de embaixada, perdido aqui nessa joça. Entregue às traças. A perigo perpétuo. Um dia tem que mudar.
E como esse papo que ele engrenava não dizia nada a ninguém, o jeito era ele mesmo continuar charlando:
— Nasci pra ser tratado a pão-de-ló. E, no entanto, estou só comendo capim pela raiz. Não dá pedal. Um dia me arrumo. Nem que precise fazer uma desgraça.
Claro que era conversa de bêbado. Nem o mais loque dos ouvintes botava fé. Estava tão escancarado que o bafo de boca do Alvinho era só desabafo que a curriola nem se tocava. E assim foi por anos e anos a fio. O Alvinho, na volta do trampo, parava na tendinha, enchia a fuça de cachaça e chorava as pitangas. Mas até araruta tem seu dia de mingau. Certa tarde, o Alvinho piou na parada e só deu um alô:
— Manda a penúltima.
O português do boteco fez a vontade do freguês. Botou a pinga, o Alvinho virou num gole e deu uma dica que fundiu a cuca de muito xereta:
— Inté. Vou cuidar de mim, que tou na bica pra ficar rico. E, sem maiores explicações, se picou. Largou a patota se badalando no seu destino:
— Não gostei dessa história do Alvinho.
— Nem eu. Ele não é de sair daqui antes das nove.
— Não vai ele, com essa mania de se acertar, entrar em canoa furada.
— Que ele pode fazer?
— Sei lá. Com essa mania de ficar rico, ele pode aprontar.
— Quê? Meter a mão grande em cima dos outros?
— E não pode querer sair por aí?
— Não ele. O Alvinho é de coisa nenhuma.
— Já vi muito papagaio enfeitado endoidar e fazer façanha.
— Isso eu também vi. Mas deixa andar. A cabeça dele é o seu guia. Se arrumar sarna, que se coce.
Mas não tinha chaveco nenhum na esperança do Alvinho. Acontece que, naquela semana, inaugurava a Loteria Esportiva. E como todo o povão das quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo até onde o vagau pisa devagarinho, o Alvinho via naquele babado a chance de tirar o pé do lodo. E, na cisma firme, se vidrou na loteria. Dali pra frente, até deixou de beber. Nem estrilava mais. Seu negócio era saber quem era o A.B.C. do escambau, o Lagarto da Barra do Catimbó, Nacional do fim da linha e tal e coisa. Então, era tentar a sorte. Sacrificava a família, deixava os mumus sem gororoba, mas arriscava seu palpite. Se alguém botava areia, ele descurtia:
— Que nada! Um dia eu faço treze pontos. Um dia dá eu na cabeceira. E tem um negócio: se eu beliscar uma nota, que nem precisa ser grande, pode ser dividida com um gango, eu nunca mais fico duro. Podem crer. Eu sei de mim. Se meu orixá me valer, eu faço e aconteço. Juro por essa luz que me ilumina.
E por nada desse mundo saía da cola. Estava rente. Fazia doze, onze, nunca menos de dez pontos. E, com essas e outras, o bruto sofria. Torcia. Passava o fim de semana inteiro com um brinco de malandro pendurado na orelha. Só de radinho de pilha, conferindo o resultado. E, remando a catraia em águas barrentas, o Alvinho ficava plantado na boca de espera.
E ficou nesse chove-não-molha até que veio o teste 44. Fanático como era, o Alvinho manjou o cartão e urrou. Se pudesse fazer três triplos, era barbada. Não teria erro. Contou sua grana e se apavorou: só tinha dois pixulés muito sem-vergonhas. No desespero, saiu caitituando pra cima do seu irmão e do seu cunhado. Azucrinou tanto os parentes que conseguiu dobrá-los. Conseguiu a bufunfa, apostou. Ficou na moita e se deu bem. Treze pontos. Uma glória! Treze pontos. Porém (e sempre tem um porém), mais novecentos e sessenta e oito negos, além dele, fizeram os treze pontos. A parte que lhe tocou foi de treze mil e novecentas jiripocas. Como teve que rachar por três, ficou com quatro milhos e caqueiradas. Quase nada. Mas, pra ele, que era salário-mínimo, era uma fortuna. E, sem se afobar, anunciou pros cupinchas:
—Como falei, nunca mais vou ficar duro.
E, mesmo a moçada do pedaço estranhando, o Alvinho meteu os peitos. Jogou o emprego pro alto. Comprou uma bicheira Buick 58, se encheu de roupas e virou outro Alvinho. Se embandeirou. Estava sempre à vontade. Sem ter que levantar cedo pra trabalhar, o pinta ficou um alegrão. E, de tanta folga que ele tinha, despertou inveja. Os bochichos começaram:
— Pombas! Quatro milhos dá pra tanto luxo?
— Sei lá. Eu nunca tive.
— Já faz tempo que ele ganhou na loteria.
— Pra tu ver. Já dava pra ter torrado a bufunfa.
— Principalmente gastando como gasta.
— E sem trampo.
— Deixa ele. Está com a vida que pediu a Deus.
E tanto o povaréu cortou o assunto que a pala bateu nas antenas de um cachorrinho. O cagueta alertou o tira que era seu chapa. O tira precisava mostrar serviço e se botou na campana do Alvinho. O pesqueiro dele era maconha. Sem rodeio, o tira deu a dura. Flagrou o vencedor da loteria com a boca na botija. E foi cana dura.
No aperto, o Alvinho se abriu:
— Sabe como é. Arrumei a grana, me botei no comércio. Agora, ele vai puxar um tempão na galera gelada. Talvez dê pra ele se mancar que grana em bolso de otário atrapalha paca.
Plínio Marcos, in Histórias das quebradas do mundaréu

Desilusão

Como a folha no vento pelo espaço
Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
A bater e a pulsar com embaraço.

Se é de dia, vou indo passo a passo
Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Para o mal incurável não há jeito,
É sem cura que eu vejo o meu fracasso.

Do parnaso não vejo o belo monte,
Minha estrela brilhante no horizonte
Me negou o seu raio de esperança,

Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.
Patativa do Assaré

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A morte

“A morte pode dar ensejo a dois sentimentos opostos: ou fazer pensar que morrer é tornar-se o mais vulnerável dos seres, sem defesa contra o desconhecido; ou que é tornar-se invulnerável e afastado de todos os males possíveis. Em quase todos, esses dois sentimentos existem e alternam-se. Passa-se a vida temendo ou desejando a morte.”
Paul Valéry, in Pensamentos Maus e Outros

Você

“Eu sofro a tua ausência te quero sonho com você para você contra você me responde teu nome é um perfume espalhado.”
Roland Barthes, in Fragmentos de um discurso amoroso

A intensidade sempre diferente que caracteriza a vida


“Não posso conceber o homem independente da sua intensidade. Basta ler um tratado de psicologia para sentir quanto as nossas ideias gerais mais penetrantes se deturpam quando queremos empregá-las para compreender os nossos atos. O seu valor desaparece à medida que avançamos na nossa procura, e é então fatal o choque com o incompreensível, com o absurdo, quer dizer com o ponto extremo do particular. A chave deste absurdo não será a intensidade sempre diferente que caracteriza a vida?
Ela é afetada pela nossa vida voluntária, consciente, e pela nossa vida mais oculta, feita de sonhos e de sensações secretas que se desenvolvem em absoluta liberdade. Quer um homem sonhe ser rei ou amante feliz, isso não altera em nada os seus gestos quotidianos; mas se um amor, a cólera, uma paixão ou um choque o desamparam, como gestos de outrem poderão repercutir-se nele com força ou fraqueza, conforme ele estiver exaltado ou deprimido!”
André Malraux, in A Tentação do Ocidente

Não me delete, por favor!

“Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo.”

Zygmunt Bauman

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O sociólogo polonês Zygmunt Bauman declara que vivemos em um tempo que escorre pelas mãos, um tempo líquido em que nada é para persistir. Não há nada tão intenso que consiga permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. Tudo é transitório. Não há a observação pausada daquilo que experimentamos, é preciso fotografar, filmar, comentar, curtir, mostrar, comprar e comparar.
O desejo habita a ansiedade e se perde no consumismo imediato. A sociedade está marcada pela ansiedade, reina uma inabilidade de experimentar profundamente o que nos chega, o que importa é poder descrever aos demais o que se está fazendo.
Em tempos de Facebook e Twitter não há desagrados, se não gosto de uma declaração ou um pensamento, deleto, desconecto, bloqueio. Perde-se a profundidade das relações; perde-se a conversa que possibilita a harmonia e também o destoar. Nas relações virtuais não existem discussões que terminem em abraços vivos, as discussões são mudas, distantes. As relações começam ou terminam sem contato algum. Analisamos o outro por suas fotos e frases de efeito. Não existe a troca vivida.
Ao mesmo tempo em que experimentamos um isolamento protetor, vivenciamos uma absoluta exposição. Não há o privado, tudo é desvendado: o que se come, o que se compra; o que nos atormenta e o que nos alegra.
O amor é mais falado do que vivido. Vivemos um tempo de secreta angústia. Filosoficamente a angústia é o sentimento do nada. O corpo se inquieta e a alma sufoca. Há uma vertigem permeando as relações, tudo se torna vacilante, tudo pode ser deletado: o amor e os amigos.
Luciana Chardelli, in longe.obviousmag.org

Chegaremos a ser aquilo que temos que ser?

“O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica. Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona. Talvez um dia!”
José Saramago, in La Verdade

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O homem é o animal que pergunta


Por que tão longe dos deuses? Talvez por perguntá-lo.
E daí? O homem é o animal que pergunta. No dia em que soubermos verdadeiramente perguntar, haverá diálogo. Por enquanto, as perguntas nos afastam vertiginosamente das respostas. Que epifania poderemos esperar se estamos nos afogando na mais falsa das liberdades, a dialética judaico-cristã? Faz-nos falta um Novum Organum de verdade, é preciso abrir de par em par as janelas e lançar tudo para a rua, mas sobretudo também é preciso lanças a janela e nós com ela. É a morte, ou sair voando. É preciso fazê-lo de qualquer modo. É preciso ter coragem para entrar no meio das festas e colocar sobre a cabeça da esfuziante dona da casa um belo sapo verde, presente da noite, e assistir sem horror à vingança dos lacaios. 
Julio Cortázar, in O jogo da amarelinha

A poesia existe em toda parte

“A poesia existe em toda parte, em todo lugar, em todos os momentos. Compete ao poeta captá-la e transpô-la para o livro, ou para o filme, ou para a televisão, ou para música, ou para dança, ou para o rádio... O poeta é o que vê poesia onde o comum dos mortais não vê nada, além do trivial.”
José Augusto Carvalho, in A necessidade da poesia

Soneto

Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca o Sol e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade,
Te converta em flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
Gregório de Matos