terça-feira, 31 de dezembro de 2013
Aprendendo a viver
Thoreau
era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim
de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam
nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos
angustiado.
Thoreau,
por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um
futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas “melhore
o momento presente”, exclamava. E acrescentava: “Estamos vivos agora.” E
comentava com desgosto: “Eles ficam juntando tesouros que as traças e a
ferrugem irão roer e os ladrões roubar.”
A
mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente
infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é
que você existe.
Cada
um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de
vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida
que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou
não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma
dor profunda.
Ele
queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou
e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de
nós.
Por
exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que
contemporizavam — ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham
tempo por causa de estudos ou trabalhos — ele mandava ir agora para o quarto e
começar a escrever.
Impacientava-se
também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver.
“É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber.”
E
dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: “Por que não deixamos penetrar
a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?”
Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade
percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante.
Thoreau
achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também
as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: “A opinião
pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos.” É
verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no
fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois “o que um
homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino”.
E,
por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso
quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco
menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma
covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio.
“Creio”, escreveu, “que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos.
A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força.” E repetia
mil vezes aos que complicavam inutilmente as coisas — e quem de nós não faz
isso? —, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas:
simplifique! simplifique!
E
um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que
infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm
complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
Em
determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca
de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura
do “mundo livre”. Além disso, procurava a salvação pelo risco – sem o qual a
vida para ele não valia a pena – “e não pelo encolhimento senil, que não é dos
velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas,
inclusive religiosas” (o grifo é meu).
Para
Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas
as formas. “A avareza e o tédio danam o mundo.” “Dois ramos, enfim, do
egoísmo”, acrescenta o autor do artigo.
Repito
por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale
a pena!
Feliz Ano Novo.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
Esperança
Lá bem no alto do décimo segundo andar do
Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Mário
Quintana
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
Extra misericordioso
“Nunca compreendi como é possível que
alguém que escreva consiga objetivar os seus sofrimentos enquanto vive sob o
seu peso; assim eu, por exemplo, no meio da minha infelicidade, provavelmente
ainda com a minha cabeça a queimar de infelicidade, sento-me e escrevo a
alguém: sou infeliz. Sim, eu até posso ir além disto e com todos os floreados
que o meu talento possa inventar, que não parecem ter nada a ver com a minha
infelicidade, toco uma orquestração simples, ou em contraponto, ou uma
orquestração completa de variações sobre o meu tema. E não é uma mentira, e não
mitiga a minha dor: é simplesmente um extra misericordioso de força num momento
em que o sofrimento me consumiu até ao fundo do meu ser e gastou completamente
todas as minhas forças. Mas então que espécie de extra é esse?”
Franz
Kafka, in Diário (18/09/1917)
Ideias próprias e alheias
“Todos os homens vivem e agem, em parte,
segundo as suas próprias ideias e, em parte, segundo as ideias alheias. Uma das
principais diferenças que existem entre os seres humanos consiste na medida em
que se inspiram nas suas próprias ideias ou nas dos seus semelhantes. Uns
limitam-se a servir-se das suas ideias como de um jogo intelectual, usam a
razão como a roda de uma máquina da qual houvessem tirado a correia
transmissora, submetendo os atos às ideias dos outros, ou seja, aos seus
costumes, tradições e leis. Outros consideram que as suas ideias constituem o
principal motor da atividade que desenvolvem e quase sempre obedecem às
exigências da sua razão. Só de vez em quando, depois de uma apreciação crítica,
se guiam pelas normas dos outros.”
Leon
Tolstoi, in Ressurreição
Casamento
Há mulheres que
dizem:
Meu marido, se
quiser pescar, pesque,
mas que limpe os
peixes.
Eu não. A
qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar,
abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a
gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando
os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas
como "este foi difícil"
"prateou no
ar dando rabanadas"
e faz o gesto com
a mão.
O silêncio de
quando nos vimos a primeira vez
atravessa a
cozinha como um rio profundo.
Por fim, os
peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas
espocam:
somos
noivo e noiva.
Adélia Prado
domingo, 29 de dezembro de 2013
Inocente, a todo custo!
“Somos todos casos excepcionais. Todos
queremos apelar de qualquer coisa! Cada qual exige ser inocente, a todo o
custo, mesmo que para isso seja preciso inculpar o gênero humano e o céu.
Contentaremos mediocremente um homem, se lhe dermos parabéns pelos esforços
graças aos quais se tornou inteligente ou generoso. Pelo contrário, ele
rejubilará, se se admirar a sua generosidade natural. Inversamente, se dissermos
a um criminoso que o seu crime nada tem com a sua natureza, nem com o seu caráter,
mas com infelizes circunstâncias, ele ficar-nos-á violentamente reconhecido.
Durante a defesa, escolherá mesmo este momento para chorar. No entanto, não há
mérito nenhum em ser-se honesto, nem inteligente, de nascença! Como se não é certamente
mais responsável em ser-se criminoso por natureza que em sê-lo devido às
circunstâncias. Mas estes patifes querem a absolvição, isto é, a
irresponsabilidade, e tiram, sem vergonha, justificações da natureza ou
desculpas das circunstâncias, mesmo que sejam contraditórias. O essencial é que
sejam inocentes, que as suas virtudes, pela graça do nascimento, não possam ser
postas em dúvida, e que os seus crimes, nascidos de uma infelicidade passageira,
nunca sejam senão provisórios. Já lhe disse, trata-se de escapar ao julgamento.
Como é difícil escapar e melindroso fazer, ao mesmo tempo, com que se admire e
desculpe a própria natureza, todos procuram ser ricos. Porquê? Já o perguntou a
si mesmo? Por causa do poder, certamente. Mas sobretudo porque a riqueza nos
livra do julgamento imediato, nos retira da turba do metropolitano para nos
fechar numa carroçaria niquelada, nos isola em vastos parques guardados, em
carruagens-cama, em camarotes de luxo. A riqueza, caro amigo, não é ainda a
absolvição, mas a pena suspensa, sempre fácil de conseguir...”
Albert
Camus, in A Queda
No fim de um lugar
No fim de um lugar
você veio ficou de pé
no espinheiro pedrento do rochedo
e se atravessava uma coisinha branca na voz.
Eu fui na garupa
com os frios da noite
por cajus amarelos
debruçados à cerca.
Em torno fazia um pássaro
que seu canto finge com águas...
Você se beiradeava.
Eu me escorei o rosto nos silêncios.
Fui buscar um gosto leve
naquilo árvore
naquilo casa-de-pássaros.
- Você me esperava?
Que outra era esperada
no recanto do meu abandono
Quando não vinha você
naquele lugar de minha mão?
Eu não sei bem o que houve
no fim desse lugar
pois andou nele a raiz
de uma voz que crescia na relva dos peixes.
Crescia teu lábio
essa voz úmida que me buscava
sobre os cascalhos verdes
junto de outro corpo.
Eu andava com meus dedos
a colher outros frutos raros...
Por que você já não vinha
malhar sob os meus galhos?
Não espiei contudo
quem escorria de mim outrora.
Ervinhas subideiras
trepavam de meu casaco.
Agarrado aos muros
ainda a brotar esta flor de sonho
um pouco do meu rosto
ficou eivado desse lugar...
Manoel
de Barros
O homem, esse animal...
"De todos os animais da Criação, o
homem é o único que bebe sem ter sede, come sem ter fome e fala sem ter nada
que dizer."
John
Steinbeck
O justo e o pérfido
"Apenas o tempo revela o homem
justo; basta um dia para pôr a nu um pérfido."
Sófocles
sábado, 28 de dezembro de 2013
Como comecei a escrever
Quando
eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma história que havia lido, inventei
para ela um fim diferente, que me parecia melhor. Resolvi então escrever as
minhas próprias histórias.
Durante
o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de ser sempre dos melhores em
português e dos piores em matemática — o que, para mim, significava que eu
tinha jeito para escritor.
Naquela
época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em
dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso
permanente de crônicas sob o titulo "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes".
Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me
animava a concorrer, passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o
concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse
premiada.
Passei
a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu
autor predileto era Edgar Wallace. Pouco depois passaria a viver sob a
influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas
aventuras procurava imitar nos meus escritos.
A
partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com
pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira, ter aprendido
datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a
mania que passei a ter de estudar gramática e conhecer bem a língua me foi
bastante útil.
Mas
nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de
minha terra Guilhermino César, João Etienne filho e Murilo Rubião - e, um
pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da
publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.
De tudo, o mais precioso à minha
formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela
vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, tendo
como inspiração comum o culto à Literatura.
Fernando
Sabino, in Para gostar de ler – Crônicas, Vol. 4
Autoconhecimento
"Aquele que se analisou a si mesmo,
está deveras adiantado no conhecimento dos outros."
Denis
Diderot
Construção e criação
"A verdadeira diferença entre a
construção e a criação é esta: uma coisa construída só pode ser amada depois de
construída, mas uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir."
Charles
Dickens
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
Não Estamos Sozinhos- MARCO BRITO - CHARLIE BROWN JR
Marco
Britto, do Charlie Brown Jr, lança música como forma de desabafo. Integrante da
formação original do Charlie Brown Jr, o guitarrista Marco fez a música
"Não Estamos Sozinhos" narrando o que passou em 2013, que foi marcado
pelas mortes de Chorão e Champignon, amigos e parceiros de banda.
O universal sobre o particular
“Combaterei pelo primado do Homem sobre o indivíduo
- como do universal sobre o particular. Creio que o culto do universal exalta e
liga as riquezas particulares - e funda a única ordem verdadeira, que é a da
vida. Uma árvore está em ordem, apesar das raízes que diferem dos ramos.
Creio que o culto do particular só leva à morte -
porque funda a ordem na semelhança. Confunde a unidade do Ser com a identidade
das suas partes. E devasta a catedral para alinhar pedras. Combaterei, pois,
todo aquele que pretenda impor um costume particular aos outros costumes, um
povo aos outros povos, uma raça às outras raças, um pensamento aos outros
pensamentos.
Creio que o primado do Homem fundamenta a única
Igualdade e a única Liberdade que têm significado. Creio na Igualdade dos
direitos do Homem através de cada indivíduo. E creio que a única liberdade é a
da ascensão do homem. Igualdade não é Identidade. A Liberdade não é a exaltação
do indivíduo contra o Homem. Combaterei todo aquele que pretenda submeter a um
indivíduo - ou a uma massa de indivíduos - a liberdade do Homem.
Creio
que a minha civilização denomina ‘Caridade’ o sacrifício consentido ao Homem
para que este estabeleça o seu reino. A caridade é dádiva ao Homem, através da
mediocridade do indivíduo. É ela que funda o Homem. Combaterei todo aquele que,
pretendendo que a minha caridade honre a mediocridade, renegue o Homem e,
assim, aprisione o indivíduo numa mediocridade definitiva.
Combaterei
pelo Homem. Contra os seus inimigos. Mas também contra mim mesmo.”
Antoine de Saint-Exupéry,
in Piloto de Guerra
Ministórias - 04
Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder —
o arrepio lancinante no céu da boca.
Dalton Trevisan, in Ah, é?
Minha lista de grandes escritores
Uma revista espanhola teve a ideia de
pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica
literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, diretos
ou indiretos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer
presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no
meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em
brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adoção ao
contrário, em que era o ‘descendente’ a escolher o ‘ascendente’. A cada
escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras
dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os
retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação,
foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no ‘Ano da Morte de
Ricardo Reis’, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre
Antônio Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que
quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a
Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de
Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões
sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que
não é preciso ser-se gênio para escrever um livro genial, o ‘Húmus’; Fernando
Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se
chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero; Eça
de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge
Luis Borges, porque inventou a literatura virtual; Gogol, porque contemplou
a vida humana e achou-a triste.
José
Saramago, in Cadernos de Lanzarote (1996)
Incapazes de mudar o destino
“Apercebo-me dos meus erros, mas não os
corrijo. Isso só confirma que podemos ver o nosso destino, mas somos incapazes
de mudá-lo. Apercebermo-nos dos erros é reconhecer o destino, e a nossa
incapacidade para os corrigirmos é a força do destino. Apercebermo-nos dos
erros é um castigo pesado. Seria muito mais fácil considerarmo-nos bons e
culparmos os outros todos, encontrando consolação na ilusão da vitória sobre o
destino. Mas mesmo essa felicidade não me é dada.”
Alexander Puschkine,
in Diário Secreto
quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Da observação
Não te irrites, por mais que te fizerem…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio…
Mário Quintana
O amor que termina
“Como
termina um amor? – O quê? Termina? Em suma ninguém – exceto os outros – nunca
sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida,
afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado,
quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o
vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo
como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um
clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se
esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo
(sujeito enamorado) não posso construir até o fim de minha história de amor:
sou o poeta (o recitante apenas do começo); o final dessa história, assim como
a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam romance,
narrativa exterior, mítica.”
Roland Barthes, in Fragmentos
de um discurso amoroso
Dylan Thomas
“Não
ignoro que a iluminação, quando entra na água, se torce como a vara que parece
se torcer. Mas há uma diferença: a vara toca no fundo, mesmo na água suja, e a
luz, não sei se com a água suja toca no fundo. A luz não é um metal.
Ou o metal talvez seja uma luz mais
lenta. Como o ouro mostra. E daí o seu valor monetário, que não é mais que o
seu valor para os olhos.”
Gonçalo
M. Tavares, in Biblioteca
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
O povo e as línguas
"O povo faz bem as línguas. Fá-las
imaginosas e claras, vivas e expressivas. Se fossem os sábios a fazê-las, elas
seriam baças e pesadas."
Anatole
France
Versos de Natal
Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Manuel
Bandeira
Não se mate
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil
você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Carlos
Drummond de Andrade
Carta a Papai Noé
Em
meio aos sentimentos presentes neste Natal, lembremos daqueles a quem o
"bom velhinho" não consegue chegar, nos versos mais que verdadeiros
do poeta Luiz Campos, que rebate a hipocrisia e o apelo comercial desta festa
que deveria ser mais cristã.
Ilustração: Arievaldo Viana
Seu moço eu fui um garoto
Infeliz na minha infância
Que soube que fui criança
Mas pela boca dos outo.
Só brinquei com os gafanhoto
Que achava nos tabuleiro
Debaixo dos juazeiro
Com minhas vaca de osso
Essa catrevage, sêo moço
Que a gente arranja sem dinheiro.
Quando eu via um gurizin
Brincando de velocipe
De caminhão e de gipe
Bola, revólver e carrin
Sentia dentro de mim
Desgosto que dava medo
Ficava chupando o dedo
Chorando o resto do dia
Só pruquê eu num pudia
Pegar naqueles brinquedo.
Mas preguntei uma vez
A uns fio de dotô
Diga, fazendo um favô
Quem dá isso pra vocês?
Mim respondeu logo uns três
Isso aqui é os presente
Que a gente é inocente
Vai drumí às vêis nem nota
Aí Papai Noé bota
Perto do berço da gente.
Fiquei naquilo pensando
Inté o Natá chegá
E na Noite de Natá
Eu fui drumi mim lembrando
Acordei fiquei caçando
Por onde eu tava deitado
Seu moço eu fui enganado
Que de presente o que tinha
Era de mijo uma pocinha
Que eu mermo tinha botado
Saí c’a bixiga preta
Caçando os amigos meu
Quando eles mostraram a eu
Caminhão, carro e carreta
Bola, revólver, corneta
E trem elétrico, até
Boneca, máquina de pé
Mas num brinquei, só fiz vê
E resolvi escrevê
Uma carta a Papai Noé.
“Papai Noé, é pecado
Os outro se matratá
Mas eu vou le recramá
Um troço que tá errado
Que aos fio de deputado
Você dá tanto carrin
Mas você é muito ruim
Que lá em casa num vai
Por certo num é meu pai
Que num se lembra de mim.
Já tô certo que você
Só balança o povo seu
E um pobe qui nem eu
Você vê, faz qui num vê
E se você vê, porque
Na minha casa num vem?
O rancho que a gente tem
E pequeno mas le cabe
Será que você num sabe
Qui pobe é gente também?
Você de roupa encarnada,
Colorida, bonitinha
Nunca reparou que a minha
Já tá toda remendada
Seja mais meu camarada
Prêu num chamá-lo de ruim
Para o ano faça assim:
Dê menos aos fio dos rico
De cada um tire um tico,
Traga um presente pra mim.
Meu endereço eu vou dá,
Da casa que eu moro nela
Moro naquela favela
Que você nunca foi lá
Mas quando você chegá
Que avistá uma paióça
Cuberta cum lona grossa
E dois buraco bem grande
Uma porta véia de frande
Pode batê que é a nossa.
Luís Campos, Poeta
mossoroense
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
Em confronto
"Até a glória e a virtude têm
inimigos, pois parecem condenar procedimentos contrários postos em confronto
com elas."
Tácito
Todos inconscientes
A persistência instintiva da vida através da
aparência da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais
constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar
aquela inconsciência que não disfarça. Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que
têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais
complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se
guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus atos, são todos
inconscientes - não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há
duas consciências.
Vislumbres de ter a ilusão - tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo,
num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em
tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas
alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se
chocam como pouca coisa.
Quantas vezes os tenho ouvido dizer a
mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada
das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer prazer material: ‘é o que a
gente leva desta vida’ ... Leva onde? leva para onde? leva para quê? Seria
triste despertá-los da sombra com uma pergunta como esta... Fala assim um
materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda que
subconscientemente, materialista. O que é que ele pensa levar da vida, e de que
maneira? Para onde leva as costeletas de porco e o vinho tinto e a rapariga
casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a
podridão que toda a sua vida foi de latente? Não conheço frase mais trágica nem
mais plenamente reveladora da humanidade humana. Assim diriam as plantas se
soubessem conhecer que gozam do sol. Assim diriam dos seus prazeres sonâmbulos
os bichos inferiores ao homem na expressão de si mesmos. E, quem sabe, eu que
falo, se, ao escrever estas palavras numa vaga impressão de que poderão durar,
não acho também que a memória de as ter escrito é o que eu ‘levo desta vida’.
E, como o inútil cadáver do vulgar à terra comum, baixa ao esquecimento comum o
cadáver igualmente inútil da minha prosa feita a atender. As costeletas de
porco, o vinho, a rapariga do outro? Para que troço eu deles? Irmãos na comum
insciência, modos diferentes do mesmo sangue, formas diversas da mesma herança
- qual de nós poderá renegar o outro? Renega-se a mulher mas não a mãe, não o
pai, não o irmão.
Fernando
Pessoa, in O Livro do Desassossego
Papai Noel no trópico
Ilustração: Natalia Forcat
Meu
avô era aquilo que os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um
perdedor. Nada do que fazia dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a
pequena fortuna que recebera de herança; fizera um investimento maluco qualquer
e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de tudo para sobreviver; foi
comerciante, foi corretor de imóveis, foi vendedor de seguros, foi motorista
... Até a astrologia experimentou, mas teve de encerrar a carreira depois que
uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena
rua. De desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele
casou. Com a mulher ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência
admirável, e encarava com bom humor as extravagâncias e os insucessos do
marido. Tiveram oito filhos porque meu avô, além de tudo, considerava-se um
patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer. A família sobrevivia,
principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas clientes na
alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava
arranjando um bico aqui outro ali.
Um
dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante
relativamente próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria
diante da loja, com o traje vermelho característico, convidando os transeuntes
a entrar no estabelecimento. A princípio, vovô rejeitou a proposta, com
indignação, inclusive: o que é que você pensa que sou, posso ser pobre mas
tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa nenhuma. Mas aí o homem
mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco. Era mais do que
lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria oferecer
um Natal decente à tribo. Aceitou.
E
se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo,
rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba,
precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era
igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só
lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha.
Esta
semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes,
e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto,
cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de
renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada
no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros
presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.
Ninguém
lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito.
Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da
encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na
cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E
vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria.
Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia
de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa
coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Polo Norte;
teria, portanto, de usar roupas quentes.
—
Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse
papel só de camiseta?
Pergunta
retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria
aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não
será agora que as coisas mudarão.
Vovó
tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido
uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por
causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a
lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais
irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por
qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada. Vovô já era um
homem idoso, beirava os setenta, e a sua saúde não era das melhores; ela temia
que aquilo acabasse prejudicando o homem. Chegou a sugerir que ele parasse de
vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não podem se aposentar as pessoas
que fazem o papel de Papai Noel? Uma idéia que vovô repelia, indignado. Não era
homem de abandonar a luta.
Mas
os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um
acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado
era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia
coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a
lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:
—
Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.
Era
a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não:
afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu
papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro.
—
Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa,
continuou:
—
Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que
responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais
velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
Meu
pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento
fantasioso. De modo que não hesitou:
—
Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a
fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e,
pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu
os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil
sorriso.
—
Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.
Meu
pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse
pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava
falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:
—
Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?
Não
quero ser mais o Papai Noel. Não aguento aquela roupa, sabe? Não aguento. Você,
que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas
gostarão disso. E eu poderei morrer em paz.
Calou-se,
exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a
custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez
para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.
A
melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois
faleceu.
A
consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os
jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma
das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
O
pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como
ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura
talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O
cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma
família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe
importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança
de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a
casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E
foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma
roupa de vovô.
Agora,
já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me
homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas
preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo
passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa
usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda
inteiramente branca.
Como vovô, papai foi progressivamente
detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela mesma razão: a roupa é quente
demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante
que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de
vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e
conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa
vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma
experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o
calor.
Moacyr
Scliar, in revista e, editada pelo SESC - SP, em
dezembro de 2003, nº 06, ano 10.