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sábado, 31 de agosto de 2013
Como nasce uma história
Quando
cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto
andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.
—
Sétimo — pedi.
Eu
estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as
secretárias daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que,
desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as celebrações.
A
porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que
dizia:
É expressamente proibido os funcionários,
no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.
Desde
o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do
infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser
rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de
verbo. O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos
casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo,
impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava.
Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro
de concordância.
Mas
não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal
aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um
escritor que se preza.
Ah,
aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria!
Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de
aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples
aviso como este:
É expressamente proibido os
funcionários...
Eu
já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de
verbos e regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a
validade de uma proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do
lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e
portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse
subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso:
. . . no ato da subida, utilizarem os
elevadores para descerem.
Qualquer
um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste
aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu
ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer
isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição:
É proibido subir para depois descer.
É proibido subir no elevador com intenção
de descer.
É proibido ficar no elevador com intenção
de descer, quando ele estiver subindo.
Descer
quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que
experimente, para ver só. Tem de ser bem simples:
Se quiser descer, não torne o elevador
que esteja subindo.
Mais
simples ainda:
Se quiser descer, só tome o elevador que
estiver descendo.
De
tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava
de óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer
absolutamente nada:
Se quiser descer, não suba.
Tinha
de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor.
Foi
quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me
destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro.
—
Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei.
O
ascensorista protestou:
—
Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
Os
outros passageiros riram:
—
Ele parou sim. Você estava aí distraído.
—
Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou
o ascensorista.
—
Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso.
Ele
abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram.
—
Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir
até o último andar e
na volta descer parando até o sétimo.
—
Não é proibido descer no que está subindo?
Ele
riu:
—
Então desce num que está descendo.
—
Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador
vem só até o décimo quarto.
—
Para subir. Para descer, sobe até o último.
—
Para descer sobe?
Eu
me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo
seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse
descendo.
Que
tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara
do ascensorista, recebendo-me a rir:
—
O senhor ainda está por aqui?
E
fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15
minutos de atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma
delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar:
— Quando cheguei ao edifício, tomei o
elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que
dizia a tabuleta no alto da porta.
Fernando
Sabino, in A volta por cima
O Teatro Mágico - Amanhã... Será?
Se a aliança dissipar...
e sentença for só desamor!
a tormenta aumentará!
Quando uma comunidade viva!
Insurrece o valor da Paz,
endurecendo ternamente!
e sentença for só desamor!
a tormenta aumentará!
Quando uma comunidade viva!
Insurrece o valor da Paz,
endurecendo ternamente!
Todo bit,
byte , e tera..
será força bruta a navegar,
será nossa herança em terra!
será força bruta a navegar,
será nossa herança em terra!
Amanhecerá!
De novo em nós!
Amanhã, será?
De novo em nós!
Amanhã, será?
Amanhecerá!
De novo em nós!
Amanhã, será?
De novo em nós!
Amanhã, será?
O
"post" é voz que vos libertará.
Descendentes tantos insurgirão.
A arma, o réu, o véu que cairá.
Cravos e Tulipas bombardeiam,
um jardim novo se levantará.
O Jasmim urge do solo sem medo.
Descendentes tantos insurgirão.
A arma, o réu, o véu que cairá.
Cravos e Tulipas bombardeiam,
um jardim novo se levantará.
O Jasmim urge do solo sem medo.
O sol reclama
no Oriente.
Brada a lua que ilumina.
Rebelando orações e mentes.
Brada a lua que ilumina.
Rebelando orações e mentes.
Amanhecerá!
De novo em nós!
Amanhã, será?
De novo em nós!
Amanhã, será?
A vida é dura
“Às vezes – respondeu Nietzsche -, os
mestres precisam ser duros. As pessoas precisam receber uma mensagem dura,
porquanto a vida é dura e morrer é duro.”
Irvin
D. Yalom, in Quando Nietzsche chorou
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
O homem e as coisas
“Quem conhece o solo e o subsolo da vida,
sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são
ricos de ideias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as
reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais
interessantes fenômenos da terra.”
Machado de Assis,
in Quincas Borba
Cem anos de perdão
Fonte da imagem: Google
Quem nunca roubou não vai me entender. E
quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena,
roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas
dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu
e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes.
"Aquele branco é meu." "Não, eu já disse que os brancos são
meus." Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades,
olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras
de "essa casa é minha", paramos diante de uma que parecia um pequeno
castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem
ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava
uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com
admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então
aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria,
ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por
ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam
moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do
sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e
raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa,
havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar
nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em
mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era,
raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu
papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro,
vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o
portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido.
Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse
passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os
canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Para um
instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente
começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue
dos dedos.
E,
de repente - ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também
de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a
rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe
da casa.
O
que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a
para casa, coloquei-a num copo d'água, onde ficou soberana, de pétalas grossas
e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se
concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi
tão bom.
Foi
tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo:
a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na
mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me
tirava.
Também
roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma
sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca
cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas
pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes
para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades,
mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o
úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura
demais com os dedos que ficavam como ensanguentados. Colhia várias que ia
comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo:
ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo,
são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no
galho, virgens.
Clarice
Lispector, in Felicidade clandestina
Paixões
“A parte que nos dirige e manda na tua
alma seja indiferente ao movimento, doce ou violento, que a tua carne sente;
não se imiscua nele, mas se limite a si mesma e mantenha essas paixões nos
lindes do corpo. Quando se propagam à inteligência por efeito da simpatia que
religa umas às outras as partes da pessoa, pois a pessoa é indivisa, então não
devemos tentar opor-nos à sensação, fenômeno natural. Mas quanto a saber se é
um bem ou um mal, não se meta nisso a parte que nos dirige.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
Prisão azul
Patas
macias sobre folhas mortas. Ao atravessar num salto a janela aberta o tigre
sabia muito bem que o lenhador tinha saído. O bebê de dois anos estava sentado
no chão, brincando. Sozinho, sozinho. O tigre se aproximou cauteloso e quando a
criança viu aquele cachorrão rajado abriu com espanto dois olhos azuis, dois
lábios sorridentes, dois bracinhos. O tigre começou pelos braços. Depois
devorou o resto da criança e tratou de voltar à floresta.
Suponha,
agora, que esse tigre cresceu, deixou de comer criança e relembra um dia como
havia devorado o filho do lenhador. Um sorriso estranho paira sobre sua cara,
sorriso no qual seu orgulho tigrino só permite que se manifeste um tiquinho de
remorso. O resto do sorriso é a pura lembrança da carne tenra da criança, é
desprezo pelo lenhador estúpido que deixou a janela aberta — uma completa orgia
de satisfação consigo mesmo.
Foi
com um sorriso assim (e há sorrisos dificílimos de descrever) que o amigo do
homem desaparecido se aproximou da janela do seu apartamento tendo na mão o
livro que o desaparecido dedicara a ele: "Para você, meu grande
amigo". O amigo olhou lá fora o mar que ia além da praia de Copacabana e
que flambava ao sol do meio-dia como uma poncheira acesa. Era quase um milagre
a capacidade que tinha o Rio de dar às pessoas uma sensação de bem-estar, de
saúde. O desaparecido também amava o Rio. Curioso como ele tinha desaparecido
de forma tão absoluta. Evaporou-se. Soube-se depois da sua morte que ele
passara os últimos dez anos de vida nas brenhas de Goiás. Ninguém sabia ao
certo de que modo morrera. O manuscrito do livro tinha sido encontrado no meio
das coisas dele, o manuscrito em cuja primeira página aparecia a dedicatória a
ele, o amigo. O sorriso de tigre regenerado voltou à cara do homem que lembrava
o amigo: "Para você, meu grande amigo".
Antes
de sumir, o desaparecido frequentemente ria de si mesmo. Diferenças de grau, só
de grau. Diferenças de espécie são um absurdo. Mesmo quando muda, a espécie
muda gradualmente, portanto é válido o princípio. Veja-se, como exemplo, a
sensação que às vezes tomava conta dele em plena rua e que ele chamava de pedra
de contato com a realidade: isso acontecia com todo o mundo. Só que com ele a
frequência e a intensidade com que acontecia eram muito maiores. Parecia uma
bolha a inchar, inchar e doer. Perguntara a uma porção de pessoas se acontecia
com elas de repente, no meio da rua e em hora de movimento, começar subitamente
a sentir a estupidez incompreensível de todo aquele ir e vir. Sim, acontecia.
Mas ficavam todos surpreendidos e faziam cara de dúvida quando ele lhes
perguntava se sentiam aquilo a ponto de parar no meio da multidão; de olhar um
lado para o outro, tentando entender o que estava acontecendo; de seguir
alguém, para descobrir onde estava indo e para resolver o mistério de tanta
pressa; de logo depois fazer o mesmo em relação a outra pessoa; de olhar
angustiado aqueles arroios humanos que não corriam para nenhum mar comum e sim
para lagoas isoladas, piscinas, poças d'água; de segurar com ambas as mãos a
cabeça que doía e correr para o meio da rua sem pensar nos carros que passavam
rápidos. Não, isso era um exagero e aliás dava para sentir, em todos aqueles
que interrogava, que nem acreditavam que ele vivesse momentos assim. Eram
pessoas que não acreditavam sequer em diferenças de grau.
—
Deve ser sua imaginação, diziam com um sorriso, mas que é interessante não tem
dúvida. Aliás, hoje em dia está até na moda uma certa morbidez, acrescentavam,
sem saber que estavam usando uma arma muito antiga e possivelmente necessária.
A
verdade pura e simples é que ele só fazia essas perguntas com a honesta
intenção de obter uma resposta, de descobrir alguma coisa a respeito da pessoa
com quem falava, ou, talvez mais ainda, sobre ele mesmo. Já lhe bastava, e
muito, o quebra-cabeça representado por todos aqueles desconhecidos que ele
tinha ímpetos de parar e interrogar sem mais nem menos no meio da rua.
Uma
coisa, porém, o preocupava mais que qualquer outra na véspera do dia em que
desapareceu. Aquela sensação que nas ruas apinhadas de gente acabava quase em
angústia, pois envolvia estranhos, na sua própria vida íntima, privada, acabava
em puro contentamento. Quando lhe aparecia um problema especial a resolver, ele
o encarava corajosamente, sem evasões ou truques, pois sabia de antemão qual
seria o resultado. Com método, pesando prós e contras, considerando todas as
consequências, chegava à própria e nua raiz do problema... e então tudo se
evolava, se desfazia no ar, e ele entrava num estado de puro e neutro prazer,
um prazer branco, luminoso, para lá do pensamento. Como se fosse entrando com
cautela mas com passo firme numa floresta densa na qual, chegado ele ao ponto
mais escuro, todas as árvores ainda em volta tombassem ao mesmo tempo, no maior
silêncio; e só permanecesse no mundo a luz ofuscante do sol. O que o preocupava
na véspera do dia em que desapareceu é que ele tentava, mas ainda não haviam
conseguido, concentrar todas as suas faculdades num problema sério.
Por
que tão sério? Porque envolvia o amigo. Não por causa de minha mulher,
continuou o homem que desapareceu, determinado agora a pensar seu problema até
o fim. Para mim minha mulher é feito um sapato velho, cambaio. E meu amigo sabe
muito bem disso, o que apenas torna a coisa toda mais incompreensível. Um tolo desejo
de aventura? Nunca, jamais. Meu amigo sabe que eu não abandono minha mulher
porque ninguém propriamente abandona um par de sapatos velhos. A gente
simplesmente os esquece em algum canto. Ele me diria, se fosse o caso, que
havia, que há alguma coisa entre os dois — e pronto.
—
Usei aquele seu sapato velho outro dia, ele diria. Tudo bem. São inúmeros os
caminhos abertos neste mundo mesmo para quem caminhe descalço. Que sentido
haveria em criar um caso sobretudo quando eram tão velhos os sapatos? Não, ele
está cansado de conhecer meus sentimentos e já teria me falado a respeito.
Ou... Caso fosse verdade (o chato é que tanta gente dizia que era que ele se
obrigava a pensar tanto sobre tal bagatela), só uma explicação era possível:
meu amigo de fato se apaixonou por minha mulher e simplesmente não tem coragem
de me dizer. E quem sabe por minha exclusiva culpa? Ela para mim tem tão
escasso valor, e isso eu disse ao amigo tantas vezes, que lhe falta coragem
para dizer que passou a amar uma pessoa tão depreciada. Sim, talvez fosse isso.
E o homem prestes a desaparecer sorriu, meio envergonhado de pensar que estava,
ainda que sem intenção, fazendo uso do amigo: seria de todo o cúmulo da amizade
se o amigo pensasse em ficar definitiva e legalmente com minha mulher. Aqui se
apagou no seu rosto o vago sorriso de até agora. Quem sabe, Deus meu? O amigo
sabe como é grande meu amor por Maria Auxiliadora. Será que lhe ocorreu a ideia
de se sacrificar por mim? Não, nem eu permitiria nem ele... Eu só quero Maria
Auxiliadora como a tenho agora, mesmo porque a gente não se casa com uma mulher
assim, a gente simplesmente aceita a luz e o calor, banho de sol no coração do
inverno... Ela é quase a Luz! Aquela claridade. A floresta que se deita no
chão. Era precisamente quando chegava ao ponto em que a floresta se tragava a
si mesma que Johann Sebastian começava a passar a música para o papel, aquela
música que se encerrava de repente de forma inesperada, mas que podia ter
continuado para sempre, eterna, já que não tinha fim e ele apenas aparentava ou
fingia ter chegado ao fim porque chegara isto sim ao fim do papel pautado e
porque sabia que ninguém podia suportar sem enlouquecer o luzir permanente
daquela Luz em música.
O
homem que ia desaparecer perdeu-se nas profundezas do seu problema... Ao voltar
a si passou o lenço na testa úmida. A inexistência de todos os problemas. O
compromisso que tinha assumido que cuidasse de si mesmo. Ele ia, isto sim, ver
Maria Auxiliadora. Tomou o ônibus e no caminho deixou-se invadir pelo salgado travo
de onda e de alga que subia das praias de alva areia, a infinita, angustiada
fieira de areia que é a única coisa a impedir que as montanhas azuis e o mar
azul se dissolvam num único e irreparável azul. O ônibus beirou primeiro a
praia de Santa Luzia, depois Flamengo, Botafogo, as vastas areias brancas de
Copacabana, Ipanema, Leblon. Quando parou no fim da linha o homem que ia
desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morava Maria
Auxiliadora. Aproximou-se das tábuas brancas do portão, espantadas de vê-lo
àquela hora do dia. E lá estava a fascinante casa branca, feito um brinquedo
esquecido na grama. Entrou, atravessou o jardim e espiou pela janela da sala de
estar. Não viu Maria Auxiliadora, que ainda estaria dormindo. Abriu a porta da frente
e ia atravessar a sala, em direção ao quarto de dormir, quando ouviu vozes e
riso que vinham de lá. Ia chamar Maria Auxiliadora em voz alta, alegre, mas se
conteve e andou até a porta. Ouviu as únicas duas vozes que realmente conhecia
bem. Pela única e última vez em sua vida curvou-se até o buraco da fechadura.
As venezianas estavam cerradas. Só havia no quarto aquela luz baça e enjoativa
na qual se escondem aqueles que preferem não encarar nem o amor. O homem que
naquele momento já quase havia desaparecido ouviu a voz do amigo, seguida do
riso de Maria Auxiliadora.
—
Pois é. Quanto mais ele acha que há alguma coisa entre a mulher dele e eu,
menos consegue adivinhar que...
O homem que desapareceu saiu da sala de
estar pé ante pé, fechou sem ruído a porta, passou em silêncio pelo portão de
tábuas brancas e se foi. Como um ladrão. E qualquer policial que o pegasse
naquele momento teria a certeza, sem lhe fazer qualquer pergunta, que o ladrão
tinha encontrado joias, joias do mais alto preço, que ninguém imaginaria
pudessem estar guardadas numa casa tão pequena e simples.
Antonio
Callado, in O homem cordial e outras histórias
Constatação
Corrente de amanhãs, vício de auroras.
Outro dia, outro dia, outro, por quê?
Agoras a exigir outros agoras,
Barco sem mapa, cais que não se vê.
Outro dia, outro dia, outro, por quê?
Agoras a exigir outros agoras,
Barco sem mapa, cais que não se vê.
No alto, a bandeira rota, e o lema: até.
Tudo incompleto. As horas, mães das horas,
Partindo inúteis. Novas, as escoras
Certas que a torre lhes cairá ao pé.
Tudo incompleto. As horas, mães das horas,
Partindo inúteis. Novas, as escoras
Certas que a torre lhes cairá ao pé.
Ser fragmento, ser caco, ser a corda
Que não se amarra em nada, o elo partido,
O escorrer puro, o rio sem sentido,
Que não se amarra em nada, o elo partido,
O escorrer puro, o rio sem sentido,
A mão que segue adiante e nada aborda,
O que não é daqui, o que é a loucura
E o orgulho de seguir na selva escura.
O que não é daqui, o que é a loucura
E o orgulho de seguir na selva escura.
Alexei
Bueno
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
História de uma letra, de Cecília Meireles
Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome
com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de
explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a
verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro
lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos
documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da
tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as
atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão
arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em
condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor,
que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não
foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A
história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo
escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma
pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural
é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por
ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há
maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc...
As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas,
de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação,
que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A
pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em
perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua
como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado,
apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo
andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões
secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo,
se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de
prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa,
sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze,
mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos
principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas superstições,
pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com
as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na
ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as
pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre
pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem
algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas
outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas.
Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos
seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais,
chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto
de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o
simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma
proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência,
umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos,
com todas as suas inesperadas trajetórias.
E há os que leem nas
linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado,
o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa
estrela...
Crônica completa aqui.
A língua girava no céu da boca
A
língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.
O
sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre.
Eu, ela, elaeu.
Os
dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação
e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos,
fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia,
emancipados de nós.
A
custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência.
O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.
Carlos
Drummond de Andrade, in O amor natural
Anjos, demônios ou bestas
“O espírito do homem é como um rio que
procura o mar. Represem-no e aumentarão a sua força. Não responsabilizem o
homem pelas suas explosões devastadoras! Condenem antes a força da vida! O
espírito que nos anima pode assumir as mais diversas formas: tornar-nos
semelhantes a anjos, a demônios ou a bestas. A cada um a sua escolha. Nada
barra o caminho ao homem para além das fantasmagorias dos seus medos. O mundo é
a nossa casa, mas teremos ainda que a ocupar; a mulher que amamos está à nossa
espera, mas não sabemos onde encontrá-la; o atalho que buscamos está sob os
nossos pés, mas não o reconhecemos. Quer sejamos deste mundo por muito ou pouco
tempo, os poderes por explorar são ilimitados.”
Henry
Miller, in O Mundo do Sexo
terça-feira, 27 de agosto de 2013
O que é jornalismo corajoso
Ela defendeu corajosamente JB, aspas
Muitas vezes
leio o seguinte comentário num texto de articulistas da grande mídia: “Como
você foi corajoso!”
Quase
sempre a alegada coragem é uma pancada no governo.
Pois então eu gostaria de discutir o que
é coragem no jornalismo contemporâneo.
Bater no governo,
em democracias, não traz risco nenhum. Portanto, não implica, também, bravura.
Uma
coisa seria criticar Pinochet. Outra é criticar Dilma.
Muitos
jornalistas construíram reputação de corajosos batendo em presidentes, ou
ministros, sem risco nenhum.
“Você
viu como Fulano bateu no Mantega? Que coragem!”
Há uma única situação de real coragem no
jornalismo tal qual conhecemos hoje: criticar alguém de quem o dono goste. Ou
elogiar alguém de quem ele não goste.
O resto é silêncio, como escreveu
Shakespeare.
Faça o teste. Veja, por exemplo, se Jabor
atacou algum amigo da Globo. Ou Merval. Ou Míriam Leitão. Ou tantos outros.
A esse alinhamento automático com os
donos dei o nome, há algumas semanas, de verdadeiro “jornalismo chapa branca”.
É a independência mascarada. E a
liberdade de dizer sim aos patrões: os bravos colunistas são livres desde que
reproduzam os interesses das corporações para as quais trabalham. A esse fenômeno
Noam Chomsky deu o nome de “liberdade para dizer sim”.
Embora aqui e ali discordem, as grandes
empresas jornalísticas têm interesses econômicos comuns, no geral.
Todas elas desejam a permanência de seus
privilégios. Querem a reserva de mercado que condenam em outros setores, por
exemplo.
Querem que o papel que utilizam continue
isento de imposto. Querem uma legislação tributária frágil o bastante para que
sonegar seja um ato banal e impune.
A Globo está no meio de um escândalo
fiscal espetacular. Há, no caso, uma mistura de trapaça descarada e esperteza
detectada.
Para não pagar imposto, como todos
sabemos, a Globo tratou a compra dos direitos da Copa de 2002 como se fosse um
investimento no exterior. Por muito menos que isso o presidente do Bayern de
Munique está prestes a ser preso. E Berlusconi, na Itália, só escapa das grades
por ser septuagenário.
Descoberto o golpe, a Globo foi multada.
Em dinheiro de 2006, a empresa devia mais de 600 milhões de reais à Receita
Federal.
Para coroar o episódio, uma funcionária
da Receita foi presa por tentar fazer sumir a documentação do caso.
Se ela obtivesse sucesso, a Globo estaria
livre de uma dívida superior a 600 milhões de reais.
Parece inacreditável, mas é verdade.
Que jornalista da grande mídia tratou do
assunto? Descontemos a turma da Globo, por razões óbvias.
Mas e a Folha, com seu autoalardeado
espírito combativo e rabo preso com ninguém?
Apenas para efeito de especulação,
imaginenos que a News International, de Murdoch, fizesse algo parecido no Reino
Unido.
As publicações de Murdoch talvez
tentassem minimizar o caso, mas a concorrência disputaria avidamente cada furo
sobre o assunto para estampar na manchete.
E a opinião pública estaria num estado de
torrencial indignação, como quando se descobriu que um tabloide de Murdoch
invadira o celular de uma garota de 13 anos sequestrada e morta.
São as virtudes da concorrência: eu me
calo conforme minha conveniência, mas meu concorrente me investiga, e o
interesse público é protegido.
O que ocorreu no Brasil no caso da Globo?
Num determinado momento, cheguei a falar,
pelo Facebook, com o editor executivo da Folha, Sérgio Dávila. “Escuta, vocês
não vão dar nada?”
A Folha deu uma matéria que pode ser
classificada como miserável.
Depois, o assunto sumiu fo jornal, como
se tivesse sido resolvido. Também Dávila sumiu: deixou de responder a minhas
mensagens no Facebook.
Se algum colunista da Folha – Clóvis
Rossi, Eliane Cantanhêde ou quem seja – tivesse tratado do assunto mereceria
palmas pela coragem.
Mas todos eles sabem que não devem
escrever aquilo que seus patrões não querem que seja escrito.
O que terá acontecido no caso da Folha, o
leitor pode se perguntar. Trabalhei 25 anos em grandes corporações, e posso
imaginar. Um telefonema trocado entre donos resolve tudo.
É possível que, com alguma delicadeza,
alguém da Globo tenha lembrado alguém da Folha que a Globo poderia publicar
histórias que a Folha não gostaria de ver publicadas.
Uma breve conversa telefônica e o
interesse público desaparece sob o peso dos interesses privados.
Coragem, para retomar o tema deste texto,
é sair da zona de conforto dos artigos que você sabe que seus patrões irão
aplaudir.
Dias atrás, Míriam Leitão defendeu
Joaquim Barbosa de um ataque – inusualmente corajoso, aliás – de Noblat.
(Noblat é experiente o bastante para saber que mais um prova de independência
dessas e sua vida na Globo fica dramaticamente ameaçada.)
Míriam
sabia que os Marinhos ficariam felizes com sua defesa de JB. Logo, coragem só
teria havido se ela reforçasse os pontos levantados por Noblat contra as
grosserias de JB.
O que Míriam fez é um exemplo acabado
de “jornalismo chapa branca”. Mas, como numa ação de merchandising, o
leitor pode ser enganado e achar que ela demonstrou grande coragem.
Em junho, Jabor fez uma ação memorável de
jornalismo chapa branca. Atacou ferozmente os protestos, por dar como certo que
os Marinhos eram contra.
Quando ele viu que não, voltou
pateticamente atrás. Chapa branquíssima.
A internet ajudou a desmascarar o novo
jornalismo chapa branca.
Com o crescimento das audiências na
internet e a queda das audiências na mídia tradicional, em breve o jornalismo
digital será forte o bastante para exigir esclarecimentos cabais como o caso de
sonegação da Globo.
O interesse público agradecerá.
Paulo Nogueira, in www.diariodocentrodomundo.com.br
Mundo Pequeno - IV
Caçador, nos barrancos, de rãs
entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.
Manoel
de Barros
Nossa bondade
“Corremos há muito tempo atrás de nossa
própria bondade. Às vezes, acreditamos segurá-la, mas ela nos escapa na mesma
hora. Ela é como o pedaço de sabão que o palhaço tenta pegar andando em volta
de um picadeiro de circo.”
Jean-Claude
Carrière, in Fragilidade
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Às apalpadelas
"De um modo geral, o homem tem de
andar às apalpadelas; não sabe de onde veio nem para onde vai, conhece pouco do
mundo e menos ainda de si mesmo."
Goethe
Preparativos de uma morte anunciada
— Onofre, acabei
de pegar teu exame. O médico disse que você vai morrer em uma semana.
— Hein?! O quê?!
— Você morre
terça feira que vem. Dia 25. Dia do soldado.
— Mas... que
coisa horrível!
— Horrível por
quê? Melhor que morrer, sei lá, no dia do Índio. No dia da Secretária. No dia
do Ginecologista.
— Meu Deus! Vou
morrer em uma semana e você me conta assim, na bucha, sem me preparar?
— Deixa de ser
infantil, Onofre. Você não é prato de bacalhau pra eu te preparar.
— Uma semana...
Eu estou chocado! Se bem que...
— O quê?
— Quer saber? De
certa forma foi bom saber logo. Assim aproveito o tempo que resta. Vou viajar,
beber e comer tudo que eu tenho direito.
— Aí é que está,
Onofre. Você vai ter que fazer dieta.
— Dieta?!
— Pra emagrecer.
O caixão que a gente tem não é seu número. Com essa barriga, você não entra
naquele ataúde de jeito nenhum. Só entra de lado. Você quer ser enterrado de
lado, Onofre?
— Claro que não!
Mas... não dá pra trocar de caixão?
— É da loja do
teu primo. Fui do médico direto pra lá, e foi o que ele me deu. Ele só trabalha
com modelagem única e a gente não tem dinheiro pra comprar outro.
— Mas não é
justo! Tenho que fazer regime na última semana da minha vida?
— E ginástica. E
cooper. Talvez até balé — que só regime não vai dar conta dos 15 quilos que
você precisa perder. Já te matriculei numa academia.
— Mas...
— Outra coisa.
Não esquece de começar a convidar as pessoas pro velório.
— Eu?!
— É, ué. Não é
você que vai morrer? Era só o que me faltava... você é que vai morrer e eu é
que tenho o trabalho... Aliás, por falar em trabalho, arranja um bico extra
essa semana pra conseguir dinheiro — pra pagar a dívida do mercado.
— Peraí...
regime, ginástica, e agora... trabalho extra? Eu estou doente, estou cansado!
— Deixa de
frescura, Onofre. Daqui a uma semana você vai ter tempo de sobra pra descansar.
E se eu não pagar essa dívida, o seu Joaquim disse que me mata.
— Ele disse isso?
— Disse. E pode
me matar em menos de uma semana. E aí eu vou ser enterrada no seu caixão. E
você fica sem dinheiro pra comprar outro caixão. E aí você não vai ser
enterrado. Vai ficar por aí, pelas ruas, em processo de decomposição.
— Meu Deus!
— Mais uma coisa.
Você vai ter que visitar a tia Augusta.
— Ah, não!
Visitar a tia Augusta não! Estou brigado com ela, você sabe disso.
— Vai na quinta
feira. Já marquei.
— Assim não dá!
Eu, pensando que ia passar uma semana boa, tranquila, esperando pra morrer...
mas nada. Já vi que vai ser um inferno. E se eu não for na casa da tia Augusta?
— Ela vai se
sentir culpada por não ter feito as pazes antes de você morrer. E vai acabar
morrendo de desgosto.
— E eu com isso?
Não quero saber.
— Não quer saber?
Acontece que está provado que uma pessoa leva, em média, uns seis meses pra
morrer de desgosto.
— E daí?
— Daí que daqui a
seis meses é o casamento da tua filha. E se a tua tia morrer, a gente vai ter
que adiar o casamento. E se a gente adiar é capaz do noivo desistir de casar.
Se ele desistir, tua filha vai ficar arrasada e pode sair por aí namorando o
primeiro que aparecer na frente. E o primeiro que aparecer na frente pode ser
um drogado. E tua filha pode virar uma drogada. E daí para o crime e para a
prostituição é um passo. E daí ela pod...
— Chega! Eu vou
visitar a tia Augusta!
— Ótimo.
— Que mais? O que
mais você quer que eu faça nessa semana? Já tá perdida mesmo...
— Mais nada. Só
cavar sua cova — pra economizar no coveiro, que coveiro está saindo pela hora
da morte.
— Deixa eu
anotar, senão esqueço... com tanta coisa... Cavar a cova.
— E não esquece
de, no dia da tua morte, ir pro lugar do velório cedo. Pra morrer lá mesmo...
pra gente também economizar no transporte do corpo. Vai de ônibus.
— Mas...
— De preferência
atrás, agarrado no pára-choque, pra não pagar.
— É uma boa... No
pára-choque. Só uma coisa. Uma dúvida.
— Fala.
— E se, por um
acaso... eu não morrer?
— Tá maluco,
Onofre? Depois desse trabalhão todo? Nem pensa nisso! Esquece essa
possibilidade!
— É que de
repente...
— De repente uma pinoia! Vê lá, hein,
Onofre? Não vai me fazer a gracinha de aparecer no teu velório... vivo!
Elisa Palatnik
Dos leitores
“Há leitores que acham bom o que a gente
escreve. Há outros que sempre acham que poderia ser melhor. Mas, na verdade,
até hoje não pude saber qual das duas espécies irrita mais.”
Mário
Quintana
O cronista é um escritor crônico
O
primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16
ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os
jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São
Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico
literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal
do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um
escritor crônico.
O
que é um cronista?
Luís
Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo
regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem
ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa
ou espremidas na sala de aula.
Já
andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com
estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna,
no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto
ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o
cronista estilita acaba virando um estilista.
O
cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há
uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão
entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e
defende temas e ideias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal.
Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem
envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade
pública.
Que tipo de crônica escrevo? De vários
tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas
sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas
que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua
atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é
crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo
tempo pairar acima dele.
Affonso
Romano de Sant’Anna
domingo, 25 de agosto de 2013
Canção de homens e mulheres lamentáveis
Esta
noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.
Quem seria capaz
de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer
lembrar, o rosto?
Quem
seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o
inimigo, e dizer:
—
Estou me sentindo assim, assim, assim...
A
humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe
onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os
deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das
jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens
raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.
Nesta
noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem
importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu
nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria
ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido
como sua nudez (dela). Não há diferença.
E
por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para
apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e
você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano.
Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em
notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família
Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".
Há
poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta
que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das
escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente
piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte,
mesmo em combate, é burlesca.
Uma
pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia
discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido
um tempo enorme.
Ontem
à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que,
pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos
e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
—
Que é que houve? O senhor está mais velho?
Tirei
os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:
—
O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.
Tinha
pensado que, sem os óculos...
Não
estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo,
simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta
chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado,
as mais tristes.
Só há uma vantagem na solidão: poder ir
ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem
sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
Antônio
Maria, in Com vocês, Antônio Maria