Paradoxos

“Você pensa honestamente, por isso acaba por odiar o mundo inteiro. Você detesta os crentes porque a fé é um indicador de estupidez e ignorância; e detesta os descrentes porque não têm fé nem ideal. Odeia os velhos pelas suas mentalidades ultrapassadas, e os novos pelo seu liberalismo.”
Tchekhov

Benefício


- Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno.
Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.
- Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.
- Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das cousas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Loucura escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há-de ter nos olhos algum indício especial de satisfação.
Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá uma certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma cousa; remira-se a miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Amor: sem sofrimentos

“Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer.”
Antoine de Saint-Exupéry

terça-feira, 30 de julho de 2013

Livro revela atestado de loucura do artista Bispo do Rosário e sua carreira de lutador

Arthur Bispo do Rosário: Arte Além da Loucura

Um detalhe chama a atenção no primeiro prontuário médico escrito sobre Arthur Bispo do Rosário. Descrito como "calmo, de olhar vivo", com "ares de importância" e "fisionomia alegre", o paciente também podia associar "ideias com extravagância".
Não parece o diagnóstico de um louco, mas esse documento atestou loucura suficiente para que o artista sergipano, que morreu aos 80, em 1989, ficasse internado primeiro no hospício da Praia Vermelha e mais tarde na Colônia Juliano Moreira, no Rio.
Entre outros fatos, "Arte Além da Loucura" dá detalhes sobre o surto que levou Bispo do Rosário a ser trancafiado num hospício e sobre sua vida antes, como lutador de boxe e oficial da Marinha.
São dados que dissolvem uma série de mitos, em um momento de redescoberta da obra de Bispo do Rosário, exaltado como figura central da última Bienal de São Paulo e ocupando agora uma sala na Bienal de Veneza, com seus mantos e estandartes.
"Ele não vivia em estado permanente de delírio, sabia das coisas", diz Morais, em entrevista à Folha. "Essa ideia meio romântica da loucura não existe. Ele sabia o que estava fazendo o tempo todo e se tornou uma figura poderosa dentro do hospital. Há uma ordem interna muito forte no trabalho dele."
Mesmo que não falasse sobre o passado, detalhes de sua vida estão documentados nos estandartes que bordou: da infância numa fazenda de cacau na Bahia à ida ao Rio como marinheiro, passando por sua carreira de pugilista.
São avalanches de nomes escritos em ordem alfabética, os mais importantes bordados do lado de dentro de seu "Manto da Apresentação". Além do nome do pai, Bispo lembrou ali alguns adversários que enfrentou no ringue.

LOBO DO MAR

Não eram histórias inventadas. Jornais da época narravam de forma assídua os embates do lutador que nunca foi nocauteado e ficou conhecido como "lobo do mar", ou "marujo de bronze", dotado de "dureza granítica".
Em 1929, reportagem do "A Manhã" descreveu sua primeira luta profissional como "encarniçada", afirmando que ela "arrancou aplausos pela violência dos lutadores".
Mas depois que um bonde esmagou um osso de seu pé, Bispo deixou o ringue e foi trabalhar como empregado doméstico na casa da família Leone, uma das mais ricas e poderosas do Rio na época.
Humberto Leone, um dos herdeiros do clã, conta que Bispo era vaidoso e se vestia "com luxo", usava gravatas de seda e perfume francês.
Isso até o Natal de 1938, quando teve os três sonhos que o levaram a se apresentar num mosteiro como um enviado divino, que veio à Terra numa esteira de nuvens para impedir que o "espírito malíssimo" aqui chegasse.
Naquele primeiro prontuário, estão descritas suas alucinações, entre elas o sonho de uma "chuva de estrelas", que "explodiam fazendo barulhos incríveis", como se imaginasse o próprio destino de brilhar noutro ringue.
Fonte: www1.folha.uol.com.br/ilustrada

A natureza das coisas, com Flávio José


Oh! chá lá lá lá lá lá lá
Oh! chá lá lá lá lá lá lá
Oh! chá lá lá lá lá lá lá
Oh! coisa boa é namorar

Se avexe não
Amanhã pode acontecer tudo
Inclusive nada
Se avexe não
A lagarta rasteja até o dia
Em que cria asas
Se avexe não
Que a burrinha da felicidade
Nunca se atrasa
Se avexe não
Amanhã ela pára na porta
Da sua casa

Se avexe não
Toda caminhada começa
No primeiro passo
A natureza não tem pressa
Segue seu compasso
Inexoravelmente chega lá
Se avexe não
Observe quem vai subindo a ladeira
Seja princesa ou seja lavadeira
Pra ir mais alto vai ter que suar.

Composição: Accioly Neto

Ambição

"A ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela."
Nicolau Maquiavel

Um disco fundamental da MPB: Catullo, o poeta do sertão

Catullo, o poeta do sertão
Paulo Tapajós (1957)


A imagem do Nordeste brasileiro esteve durante muito tempo estereotipada no Sul do país: para os de baixo, o povo do norte, como eles também chamavam, era uma gente profundamente religiosa, mística, ainda o é, mas também exótica em seus costumes, fazia parte de um Brasil impenetrável e desconhecido, principalmente no final do século XIX e início do século XX. As atenções para seus graves problemas sociais vieram à tona de certa maneira com a publicação do livro Os sertões, de Euclides da Cunha que retrata com fidelidade o embate de Canudos e faz uma interpretação sobre o ser sertanejo.
Fora algumas poucas intervenções governamentais, seja no Império ou no nascedouro republicano, o Nordeste era uma terra de ninguém, pois o país vivia e respirava os ares da “cidade luz tropical”, o Rio de Janeiro, e a cultura pátria era medida pelo que nela se realizava, claro, que outros estados como por exemplo, São Paulo, tinham uma certa influência cultural “civilizatória', mas indiscutivelmente era a então capital do país que puxava o samba enredo da recém criada Escola de Samba Unidos da República Federativa do Brasil.
Mas se o sertanejo nordestino sempre foi um forte em sua luta pela sobrevivência, foi também um obstinado divulgador de sua própria cultura, não deixando ainda que a região figurasse apenas como um apêndice na geografia política do país e sim elemento integrador de uma nação plena de brasilidade, com suas características regionais próprias, mas sobretudo definindo a noção de nossa pluralidade cultural e reafirmando o conceito pleno de nação em sua totalidade. Assim a contribuição do Nordeste iria se somar a de outras regiões e o Brasil poderia descobrir-se sem discussão de mérito, pois a disputa em questão passaria ao largo de preconceitos ou discriminações e serviria como afirmativa de nossa identidade.
Desse modo, a partir do pressuposto da nacionalização de nossa cultura, os temas nordestinos tomam de assento o Rio de Janeiro aproveitando-se da sua importância enquanto caixa de ressonância nacional e passam a ser explorados por artistas e intelectuais vinculados as suas tradições regionais para divulgar o que poucos conheciam, ou fingiam apenas que existia.
Entre esses personagens responsáveis por essa nacionalização/integração nordestina destaca-se Catulo da Paixão Cearense, cuja referência ao valoroso estado nordestino encontra-se apenas no sobrenome, pois nasceu na cidade de São Luís do Maranhão, em 31 de janeiro de 1863. Em 1880 foi residir no Rio de Janeiro com a família. Na capital do império frequentou rodas de estudantes, foi boêmio, estivador, escriturário, mas sobretudo poeta e violonista, atividades que o consagrariam como uma das mais importantes figuras de seu tempo. Acompanhou de perto o crescimento da modinha enquanto gênero de música urbana largamente executada em serenatas, sendo o seu grande impulsionador nos finais do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte.
Como poeta torna-se uma celebridade e o Nordeste, o seu chão, a razão maior de sua poética. Seus livros vendiam-se aos milhares e com eles descortinava um imenso horizonte para uma compreensão maior desse lado do Brasil. Obras como O marrueiro, Sertão em flor, Alma do sertão, Um caboclo brasileiro, Mata iluminada, O milagre de São João, O sol e a lua e muitas outras revelaram liricamente um Brasil que os brasileiros precisavam conhecer. Mas se seus versos eram largamente recitados e conhecidos por todos, suas modinhas, ou as letras que fez para canções alheias, tinham o mesmo sentimento lírico das noites enluaradas inebriadas pelo mágico encantamento das serenatas noturnas da cidade que o abraçou, numa perfeita comunhão entre o sertanejo puro e o urbano boêmio e sentimental. Dois personagens num só, a união perfeita de um Brasil que se mostra por inteiro, sem divisionismos e onde a predominância de uma identificação matriz se une a uma cultura urbana e é essa mistura na medida certa que da o caráter definidor de nosso caráter.
Como modinheiro, Catulo produziu uma obra vastíssima e ajudou a fazer mais felizes as noites de luar de nosso país. Parte dessa sua contribuição à música popular brasileira esta registrada em três LPs produzidos pela gravadora Sinter entre os anos de 1955 e 1959 com interpretações do radialista, cantor e compositor Paulo Tapajós. Em 1957 após o sucesso do primeiro LP em 10 polegadas denominado Luar do sertão, é gravado o disco Catulo, o poeta do sertão, com um repertório de canções representativas do momento áureo da modinha brasileira. Dentre elas destacam-se, Vai ó meu amor ao campo santo e Os olhos dela, com Irineu de Almeida; Clélia, com Luiz de Souza; O poeta do sertãoTalento e formosura, com Edmundo Otávio Ferreira; Rasga o coração e Palma de martírio, com Anacleto de Medeiros.
Todas essas músicas foram gravadas em disco nos primeiros anos do século vinte e embalaram os corações do povo brasileiro. Nelas, o poeta/compositor se deixa entregar por inteiro traduzindo em versos e melodia um momento mágico de nossa cultura musical.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br

Obscuridade?!

“Quando se escreve é não somente para ser compreendido, mas também para não o ser. Um livro não fica diminuído pelo fato de um indivíduo qualquer o achar obscuro: esta obscuridade entrava talvez nas intenções do autor, não queria ser compreendido por qualquer bicho careta. Qualquer espírito um pouco distinto, qualquer gosto um pouco elevado escolhe os seus auditores; ao escolhê-los fecha a porta aos outros. As regras delicadas de um estilo nascem todas daí; são feitas para afastar, para manter a distância, para condenar o “acesso” de uma obra; para impedir alguns de compreender, e para abrir o ouvido aos outros, os tímpanos que nos são parentes.”
Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Campanha Eleitoral, por Maviael Melo


Um senador do estado
passou dessa pra melhor
ou pra outra bem pior
vou relatar o passado
chegando o pobre coitado
na porta do firmamento
São Pedro disse: um momento
tenha calma, cidadão!
faça aqui sua opção
e assine o requerimento.

Pois aqui tem governia
tudo está no seu lugar
e você vai optar
onde quer passar o dia
depois com democracia
me dará sua resposta
fazendo a sua proposta
de ir pra o céu ou pro inferno
viver de túnica, de terno...
do jeito que você gosta!

E então o senador
assinou a papelada
descendo por uma escada
entrou num elevador
e desceu com o assessor
pra o inferno conhecer
para depois escolher
onde queria morar
e qual seria o lugar
que escolheria viver.

e]E no inferno ele viu
o campo todo gramado
verdinho, bem arrumado
como um que tem no Brasil
um homem grande e gentil
disse-lhe: eu sou o cão
muito prazer meu irmão!
aqui você é quem manda
e deu ordens pra que a banda
tocasse outro baião.

Encaminhou a visita
para uma mesa repleta
uma assessoria completa
num alpendre em palafita
uma assistente bonita
cerveja, wisque e salgados.
Dinheiro pros carteados
charutos bons e cubanos
foi relembrando dos anos
e dos acordos fechados.

Encontrou com os amigos
dos tempos áureos de glórias
relembrando as histórias
que já haviam esquecidos
wisques envelhecidos
não paravam de chegar
parecia um marajá
jogando cartas e fumando
mas já estava chegando
a hora dele voltar.

E então no elevador
ele tornou a subir
para então se decidir
e finalmente propor
mas no céu o senador
vê um cenário de paz
com um sereno assaz
anjinhos tocando lira
São Pedro disse confira
escolha e não volte atrás.

Era um silêncio danado
sem wísque e sem cerveja
no máximo uma cereja
e ele já agoniado
disse assim determinado:
já tomei minha decisão
quero ir morar com o cão
pois lá me sinto melhor
não que aqui seja pior
é questão de opinião

São Pedro disse pois bem
pode ir pro elevador
que logo meu assessor
fará o que lhe convém
o senador disse amém
já pensando no sucesso
que seria o seu regresso
para o quinto do inferno
lá também seria eterno
e a tudo teria acesso.

E assim que ele desceu
numa imensa alegria
sentiu logo uma agonia
algo estranho percebeu
atrás desapareceu
a porta do elevador
e o pobre do senador
só via fogo e tortura
deu-lhe logo uma amargura
era um cenário de horror.

Nisso ia passando o cão
deu-lhe uma chibatada
sorrindo em gargalhada
remexendo um caldeirão
e empurrou-lhe um ferrão
deixando a testa ferida
e ele puto da vida
disse: rapaz sou eu,
o senador! Se esqueceu?
Cadê aquela acolhida?

Eu peguei o bonde errado
ou o cabra se atrapalhou
e para cá me mandou
deve ter se enganado
meu lugar é no gramado
jogando golfe e fumando
eu nada estou lhe cobrando
foi você que ofereceu!!!!!
e o wisque? se esqueceu?
eu devo está delirando.

E o diabo a sorrir,
disse-lhe: seja bem vindo
e o que estás me pedindo
eu não vou poder cumprir
quando estivestes aqui
naquela ocasião
não era outra coisa não
também não me leve a mal
foi campanha eleitoral
e eu ganhei a eleição.
Maviael Melo

Um inseto sentimental

A primeira frase da crônica é quase sempre a mais difícil, mas quando as palavras aparecem no papel, a mão que segura a caneta fica mais leve e envereda para um lugar desconhecido...
Mas basta surgir um inseto para mudar toda a história: o movimento da mão é interrompido pelo intruso, que voa em círculos e zoa com insistência, uma picada no pescoço ou no braço pode acabar com a alegria de escrever uma crônica, mesmo sabendo que vou reescrevê-la quatro ou sete vezes; talvez seja melhor espantá-lo com uma revista, ou esperar que ele se canse de girar e zumbir como um louco nesse espaço pequeno.
Pode ser uma fêmea, não sei precisar o sexo dos insetos; não é varejeira, nem abelha ou besouro comum, tem um olhar estranho, e as asas ambarinas revelam uma delicada trama geométrica, que lembra uma teia de aranha.
Deixo a caneta na mesa, pego ao acaso uma revista e tento afugentar o intruso: que ele nos deixe em paz, eu e a ideia da crônica, a mão direita e as palavras, a razão e a emoção, mas o maldito parece zombar de tudo isso e descai do teto numa investida ousada que roça minha testa. Agora está claro que ele quer me perturbar, não há mais silêncio, já me desconcentrou, apagou a ideia da crônica e me deixou como um idiota, segurando uma revista de arquitetura com belos projetos em Guarulhos e no Rio, Artigas e Reidy, os olhinhos cor de ferrugem, patas pretas e um ferrão de fogo, se esse pequeno monstro me picar, adeus à crônica e à leitura de Gogol.
Apago a lâmpada, talvez ele se acalme na penumbra, às vezes a claridade é nociva e a opacidade, necessária. Mal consigo enxergá-lo, é apenas uma serpentina escura dançando no espaço, sigo os movimentos desse voo bêbado e hostil, tento entender meu inimigo e perdoá-lo, antes que a revista o golpeie e ele caia no chão, e logo uma pisada sem piedade e um chute para o pequeno jardim.
Acho que me entendeu, pois voa em silêncio, afasta-se de mim, procura em vão a luz da lâmpada e depois ronda a porta estreita, ali perto da romãzeira florida e da liberdade.
O voo lento pode ser uma trégua, e, pensando bem, o inseto não é tão ameaçador assim; recordo o trançado do desenho das asas, agora os olhinhos perderam o brilho, o ferrão é invisível na penumbra. De repente, um voo rápido em espiral, e a três palmos do assoalho ele se equilibra no ar, helicóptero perfeito, e uns segundos depois navega na horizontal até um dos cantos do quarto, onde se refugia numa caixa de papelão.
Acendo a lâmpada, me aproximo da caixa e vejo meu ex-inimigo no centro de uma fotografia antiga. Quieto, ferrão e asas recolhidos, repousa no rosto de uma mulher ainda jovem, que sorri para a lente do fotógrafo. Pego com cuidado a foto, saio do quarto e, com um sopro, o inseto some na tarde morna.
Minha mãe me abraça numa manhã de 1960: nós dois aninhados no banco da Praça da Matriz, aonde me levara para ver o aviário e conversar com os pássaros. Lembro-me de que ela morreu há quatro anos, e devo essa lembrança ao inseto estranho e sentimental, que me roubou a ideia de uma crônica, mas me deu outra.
Agora, quando já escurece, é pegar a caneta e escrever a primeira frase, quase sempre a mais difícil...
Milton Hatoum, in www.oestadao.com.br

Escrever

“Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada… Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro, não é?”
Clarice Lispector

Epigrama, de Paladas de Alexandria

Ouro, pai dos aduladores, filho da aflição e do cuidado,
não te possuir dá medo e possuir-te aflição.
Tradução: José Paulo Paes

Trabalho intelectual

“A pressa, o nervosismo, a instabilidade, observados desde o surgimento das grandes cidades, alastram-se nos dias de hoje de uma forma tão epidêmica quanto outrora a peste e a cólera. Nesse processo manifestam-se forças das quais os passantes apressados do século XIX não eram capazes de fazer a menor ideia. Todas as pessoas têm necessariamente algum projeto. O tempo de lazer exige que se o esgote. Ele é planeado, utilizado para que se empreenda alguma coisa, preenchido com vistas a toda espécie de espetáculo, ou ainda apenas com locomoções tão rápidas quanto possível. A sombra de tudo isso cai sobre o trabalho intelectual. Este é realizado com má consciência, como se tivesse sido roubado a alguma ocupação urgente, ainda que meramente imaginária. A fim de se justificar perante si mesmo, ele dá-se ares de uma agitação febril, de um grande afã, de uma empresa que opera a todo vapor devido à urgência do tempo e para a qual toda a reflexão — isto é, ele mesmo — é um estorvo. Com frequência tudo se passa como se os intelectuais reservassem para a sua própria produção precisamente apenas aquelas horas que sobram das suas obrigações, saídas, compromissos, e divertimentos inevitáveis.”
Theodore Adorno, in Minima Moralia

Heróis e História



Fonte das imagens: Google 

Velha questão: são os homens providenciais que fazem a História ou é a História que os providencia? Estou pensando no Mandela. Ele sem dúvida fez história, mas o apartheid teria se mantido mesmo sem a resistência dramatizada na sua prisão e no seu sacrifício? Provavelmente não. Martin Luther King simbolizou a luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, empolgou e inspirou muita gente, mas a injustiça flagrante da segregação racial estaria condenada mesmo sem seus discursos e seu exemplo. Frequentei uma "high school" americana durante três anos e todos os dias, antes de começarem as aulas, botava a mão sobre o coração e prometia lealdade à bandeira aos Estados Unidos da America a à republica que ela representava, com liberdade e justiça para todos, e certamente não era só eu que completava, em silêncio, o juramento: "...exceto para os negros". Durante anos a democracia americana conviveu com imagens de discriminação racista, linchamentos e outra violência contra negros no sul do país. Variava apenas o grau de consciência em cada um da hipocrisia desta convivência cega. O que Martin Luther King fez foi tornar a consciência universal e a hipocrisia visível, e insuportável. Mas a justiça para todos viria - ou virá, ou tomara que venha, numa América ainda dividida pela questão racial, como mostra a revolta pela absolvição recente do assassino daquele garoto negro na Flórida - mesmo sem a sua retórica.
Gandhi liderou o movimento de resistência pacifica que ajudou a liberar a Índia do domínio inglês. Há figuras como Gandhi - mais ou menos pacíficas - em quase todas as histórias de liberação do jugo colonialista. Mas por mais atraente que seja a ideia de heróis emancipadores derrotando impérios, a verdade é que eles serviram uma inevitabilidade histórica, independente da sua bravura, do seu discurso ou, como Gandhi, do seu apelo espiritual. O poder da História de fazer acontecer o necessário, à revelia da iniciativa humana, soa como ortodoxia marxista, eu sei, mas consolemo-nos com a ideia de que a História pode nos ignorar, mas está do nosso lado.
E dito tudo isto é preciso dizer que poucas coisas na vida me emocionaram tanto quanto a aparição do Mandela antes do jogo final da Copa do Mundo na África do Sul, ovacionado pela multidão. Consequente ou não, ali estava um herói.
Luís Fernando Veríssimo, in www.oestadao.com.br, de 25/07/2013

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.
Adélia Prado

Começar de novo

"A vitalidade não se revela apenas na capacidade de persistir, mas também na de começar tudo de novo."
Francis Scott Fitzgerald

O Espelho, de Machado de Assis


Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
Conto completo aqui.

Possível e impossível

“Todo es posible cuando la vida es imposible”
Braulio Arenas

Palavras poucas

"Não é bem assim. Houve um tempo em que as palavras eram tão poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples como Esta boca é minha, ou Essa boca é tua, e muito menos para perguntar Por que é que temos as bocas juntas."
José Saramago, in O homem duplicado

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Bruna Caram - Quem sabe isso quer dizer amor


Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol
Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira

Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois
Sinais de bem, desejos vitais
Pequenos fragmentos de luz

Falar da cor dos temporais
Do céu azul, das flores de abril
Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu
O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor,
Estrada de fazer o sonho acontecer

Pensei no tempo e era tempo demais
Você olhou sorrindo pra mim
Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça

Eu simplesmente não consigo parar
Lá fora o dia já clareou
Mas se você quiser transformar
O ribeirão em braço de mar

Você vai ter que encontrar
Aonde nasce a fonte do ser
E perceber meu coração
Bater mais forte só por você
O mundo lá sempre a rodar,
E em cima dele tudo vale
Quem sabe isso quer dizer amor,
Estrada de fazer o sonho acontecer.

Idas e vindas de São Serapião


O novo livro de contos do escritor Demétrio Diniz, potiguar de Alexandria, “Idas e Vindas de São Serapião”, editado pela Bagaço, foi lançado na quarta-feira (24/07), na Livraria Saraiva, do Midway. O livro tem ilustrações do artista plástico e poeta Alberto Lacet e orelha do escritor Aldo Lopes de Araújo. É o segundo livro de contos do autor, que antes se dedicava à poesia (escreveu, entre outros, Haveres, Passarás e Ferrovia). O primeiro livro de contos foi “Sobre o Céu de Natal”, bem recebido por leitores e críticos. “Idas e Vindas de São Serapião” reúne 15 contos.

O Tempo

Fonte da imagem: Google

Os povos primitivos não conheciam a necessidade de dividir o tempo em filigranas. Para os antigos não existiam minutos ou segundos. Artistas como Stevenson ou Gauguin fugiram da Europa e aportaram em ilhas onde não havia relógios. Nem o carteiro nem o telefone apoquentavam Platão. Virgílio nunca precisou de correr para apanhar um comboio. Descartes perdeu-se em pensamentos nos canais de Amsterdam. Hoje, porém, os nossos movimentos são regidos por frações exatas de tempo. Até mesmo a vigésima parte de um segundo começa a não mais ser irrelevante em certas áreas técnicas.
Paul Valéry, in A Busca da Inteligência

O conde e o passarinho


Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).
Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.
Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.
Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.
Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.
Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.
Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.
Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?
Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.
O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!
Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.
Rubem Braga

Van Gogh e o elogio da loucura

Apesar de fazer parte de uma nova categoria de artista que surgiu no século XIX, o louco solitário, Van Gogh não foi o único. As mudanças do século XIX resultaram em uma nova perspectiva do indivíduo em relação à sociedade. Para os artistas os novos tempos resultaram em percepção desesperadora e vazia da realidade, onde o que anteriormente era concreto e absoluto desmoronou. Deus morreu, a esperança no homem esmorece, a razão domina e tudo o que resta, para o indivíduo artista é o mundo dos sentimentos, o mundo da expressão.

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Vincent Van Gogh, "Restaurante De la Sirene em Asnieres"

“O que sou eu aos olhos da maioria das pessoas? Uma não entidade, ou um homem excêntrico e desagradável – alguém que não tem e nunca terá posição na vida, em suma, o menor dos menores. Muito bem, mesmo que isso fosse verdade, devo querer que o meu trabalho mostre o que vai no coração de um homem excêntrico e desse joão-ninguém.” - Carta de Vincent ao irmão Théo (21 de julho de 1882).
Pelo trecho da carta destinada ao irmão fica claro que Vincent van Gogh se sentia deslocado na sociedade e tinha necessidade de inserir-se de alguma forma nela.

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Vincent Van Gogh, Auto-retrato
Vincent Willem van Gogh, nascido em 1853, foi mais que um pintor perturbado. Muito se escreveu sobre o artista, foram feitas análises de sua doença, de suas cartas e obra. Vincent é parte do imaginário popular do artista moderno que vive, enlouquece, definha e finalmente morre por sua arte. A ideia do artista excluído da sociedade, que enxergava além de seu tempo, incompreendido por seus contemporâneos, tem como reverso o valor de suas obras, vendidas hoje por milhões de dólares, para serem armazenadas em cofres ou acervos, longe dos olhos do grande público. Justo Vincent, que ansiava tanto que sua obra fosse vista e compreendida por todos.
Matéria completa aqui.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Auscultar o próprio coração

“Nos nossos contatos quotidianos seguimos a multidão, deixamo-nos levar por esperanças e temores subalternos, tornamo-nos vítimas das nossas próprias técnicas e implementos, e desusamos o acesso que temos ao oráculo divino. É apenas enquanto a alma dorme que nos servimos dos préstimos de tantas maquinarias e muletas engenhosas. De que servem os telégrafos? Qual a utilidade dos jornais? O homem sábio não aguarda os correios nem precisa ler telegramas para descobrir como se sentem os homens no Kansas ou na Califórnia durante uma crise social. Ele ausculta o seu próprio coração. Se eles são feitos como ele é, se respiram o mesmo ar e comem o mesmo trigo, se têm mulheres e filhos, ele sabe que a sua alegria e ressentimento atingem o mesmo ponto que o seu. A alma íntegra está em perpétua comunicação telegráfica com a fonte dos acontecimentos, dispõe de informação antecipada, qual despacho particular, que a exime e alivia do terror que oprime o restante da comunidade.”
Ralph Waldo Emerson, in Progresso da Cultura

Medo de si próprio

“Acredito que se um homem vivesse a sua vida plenamente, desse forma a cada sentimento, expressão a cada pensamento, realidade a cada sonho, acredito que o mundo beneficiaria de um novo impulso de energia tão intenso que esqueceríamos todas as doenças da época medieval e regressaríamos ao ideal helênico, possivelmente até a algo mais depurado e mais rico do que o ideal helênico. Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado, porque a ação é um modo de expurgação. Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.”
Oscar Wilde, in O retrato de Dorian Gray

Mundo pequeno - IV

Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.
Manoel de Barros

Compatriotas

“É difícil a gente compreender bem as criaturas e não creio que possamos conhecer ninguém a fundo, a não ser os nossos próprios compatriotas. Pois os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas.”
W. Somerset Maugham, in O fio da Navalha

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Rapadura Cult é notícia

Fonte: www.omossoroense.com.br, Gerais, p. 04, de 24/07/2013

Morreu o genial Dominguinhos


Nascido em 1941, José Domingos de Morais, o Dominguinhos, veio de uma família humilde de Garanhuns (PE) e herdou os dotes musicais de seu pai, Chicão, que era sanfoneiro. Com seis anos de idade, aprendeu a tocar sanfona e ia a feiras livres para arrecadar dinheiro.
Quando criança, ele formou o trio Os Três Pinguins com seus dois irmãos Moraes (sanfona) e Valdomiro (malê, uma espécie de zabumba). Aos nove anos, já era proficiente em sanfonas de 48, 80 e 120 baixos. Logo depois, ele conheceu Luiz Gonzaga na porta de seu hotel. O músico ficou impressionado e chamou Dominguinhos para ir ao Rio de Janeiro. Mais tarde, ele fez parte da equipe de Luiz Gonzaga e foi reconhecido por cantores da Bossa Nova, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Elba Ramalho e Toquinho.
Matéria completa do portal UOL aqui.

A transfiguração pela poesia

Creio firmemente que o confinamento em si mesmo, imposto a toda uma legião de criaturas pela guerra, é dinamite se acumulando no subsolo das almas para as explosões da paz. No seio mesmo da tragédia sinto o fermento da meditação crescer. Não tenho dúvida de que poderosos artistas surgirão das ruínas ainda não reconstruídas do mundo para cantar e contar a beleza e reconstruí-lo livre. Pois na luta onde todos foram soldados - a minoria nos campos de batalha, a maioria nas solidões do próprio eu, lutando a favor da liberdade e contra ela, a favor da vida e contra ela - os sobreviventes, de corpo e espírito, e os que aguardaram em lágrimas a sua chegada imprevisível, hão de se estreitar num abraço tão apertado que nem a morte os poderá separar. E o pranto que chorarem juntos há de ser água para lavar dos corações o ódio e das inteligências o mal-entendido.
Porque haverá nos olhos, na boca, nas mãos, nos pés de todos uma ânsia tão intensa de repouso e de poesia, que a paixão os conduzirá para os mesmos caminhos, os únicos que fazem a vida digna: os da ternura e do despojamento. Tenho que só a poesia poderá salvar o mundo da paz política que se anuncia - a poesia que é carne, a carne dos pobres humilhados, das mulheres que sofrem, das crianças com frio, a carne das auroras e dos poentes sobre o chão ainda aberto em crateras.
Só a poesia pode salvar o mundo de amanhã. E como que é possível senti-la fervilhando em larvas numa terra prenhe de cadáveres. Em quantos jovens corações, neste momento mesmo, já não terá vibrado o pasmo da sua obscura presença? Em quantos rostos não se terá ela plantado, amarga, incerta esperança de sobrevivência? Em quantas duras almas já não terá filtrado a sua claridade indecisa? Que langor, que anseio de voltar, que desejo de fruir, de fecundar, de pertencer, já não terá ela arrancado de tantos corpos parados no antemomento do ataque, na hora da derrota, no instante preciso da morte? E a quantos seres martirizados de espera, de resignação, de revolta já não terão chegado as ondas do seu misterioso apelo?
Sofre ainda o mundo de tirania e de opressão, da riqueza de alguns para a miséria de muitos, da arrogância de certos para a humilhação de quase todos. Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço. Sofre o mundo da transformação das mãos em instrumentos de castigo e em símbolos de força.
Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões.
A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz. Parece tão vago, tão gratuito, e no entanto eu o sinto de maneira tão fatal! Não se trata de desencantá-la, porque creio na sua aparição espontânea, inevitável. Surgirá de vozes jovens fazendo ciranda em torno de um mundo caduco; de vozes de homens simples, operários, artistas, lavradores, marítimos, brancos e negros, cantando o seu labor de edificar, criar, plantar, navegar um novo mundo; de vozes de mães, esposas, amantes e filhas, procriando, lidando, fazendo amor, drama, perdão. E contra essas vozes não prevalecerão as vozes ásperas de mando dos senhores nem as vozes soberbas das elites. Porque a poesia ácida lhes terá corroído as roupas. E o povo então poderá cantar seus próprios cantos, porque os poetas serão em maior número e a poesia há de velar.
Primeira crônica de Vinicius de Moraes, publicada em A Manhã, 1946.

Quem me levará sou eu - Dominguinhos



Amigos a gente encontra
O mundo não é só aqui
Repare naquela estrada
Que distância nos levará
As coisas que eu tenho aqui
Na certa terei por lá
Segredos de um caminhão
Fronteiras por desvendar
Não diga que eu me perdi
Não mande me procurar
Cidades que eu nunca vi
São casas de braços a me agasalhar
Passar como passam os dias
Se o calendário acabar
Eu faço contar o tempo outra vez, sim
Tudo outra vez a passar
Não diga que eu fiquei sozinho
Não mande alguém me acompanhar
Repare, a multidão precisa
De alguém mais alto a lhe guiar
Quem me levará sou eu
Quem regressará sou eu
Não diga que eu não levo a guia
De quem souber me amar.

Caráter

"Todo o homem tem três caráteres: o que ele exibe, o que ele tem e o que pensa que tem."
Alphonse Karr

Dádiva de uma certeza

"Ninguém presta à sua geração maior serviço do que aquele que, seja pela sua arte, seja pela sua existência, lhe proporciona a dádiva de uma certeza."
James Joyce

terça-feira, 23 de julho de 2013

A escrita, a palavra...

La escritura es deseo
La palavra es sangre
Escribir es rasgar
Héctor Hernández

A vida

O que é que se pode
desejar da vida
a não ser que
seja limpa
e digna
e, a cada minuto,
arrume, desarrume
nosso coração,
os nossos sentimentos?

O que é que se pode
desejar,
senão uma cama, um canto
e a mesa posta de esperanças?
Sonhar sonhos
que a gente alcance.
Roseana Murray

Sinceridade


"Como também vai sendo costume, foi muito louvada a minha sinceridade, mas, creio que pela primeira vez, esta insistência e esta unanimidade fizeram-me pensar se realmente existirá isso a que damos o nome de sinceridade, se a sinceridade não será apenas a última das máscaras que usamos, e, justamente por última ser, aquela que afinal mais esconde."
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote

Temo igualmente angústias e delícias

Imagem: Google

“Ando a ver. O caracol sai ao arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro: germina autêntico é depois. Um escrito será que basta? Meu duvidar é uma petição de mais certeza.”
Guimarães Rosa, in Tutaméia

A ocasião

"A ocasião não faz apenas o ladrão, mas também grandes homens."
Georg Christoph Lichtenberg