domingo, 30 de junho de 2013
Espero sair com vida para escrever
O autor de 1984 fala do tiro
que levou no pescoço, das perseguições políticas e de sua luta ao lado dos
republicanos na Guerra Civil Espanhola
George Orwell era
um escritor prolífico. Numa semana típica, escrevia três resenhas, mais de dez
cartas e mantinha um diário minucioso, no qual anotava até se tinha chovido ou
feito sol, além de trabalhar no livro ao qual se dedicava. Suas obras completas
têm vinte volumes, foram descobertas 1 700 de suas cartas e o diário ultrapassa
as 500 páginas. Mas seus biógrafos e editores dizem que ele escreveu mais que
isso. Os cadernos com as anotações sobre a sua participação na Guerra Civil
Espanhola, por exemplo, teriam sido roubados de seu hotel por agentes do
Comissariado do Povo para os Assuntos Internos – a polícia política da União
Soviética que antecedeu a KGB – e provavelmente estão em algum arquivo na
Rússia.
Estava bem longe,
também, de ser um escritor de gabinete. Na Pior em Paris e Londres relata a sua história como lavador
de pratos em restaurantes e hotéis chiques. O Caminho para Wigan Pier é produto do tempo em que trabalhou
como mineiro e morou em favelas no norte da Inglaterra. Lutando na
Espanha reconstitui a sua participação, ao lado dos republicanos, na
guerra civil dos anos 30. George Orwell – nom de plume de Eric Arthur Blair – quis estar sempre junto
dos pobres e dos trabalhadores. Para descrever a vida concreta deles e aplicar
na prática as suas próprias ideias socialistas.
Nas cartas
publicadas a seguir, Orwell fala da Guerra Civil Espanhola. Na manhã de 20 de
maio de 1937, ele levou um tiro que lhe atravessou o pescoço e quase o matou.
Foi hospitalizado e ficou sem voz um tempo. No final da convalescença,
stalinistas locais e agentes soviéticos o perseguiram por estar engajado na
milícia do Partido Operário de Unificação Marxista, o poum, organização
hostilizada por Moscou. Orwell viveu na rua e dormiu em igrejas até que
conseguiu escapar da Espanha com sua mulher, Eileen.
De volta à Inglaterra, escreveu inúmeras
cartas explicando por que a União Soviética destruíra o POUM, prendera os seus
militantes e assassinara Andrés Nin, o líder do partido. Tanto a fábula de A Revolução dos Bichos como o
romance 1984 reconstituem
em ficção muito da experiência política de Orwell na guerra civil na Espanha.
Leia as cartas aqui.
O Velho Arvoredo, de Maciel Melo
Cadê aquela sombra bela
Do velho arvoredo
Onde a gente se amava
Cadê aquele cheiro bom
de pasto mastigado
Onde ruminavam os bois
Cadê o riso de Luzia
Que me disse um dia
A lua é de nós dois
E a gente no velho arvoredo
A lua vinha cedo
Clarear o nosso amor
Pode me chamar de cafona
Eu gosto é de forró
Minha sandália é currupele
Ainda chamo cachete
Califon e caritó
Eu gosto de uma aguardente
Uma mulher decente
Pra ser meu xodó
E um cavalo bom de cela
Pra eu montar com ela
E derrubar a dor
Numa boa vaquejada
Namorar com minha amada
Na sombra de uma flor.
Do velho arvoredo
Onde a gente se amava
Cadê aquele cheiro bom
de pasto mastigado
Onde ruminavam os bois
Cadê o riso de Luzia
Que me disse um dia
A lua é de nós dois
E a gente no velho arvoredo
A lua vinha cedo
Clarear o nosso amor
Pode me chamar de cafona
Eu gosto é de forró
Minha sandália é currupele
Ainda chamo cachete
Califon e caritó
Eu gosto de uma aguardente
Uma mulher decente
Pra ser meu xodó
E um cavalo bom de cela
Pra eu montar com ela
E derrubar a dor
Numa boa vaquejada
Namorar com minha amada
Na sombra de uma flor.
sábado, 29 de junho de 2013
Soneto 3
Mira no espelho e descreve o rosto que
vês;
Agora é o tempo em que a face deve mudar,
Cujos reparos não tenhas logo renovado,
Terás enganado o mundo, à revelia de tua mãe.
Onde está a bela, cujo ventre não semeado
Desdenha o cultivo de teus cuidados?
Ou de quem será a tumba de um ser tão cioso
De seu amor-próprio para negar a posteridade?
És o espelho de tua mãe, e tua semelhança
Recorda os adoráveis dias de sua primavera;
Então, pela tua idade, poderás ver,
Apesar das rugas, o teu tempo áureo;
Mas se vives para não seres lembrado,
Jamais te cases, e tua imagem fenecerá contigo.
Agora é o tempo em que a face deve mudar,
Cujos reparos não tenhas logo renovado,
Terás enganado o mundo, à revelia de tua mãe.
Onde está a bela, cujo ventre não semeado
Desdenha o cultivo de teus cuidados?
Ou de quem será a tumba de um ser tão cioso
De seu amor-próprio para negar a posteridade?
És o espelho de tua mãe, e tua semelhança
Recorda os adoráveis dias de sua primavera;
Então, pela tua idade, poderás ver,
Apesar das rugas, o teu tempo áureo;
Mas se vives para não seres lembrado,
Jamais te cases, e tua imagem fenecerá contigo.
William
Shakespeare
Coragem danada
“É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita
coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de
proteção... porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. Sei lá
porque escrevo! Que fatalidade é esta?”
Clarice
Lispector
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Tudo se finge
"Ando a ver. O caracol
sai arrebol. A cobra se concebe curva. O mar barulha de ira e de noite. Temo
igualmente angústias e delícias. Nunca entendi o bocejo e o pôr-do-sol. Por
absurdo que pareça, a gente nasce, vive, morre. Tudo se finge, primeiro;
germina autêntico é depois. Um escrito será que basta? Meu duvidar é uma petição
de mais certeza. "
Guimarães Rosa, in Tutaméia
Desgosto e alegria
"O desgosto e a alegria dependem
mais do que somos do que daquilo que nos acontece."
Multatuli
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Rindo
Sabia que de vez
em quando eu fico rindo sem saber por quê.
Deve ser riso
represado.
Rir
é da hora.
Sérgio Vaz
Depois do baile, de Leon Tolstoi
"Então
os senhores dizem que o homem não é capaz de compreender por si mesmo o que é
mau, dizem que todos dependem do ambiente, que todos são vítimas do seu meio.
Pois penso que tudo depende do acaso. E falo por experiência própria."
Assim
começou Ivan Vassílievich, a quem todos respeitavam, após uma conversa que
tivemos em torno da ideia de que, para aprimoramento pessoal, é necessário
antes de tudo mudar as condições em que as pessoas vivem. Ninguém disse
propriamente que era impossível compreender o que é bom e o que é mau, mas Ivan
Vassílievitch tinha aquela maneira peculiar de responder aos próprios
pensamentos, surgidos no correr de uma conversa, e de, sob o efeito de tais
pensamentos, contar episódios da sua vida. Muitas vezes esquecia completamente
o motivo que o levara a contar, deixava-se arrebatar pelo seu relato, ainda
mais porque contava com muita franqueza e veracidade.
Assim
fez também então.
"Falo
por experiência própria. Toda a minha vida se constituiu dessa forma, e não de
outro modo, não em decorrência do meio, mas sim de algo bem diferente."
"E
de que foi então?", perguntamos.
"Pois
então conte."
Ivan
Vassílievitch pôs-se a refletir, balançou a cabeça.
"Sim",
disse. "Toda a minha vida se transformou em uma noite, ou melhor, em uma
manhã.
"O que aconteceu?"
Para saber o que aconteceu, leia o conto completo aqui.
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Esforço pela felicidade
“O animal humano, como os outros animais,
está adaptado para uma certa luta pela vida e quando, graças à sua riqueza, o homo
sapiens pode satisfazer todos os desejos sem esforço, a simples ausência
do esforço na sua vida afasta dele um elemento essencial de felicidade. O homem
que adquire facilmente as coisas pelas quais sente apenas um desejo moderado,
conclui que a realização do desejo não dá felicidade. Se tem disposição para a
filosofia, conclui que a vida humana é essencialmente desprezível, pois o homem
que tem tudo o que precisa ainda assim é infeliz. Esquece-se de que privar-se de
algumas coisas que precisa é parte indispensável da felicidade”.
Bertrand
Russell, in A Conquista da Felicidade
terça-feira, 25 de junho de 2013
O destino
“Há
aqueles que creem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade
é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens”.
Eduardo
Galeano
Inscrição para uma lareira
Imagem: Google
A vida é
um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida…
na própria luz consumida…
Mário Quintana
segunda-feira, 24 de junho de 2013
Somos seres não libertos
“A esfera da consciência reduz-se na ação; por isso
ninguém que aja pode aspirar ao universal, porque agir é agarrar-se às
propriedades do ser em detrimento do ser, a uma forma de realidade em prejuízo
da realidade. O grau da nossa emancipação mede-se pela quantidade das
iniciativas de que nos libertamos, bem como pela nossa capacidade de converter
em não-objeto todo o objeto. Mas nada significa falar de emancipação a
propósito de uma humanidade apressada que se esqueceu de que não é possível
reconquistar a vida nem gozá-la sem primeiro a ter abolido.
Respiramos demasiado depressa para sermos capazes
de captar as coisas em si próprias ou de denunciar a sua fragilidade. O nosso
ofegar postula-as e deforma-as, cria-as e desfigura-as, e amarra-nos a elas. Agito-me
e portanto emito um mundo tão suspeito como a minha especulação, que o
justifica, adoto o movimento que me transforma em gerador de ser, em artesão de
ficções, ao mesmo tempo que a minha veia cosmogônica me faz esquecer que,
arrastado pelo turbilhão dos atos, não passo de um acólito do tempo, de um
agente de universos caducos.
Empanturrados de sensações e do seu corolário, o
devir, somos seres não libertos, por inclinação e por princípio, condenados de
eleição, presas da febre do visível, pesquisadores desses enigmas de superfície
que estão à altura do nosso desânimo e da nossa trepidação.
Se queremos recuperar a nossa liberdade, devemos
pousar o fardo da sensação, deixar de reagir ao mundo através dos sentidos,
romper os nossos laços. Ora, toda a sensação é um laço, tanto o prazer como a
dor, tanto a alegria como a tristeza. Só se liberta o espírito que, puro de
toda a convivência com seres ou com objetos, se aplica à sua vacuidade.
Resistir à sua
felicidade é coisa que a maioria consegue; a infelicidade, no entanto, é muito
mais insidiosa. Já a provastes? Jamais vos sentires saciados, procurá-la-eis
com avidez e de preferência nos lugares onde ela não se encontra, mas projetá-la-eis
neles, porque, sem ela, tudo vos pareceria inútil e baço. Onde quer que a
infelicidade se encontre, expulsa o mistério e torna-o luminoso. Sabor e chave
das coisas, acidente e obsessão, capricho e necessidade, far-vos-á amar a
aparência no que ela tem de mais poderoso, de mais duradouro e de mais
verdadeiro, e amarrar-vos-á para sempre porque, ‘intensa’ por natureza, é, como
toda a ‘intensidade’, servidão, sujeição. A alma indiferente e nula, a alma
desentravada - como chegar a ela? E como conquistar a ausência, a liberdade da
ausência? Tal liberdade jamais figurará entre os nossos costumes, tal como
neles não figurará o ‘sonho do espírito infinito’”.
Emil Cioran, in Pensar Contra Si Próprio
Mangas
"Quantas
mangas perfaz uma mangueira, enquanto vive? - isto, apenas. Mais, qualquer
manga em si traz, em caroço, o maquinismo de outra, mangueira igualzinha, do
obrigado tamanho e formato. Milhões, bis, tris, lá sei, haja números para o
Infinito. E cada mangueira dessas, e por diante, para diante, as
corações-de-boi, sempre total ovo e cálculo, semente, polpas, sua carne de
prosseguir, terebintinas."
Guimarães Rosa, in Tutaméia
domingo, 23 de junho de 2013
Paradoxo x preconceito
"Prefiro ser um homem de paradoxos que um homem de
preconceitos."
Jean Jacques
Rousseau
Epigrama de Paladas de Alexandria
Se lembrares, homem,
como foste por teu pai gerado,
esquecerás as ideias de grandeza.
Platão, o sonhador, encheu tua cabeça de empáfia
ao te chamar de imortal, planta celeste.
De barro és feito; por que a presunção? Só fala assim
quem se compraz em fingimentos vistosos.
Mas se buscas a verdade, recorda que vieste de um
ato de luxúria e de uma gota suja.
esquecerás as ideias de grandeza.
Platão, o sonhador, encheu tua cabeça de empáfia
ao te chamar de imortal, planta celeste.
De barro és feito; por que a presunção? Só fala assim
quem se compraz em fingimentos vistosos.
Mas se buscas a verdade, recorda que vieste de um
ato de luxúria e de uma gota suja.
Tradução: José Paulo Paes
sábado, 22 de junho de 2013
O bem e o mal
“Em teoria,
creio dever testemunhar o mais vivo interesse por alguns seres por terem
melhorado o homem e a vida humana. Mas interrogo-me sobre a natureza exata de
tais seres e vacilo. Quando analiso mais atentamente os mestres da política e
da religião, começo a duvidar intensamente do sentido profundo de sua
atividade. Será o bem? Será o mal? Em compensação, não sinto a menor hesitação
diante de alguns espíritos que só procuram atos nobres e sublimes. Por isto
apaixonam os homens e os exaltam, sem mesmo o perceberem. Descubro esta lei
prática nos grandes artistas e depois nos grandes sábios. Os resultados da
pesquisa não exaltam nem apaixonam. Mas o esforço tenaz para compreender e o
trabalho intelectual para receber e para traduzir transformam o homem".
Albert Einstein, in Como vejo o mundo
Palavras simples
“Cuidado ao dizer um não, ou um sim, ou
um nunca mais, ou para sempre. Eles podem mudar sua história. São palavras
simples, com força enorme”.
Renato
Russo
Felicidade: de dentro para fora
“Que a
felicidade não dependa do tempo, nem da paisagem, nem da sorte, nem do
dinheiro. Que ela possa vir com toda simplicidade, de dentro para fora, de cada
um para todos. Que as pessoas saibam falar, calar, e acima de tudo ouvir. Que
tenham amor ou então sintam falta de não tê-lo. Que tenham ideais e medo de
perdê-lo. Que amem ao próximo e respeitem sua dor. Para que tenhamos certeza de
que: Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.”
Carlos Drummond de Andrade
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Pensar
"A maior parte das pessoas prefere morrer a
pensar; na verdade, é isso que fazem."
Bertrand Russell
Elogio da dialética
A injustiça avança hoje a passo firme;
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.
Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.
Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
Bertolt
Brecht
Sobre a escrita
Meu
Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.
Que
é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio
de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados:
acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada
palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras
eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos
modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos
pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um
extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem
outras palavras.
Qual
é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não
ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode
e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas
acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se
eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão
corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o
Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me
impedem de dizer a verdade.
Simplesmente
não há palavras.
O
que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som
da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e
escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino
dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a
sorte às vezes.
Sempre
quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem
moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais
profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo
com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever.
Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de
pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.
Clarice
Lispector
quinta-feira, 20 de junho de 2013
De pé
"Quem nunca caiu não tem bem a noção
do esforço que é preciso para se manter de pé."
Multatuli
Coisas ausentes e presentes
“Não julgues as coisas ausentes como
presentes; mas entre as coisas presentes pondera as de mais preço e imagina com
quanto ardor as buscarias se não as tivesses à mão. Mas ao mesmo tempo toma
cuidado, não seja caso que ao deliciares-te assim nas coisas presentes te
habitues a sobrestimá-las; procedendo assim, se um dia as viesses a perder,
davas em louco rematado”.
Marco
Aurélio, in Pensamentos
quarta-feira, 19 de junho de 2013
Desenganado da Aparência Exterior
Vês tu este gigante corpulento
que solene e soberbo se reclina?
Pois por dentro é farrapos e faxina,
e é um carregador seu fundamento.
Com sua alma vive e é movimento,
e onde ele quer sua grandeza inclina;
mas quem seu modo rígido examina
despreza tal figura e ornamento.
São assim as grandezas aparentes
da presunção vazia dos tiranos:
fantásticas escórias eminentes.
Vês que, em púrpura ardendo, são humanos?
As mãos com pedrarias são diferentes?
Pois dentro nojo são, terra e gusanos.
que solene e soberbo se reclina?
Pois por dentro é farrapos e faxina,
e é um carregador seu fundamento.
Com sua alma vive e é movimento,
e onde ele quer sua grandeza inclina;
mas quem seu modo rígido examina
despreza tal figura e ornamento.
São assim as grandezas aparentes
da presunção vazia dos tiranos:
fantásticas escórias eminentes.
Vês que, em púrpura ardendo, são humanos?
As mãos com pedrarias são diferentes?
Pois dentro nojo são, terra e gusanos.
Francisco
Quevedo, in Antologia Poética. Tradução de José
Bento
Os mesmos erros
“Mesmo um exame superficial da história revela que
nós, seres humanos, temos uma triste tendência para cometer os mesmos erros
repetidas vezes. Temos medo dos desconhecidos ou de qualquer pessoa que seja um
pouco diferente de nós. Quando ficamos assustados, começamos a ser agressivos
para as pessoas que nos rodeiam. Temos botões de fácil acesso que, quando
carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até
extremos de insensatez por políticos espertos. Deem-nos o tipo de chefe certo
e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de
bom grado quase tudo o que ele quer - mesmo coisas que sabemos serem
erradas”.
Carl
Sagan, in O Mundo Infestado
de Demônios
Os espaços públicos podem e devem ser ocupados
As
manifestações contra a tarifa dos ônibus são apenas um passo no longo processo
de construção da democracia e da cidadania
Foto: Ninja
Os
recentes protestos não deveriam ser razão de tanto espanto, a ponto de causar
reações indignadas vindas de setores mais conservadores ou mesmo acomodados da
sociedade brasileira (tão pouco acostumadas a manifestações cidadãs de revolta
e rebeldia).
Nesse
sentido estivemos durante muitos anos - aliás, desde o estabelecimento da
ditadura - desacostumados a grandes demonstrações civis de descontentamento
generalizado.
Com
exceções de algumas delas cobertas de consenso como asDiretas Já ou o Fora Collor, as concentrações estiveram sempre
ligadas a setores específicos como greves de professores, metroviários que
atuavam especificamente nas questões salariais e melhorias nas condições de
trabalho.
Muito
diferente é quando surgem nas telas da tevê milhares de pessoas em marcha pelas
principais avenidas de São Paulo acompanhadas de imagens de lixos revirados,
vidraças quebradas e cabines policiais incendiadas. Parece o fim dos tempos.
A
clara distorção ao não mostrar o outro lado contribui para que muitos tenham a
sensação de estarmos cercados de baderneiros.
A
verdade nesses tempos de smartphones, facebooks e comunicações instantâneas
não tardam a aparecer e derrubar os argumentos de mídias conservadoras que
insistem em colocar os manifestantes na fácil alcunha de “vândalos”,
“baderneiros sem causa” e outras adjetivações, inclusive de baixo calão.
Na
vã tentativa de criar uma realidade paralela baseada em condomínios fechados,
carros blindados e saúde privatizada, a nossa pretensa elite tenta se manter
distante e alheia à construção de uma sociedade mais equilibrada, justa e
sustentável.
Os
espaços públicos que deveriam servir a todos acabam sendo paulatinamente
“roubados” da sociedade em nome do progresso ou abandonados e
deteriorados. Parece que às nossas autoridades será melhor que as pessoas
frequentem os paraísos de compras, os conhecidos shopping centers, do que
passar um belo domingo de sol em parques e praças públicas. No lugar da
integração fica a exclusão com todo o mal que trás as relações sociais.
Mas
as inúmeras manifestações que vêm ocorrendo em todo o mundo, pelas mais
diversas razões, carregam em seu íntimo o inconformismo de muitos pelo direito
à liberdade de expressão. E aqui não poderia ser diferente, mesmo que tivesse
demorado a chegar.
Os
problemas das metrópoles brasileiras estão aí expostos para quem quiser ver e é
praticamente impossível negá-los: dificuldades de mobilidade cada vez maiores
(incentivo ao uso e compra do automóvel em detrimento do transporte público);
deterioração de bairros e regiões inteiras (em nome da especulação
imobiliária); falta de segurança; a ausência, enfim, de políticas públicas que
busquem efetivamente contemplar a maior parte da população e só faz agravar as
consequências dos desequilíbrios.
Os
jovens e os não tão jovens que decidiram agora ocupar os espaços públicos estão
resgatando o óbvio: em primeiro lugar, o direito inalienável de se manifestar.
Já a nossa polícia, ainda sob os resquícios de tempos tristes e obscuros,
demonstra não estar preparada para receber a incumbência de proteger os
manifestantes, mas de reprimi-los a todo custo, pois em sua formação militar o
espaço público possui a mera função de se manter livre e desimpedida, apenas
para a circulação, o fluxo “ordeiro” determinado por seus superiores.
Quando
milhares de pessoas tomam as ruas, nossos policiais passam a encará-los como
verdadeiros combatentes inimigos, uma turba selvagem a corromper a ordem e o
progresso. Entre esses “adversários do mal” também se encontram jornalistas
como o colega desta CartaCapital, Piero Locatelli, preso por de portar
uma poderosa e ameaçadora garrafa de vinagre.
Assim
como em outros países, as manifestações só estão começando.
Os
tais 20 centavos de aumento para um transporte público de má qualidade foi
apenas o estopim para outras, que certamente virão.
Nossas autoridades, antes de condenar
alguns poucos atos de pretenso “vandalismo”, devem estar atentas às
reivindicações e priorizar o interesse coletivo. Tratar a todos com respeito e
buscar o diálogo trarão mais benefícios do que o enfrentamento irracional.
Reinaldo
Canto, in www.cartacapital.com.br,
em 17/06/2013
A vida é curta
"A vida é demasiado curta para nos permitir
interessar-nos por todas as coisas, mas é bom que nos interessemos por tantas
quantas forem necessárias para preencher os nossos dias."
Bertrand Russell
terça-feira, 18 de junho de 2013
Tudo passa
"Tudo quanto vive, vive porque muda;
muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se
torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida."
Fernando
Pessoa
domingo, 16 de junho de 2013
Veneno intelectual
"Livros maus
são um veneno intelectual: estragam o espírito. A condição para ler obras boas
é não ler obras más, pois a vida é breve, e o tempo e as forças são limitados".
Arthur Schopenhauer
Muito mais do que 20 centavos
“Se engana quem acredita que a
cidade parou por apenas 20 centavos. Embora 20 centavos faça a diferença para
milhões.
Na manifestação
do Movimento Passe Livre de terça-feira, a unanimidade foi chamar todo cidadão
que protestou de vândalo e baderneiro.
As duas mais
importantes autoridades da cidade estavam juntas em Paris, o governador do
PSDB, Geraldo Alckmin, e o prefeito do PT, Fernando Haddad, com o
vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, numa surpreendente aliança
com aspecto de grandeza e alucinada: sorridentes, esqueceram as divergências e
tentaram vender mais uma vez o Brasil para outro grande evento internacional,
enquanto as obras da Copa das Confederações não estão prontas, e as obras de
mobilidade urbana para a Copa do Mundo nem começaram.
Na França,
apresentaram o projeto de São Paulo à Expo 2020, uma prova de que o Poder vive
num delírio megalomaníaco, ao passo que, quem leva duas horas por dia para ir
trabalhar, três para voltar, em ônibus entupidos e caros, enfrenta 200 km de congestionamento,
vive a realidade.
A manifestação
nesses dias em São Paulo e outras capitais ganhou o caráter que deveria.
Não se trata
apenas de centavos a menos na passagem do ônibus, mas de uma revolta coletiva
contra um Estado que trata o indivíduo como um estorvo: o inimigo.
Estado que, ao
invés de solucionar os problemas da violência, aterroriza. Que pensa para fora,
não para dentro. Que gasta em estádios, não em metrô.
E mais uma vez, a
Polícia Militar, o braço armado que garante o Poder aos incompetentes, e os
blinda contra as revoltas, faz o trabalho que nem sequer o melhor dos
marqueteiros conseguiria: une a sociedade, dentro e fora do Brasil, física e
virtual, contra a violência de quem deve combatê-la e ganha para isso.
Viu-se uma PM
tomar o Poder. Impedir que manifestantes ocupassem a avenida, ocupando-a. Abrir
fogo contra inocentes e jornalistas. Tipificar uma manifestação política como
formação de quadrilha.
Não é mais o
aumento da passagem a bandeira. Alguns cartazes escritos à mão deram o tom.
“O povo não deve
temer o governo, o governo deve temer o povo”.
“Uma cidade muda
não muda”.
“Desculpe o
transtorno, estamos mudando o País”.
Pela TV,
assistimos a anarquia militar. Motos tocavam pedestres como gado em frente à
FIESP. PMs atiravam a esmo. Encurralavam jovens de braços erguidos, rendidos.
Pelas redes
sociais, minuto a minuto, informes, imagens e relatos.
Apresentadores de
TV perdidos, desinformavam e confundiam.
Luiz Datena, da
BAND, fazia uma enquete ao vive. Sua pergunta tendenciosa pedia uma resposta:
“Você é a favor de protesto com baderna?” O resultado mostrou que a revolta é
mais profunda, deixou o apresentador sem ação: o sim ganhava do não por 2050 a
851, quando a emissora tirou a enquete da tela.
Enquanto pelas
redes sociais rodava a foto da repórter Giuliana Vallone, da TV Folha, com o
olho sangrando, de policiais quebrando o vidro da própria viatura para simular
um ataque, de cinegrafista levando um jato de spray de pimenta, a polícia
ocupava a Paulista, fechava a avenida para manifestantes não a ocuparem.
Antônio
Prata tuitou: “No próximo protesto, que se combine de antemão. A PM vai pra
praticar atos de vandalismo, e os manifestantes para tentar contê-los.”
Marcelo Rubens Paiva, in blogs.estadao.com.br,
de 16/06/2013
Sentente e sentidor
"Tudo o que já foi, é o começo do
que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na
paridade... Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu
quero, é na palma da minha mão."
Fala de Riobaldo, in Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa
Controlar os instintos
"Aprender a ver - habituar os
olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós;
aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de
todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não
reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem
obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase
o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é,
precisamente, o poder não ‘querer’, o poder diferir a decisão.
Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor
resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os
impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência,
sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o
nome de ‘vício’ é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir.
— Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em
geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de
qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, —
afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca
perante todo o fato pequeno, o estar sempre disposto a meter-se, a lançar-se de
um salto para dentro de outros homens e outras coisas, em suma, a famosa ‘objetividade’
moderna é mau gosto, é algo não-aristocrático par excellence."
Friedrich
Nietzsche, in Crepúsculo dos Ídolos
Mais "Siga-me"
O Fotógrafo russo Murad Osmann e sua namorada
Nataly Zakharova viajam constantemente a trabalho e vêm com uma única e
romântica perspectiva de divulgar suas experiências pelo globo em paisagens
famosas e exóticas no Instagram. Isto chamou a atenção de importantes
publicações como o Daily Mail e o Huffington Post. O projeto inteiro na verdade
começou por acidente: “Eu estava tirando fotos de tudo e Nataly ficou irritada,
então ela me puxou para seguir em frente. Assim foi como o primeiro
‘#followmeto’ foi feito, e eu gostei bastante do resultado, então temos
continuado a série desde então”.
Curta a seguir algumas fotos postadas:
Nosso ser
"É uma
perfeição absoluta, dir-se-ia divina, sabermos desfrutar lealmente do nosso
ser."
Michel
de Montaigne
Cego e amigo Gedeão à beira da estrada
Fotograma do curta Cego e amigo Gedeão à beira da estrada, de Ronald Palatnik
— Este que passou agora foi um Volkswagen 1962, não é, amigo
Gedeão?
— Não, Cego. Foi um Simca Tufão.
— Um Simca Tufão? ... Ah, sim, é verdade. Um Simca potente. E
muito econômico. Conheço o Simca Tufão de longe. Conheço qualquer carro pelo
barulho da máquina.
Este que passou agora não foi um Ford?
— Não, Cego. Foi um caminhão Mercedinho.
— Um caminhão Mercedinho! Quem diria! Faz tempo que não passa
por aqui um caminhão Mercedinho. Grande caminhão. Forte. Estável nas curvas.
Conheço o Mercedinho de longe... Conheço qualquer carro. Sabe há quanto tempo
sento à beira desta estrada ouvindo os motores, amigo Gedeão? Doze anos, amigo
Gedeão. Doze anos.
É um bocado de tempo, não é, amigo Gedeão? Deu para aprender
muita coisa. A respeito de carros, digo. Este que passou não foi um Gordini
Teimoso?
— Não, Cego. Foi uma lambreta.
— Uma lambreta... Enganam a gente, estas lambretas.
Principalmente quando eles deixam a descarga aberta.
Mas como eu ia dizendo, se há coisa que eu sei fazer é
reconhecer automóvel pelo barulho do motor. Também, não é para menos: anos e
anos ouvindo!
Esta habilidade de muito me valeu, em certa ocasião... Este
que passou não foi um Mercedinho?
— Não, Cego. Foi o ônibus.
— Eu sabia: nunca passam dois Mercedinhos seguidos. Disse só
pra chatear. Mas onde é que eu estava? Ah, sim.
Minha habilidade já me foi útil. Quer que eu conte, amigo
Gedeão? Pois então conto. Ajuda a matar o tempo, não é? Assim o dia termina
mais ligeiro. Gosto mais da noite: é fresquinha, nesta época. Mas como eu ia
dizendo: há uns anos atrás mataram um homem a uns dois quilômetros daqui. Um
fazendeiro muito rico. Mataram com quinze balaços. Este que passou não foi um
Galaxie?
— Não. Foi um Volkswagen 1964.
— Ah, um Volkswagen... Bom carro. Muito econômico. E a caixa
de mudanças muito boa. Mas, então, mataram o fazendeiro. Não ouviu falar? Foi
um caso muito rumoroso. Quinze balaços! E levaram todo o dinheiro do
fazendeiro. Eu, que naquela época j á costumava ficar sentado aqui à beira da
estrada, ouvi falar no crime, que tinha sido cometido num domingo. Na
sexta-feira, o rádio dizia que a polícia nem sabia por onde começar. Este que
passou não foi um Candango?
— Não, Cego, não foi um Candango.
— Eu estava certo que era um Candango... Como eu ia contando:
na sexta, nem sabiam por onde começar.
Eu ficava sentado aqui, nesta mesma cadeira, pensando,
pensando... A gente pensa muito. De modos que fui formando um raciocínio. E
achei que devia ajudar a polícia. Pedi ao meu vizinho para avisar ao delegado
que eu tinha uma comunicação a fazer. Mas este agora foi um Candango!
— Não, Cego. Foi um Gordini Teimoso.
— Eu seria capaz de jurar que era um Candango. O delegado
demorou a falar comigo. De certo pensou: "Um cego? O que pode ter visto um
cego?" Estas bobagens, sabe como é, amigo Gedeão. Mesmo assim, apareceu,
porque estavam tão atrapalhados que iriam até falar com uma pedra. Veio o
delegado e sentou bem aí onde estás, amigo Gedeão. Este agora foi o ônibus?
— Não, Cego. Foi uma camioneta Chevrolet Pavão.
— Boa, esta camioneta, antiga, mas boa. Onde é que eu estava?
Ah, sim. Veio o delegado. Perguntei:
"Senhor delegado, a que horas foi cometido o
crime?"
— "Mais ou menos às três da tarde, Cego" —
respondeu ele. "Então" — disse eu. — "O senhor terá de procurar
um Oldsmobile 1927. Este carro tem a surdina furada.
Uma vela de ignição funciona mal. Na frente, viajava um homem
muito gordo. Atrás, tenho certeza, mas iam talvez duas ou três pessoas." O
delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto, amigo?" — era só
o que ele perguntava. Este que passou não foi um DKW?
— Não, Cego. Foi um Volkswagen.
— Sim. O delegado estava assombrado. "Como sabe de tudo isto?"
— "Ora, delegado" — respondi. — "Há anos que sento aqui à beira
da estrada ouvindo automóveis passar. Conheço qualquer carro. Sem mais: quando
o motor está mal, quando há muito peso na frente, quando há gente no banco de
trás. Este carro passou para lá às quinze para as três; e voltou para a cidade
às três e quinze." — "Como é que tu sabias das horas?" —
perguntou o delegado. — "Ora, delegado"— respondi. — "Se há
coisa que eu sei — além de reconhecer os carros pelo barulho do motor — é
calcular as horas pela altura do sol." Mesmo duvidando, o delegado foi...
Passou um Aero Willys?
— Não, Cego. Foi um Chevrolet.
— O delegado acabou achando o Oldsmobile 1927 com toda a
turma dentro. Ficaram tão assombrados que se entregaram sem resistir. O
delegado recuperou todo o dinheiro do fazendeiro, e a família me deu uma boa
bolada de gratificação. Este que passou foi um Toyota?
— Não, Cego. Foi um Ford
1956.
Moacyr Scliar, in Para gostar de ler
– Contos, vol. 9
sábado, 15 de junho de 2013
Coragem
"Muitas vezes é preciso mais coragem
para enfrentar as futilidades do que para lutar contra abusos graves."
Multatuli
Conversa às 3h30 da madrugada, de Charles Bukowski
Às 3h30 da madrugada
uma porta se abre
e há passos na entrada
movendo um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e responde.
com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?
e ela entra
com rolos no cabelo
e num robe de seda
estampado de coelhos e passarinhos
e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.
você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e de canções românticas,
e depois de alguns copos
ela não se preocupa em cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.
não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolos,
e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.
e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.
uma porta se abre
e há passos na entrada
movendo um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e responde.
com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?
e ela entra
com rolos no cabelo
e num robe de seda
estampado de coelhos e passarinhos
e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.
você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e de canções românticas,
e depois de alguns copos
ela não se preocupa em cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.
não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolos,
e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.
e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.
Tradução de Roberto Schmitt-Prym
Natiruts e Sonia Savinell - Sorri, Sou Rei [Acústico no Rio de Janeiro - 2012]
“Quando a esperança de uma noite de amor
Lhe trouxer vontade para viver mais
E a promessa que a chance terminou
É bobagem, é melhor deixar pra trás”...
Lhe trouxer vontade para viver mais
E a promessa que a chance terminou
É bobagem, é melhor deixar pra trás”...
sexta-feira, 14 de junho de 2013
Todo ponto de vista é a vista de um ponto
“Ler
significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta
a partir de onde os pés pisam.
Todo
ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê é necessário
saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura
sempre uma releitura.
A cabeça pensa a partir de onde os pés
pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer:
como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que
desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o
animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação”.
Leonardo
Boff, in A águia e a galinha
Muitos livros, poucas verdades
“O mundo está tão cheio de livros, como
falto de verdades. E oxalá que nos homens fossem de algum modo tantos os
frutos, quantas são sem número nos livros as folhas; mas a desgraça é que, por
mais que sejam muitos os notadores dos livros, são muito mais os que no mundo
vivem notados; e não basta vermos encadernados os livros, para que deixemos de
ver desencadernados os homens. Com efeito, são os livros os suores dos homens
ou o engenho dos homens; e está o mundo tão emendado, que já ninguém vive do
suor alheio”.
Padre
Antônio Vieira, in As Sete Propriedades da Alma
Quinca Cigano
Entre
os números que contam a grandeza do município de Cachoeiro de Itapemirim há
este, de espantar o leitor distraído: 25 379 pios de aves anualmente. Não, a
prefeitura não espalhou pela cidade e distritos equipes de ouvidores
municipais, encarregados de tomar nota cada vez que uma avezinha pia. Trata-se
de pios feitos por caçadores. E quem os faz é uma família de caçadores de
ouvido fino – os Coelho, cujas três gerações moram na mesma e linda ilha, onde
o rio se precipita naquele encachoeirado, ou cachoeiro, que deu nome à cidade.
Trata-se de um artesanato sutil; não lhe
basta a perícia técnica de delicados torneiros que faz, desses pios
bem-acabados, pequenas obras de arte; exige sensibilidade que há de estar
sempre aguçada. Direis que é uma arte assassina; e na verdade, incontáveis
milhares de bichos do Brasil e da América do Sul já morreram por acreditar, em
um momento de fome ou de amor, naqueles pios imaginados entre os murmúrios de
Itapemirim.
Dizem que os Coelho, fazem até, em
segredo, pios para caçar mulher. Famosa caçada é essa, em não raro é o caçador
a presa da caça. Não sei. Ainda que eu seja Coelho pela parte de mãe, devo ser
de outro ramo, visto que nunca me deram um pio desses. Nem quero.
De minha família acho que saí mais ao
segundo tio. Quinca Cigano, nascido na lavoura mas vivido pelos caminhos, e que
vivia de barganhar. Barganhava uma coisa por outra, e depois mais outra: e não
sei o que arrumava, que depois de muito andar pelo mundo, voltava sempre ao
Cachoeiro, tendo apenas de seu um cavalo magro e triste. Chegava sempre de
noite, como um ladrão; e, como um ladrão, dava a volta por cima do morro e
ficava parado, no escuro, atrás da tela da cozinha, esperando. Quando minha mãe
ia à cozinha fazer o último café, Quinca Cigano, lá do escuro, murmurava seu
nome. Ela se assustava; mas ele logo dizia, com sua voz que a poeira dos
caminhos e a cachaça das vendinhas faziam cada vez mais rouca: “É Quinca”.
Entrava; recebia, calado, comida para ele
e seu cavalo. Tomava um banho, dormia – e de manhã cedo, de roupa limpa e barba
feita, estava na sala de visitas conversando com meu pai. Movendo lentamente
sua cadeira de balanço, meu pai lhe dava um cigarro de palha, e perguntava:
“Então, Quinca?” Ele dizia que ia voltar para a família, para o sítio;agora
queria derrubar aquela mata que dava para o sítio do Sobreira, formar um
cafezal; ia fazer uma manga maior para os porcos; e comentava o preço do arroz
e a queda das chuvas. Meu pai o ouvia, muito sério. Sabia que Quinca era
sincero naquele momento; e também que alguns dias depois ele sumiria outra vez
pelo mundo, no trote do seu cavalo, o cigano solitário.
Feito Quinca Cigano, eu também só tenho
caçado brisas e tristeza. Mas tenho outros pesos na massa de meu sangue. Estou
cansado; quero parar, engordar, morrer. Que os Coelho da ilha me arranjem um
pio, não para caçar mulher, mas para caçar sossego. Deve ser um pio triste, mas
tão triste que, a gente piando ele, só escute depois, nesse mato inteiro, um
grande silêncio, o silêncio de todos os bichos tristes. Eu não quero, como
Quinca Cigano, sair pelo mundo caçando passarinho verde. Passarinho verde não
existe; e quem disse que viu, ou ensandeceu ou mentiu.
Rubem
Braga, in A borboleta amarela (Crônicas)
quinta-feira, 13 de junho de 2013
Suportar corajosamente as desgraças
“Não
examinar o que se passa na alma dos outros dificilmente fará o infortúnio de alguém;
mas os que não seguem com atenção os movimentos das suas próprias almas são
fatalmente desditosos.
(...)
Ser semelhante ao promontório contra o qual vêm quebrar as vagas e que
permanece firme enquanto, à sua volta, espumeja o furor das ondas.
-
Que desgraça ter-me acontecido isto!
Não,
não é assim que se deve falar, mas desta maneira:
-
Que felicidade, apesar do que me aconteceu, eu não me mortificar, não me deixar
abater pelo presente nem me assustar pelo futuro!
Na
verdade, coisa idêntica poderia suceder a toda a gente, mas bem poucos a
suportariam sem se mortificarem. Por que razão considerar este acontecimento
infortunado e aquele outro feliz?
Em resumo, chamas de infortúnio para o
ser humano aquilo que não é um obstáculo à sua natureza? E consideras um
obstáculo à natureza do ser humano aquilo que não vai contra a vontade da sua
natureza? Que queres, então? Conheces bem essa vontade; aquilo que te sucede
impede-te, por acaso, de ser justo, magnânimo, sóbrio, refletido, prudente,
sincero, modesto, livre, e de possuir as outras virtudes cuja posse assegura à
natureza do ser humano a felicidade que lhe é própria? Não te esqueças,
doravante, contra tudo aquilo que te possa trazer aflição, de recorrer a este
princípio: ‘Acontecer-me isso não é uma desgraça; suportá-lo corajosamente é
uma felicidade’”.
Marco
Aurélio, in Pensamentos e Reflexões