Foto de celular: Elilson Batista
sexta-feira, 31 de maio de 2013
Hoje é outro dia
Quando abro cada manhã a janela do meu
quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova…
Mário
Quintana
Não se pode perder o que não se tem
“Fosse
a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que ninguém
perde outra vida que aquela que lhe tocou viver e que só se vive aquela que se
perde. Assim a mais longa e a mais curta vida se
equivalem. O presente é igual para todos, e o que se perde é, por isso mesmo,
igual, e o que se perde surge como a perda de um segundo. Com efeito, não é o
passado ou o futuro que perdemos; como poderia alguém arrebatar-nos o que não
temos?
Por isso toma sentido, a toda a hora,
nestas duas coisas: primeiramente, que tudo, desde toda a eternidade, apresenta
aspecto idêntico e passa pelos mesmos ciclos, e pouco importa assistir ao mesmo
espetáculo em duzentos anos ou toda a eternidade; depois, que tanto perde o
homem que morre carregado de anos como o que conta breves dias, consistindo a
perda no momento presente; não se pode perder o que não se tem.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Trabalho e inspiração
“Um leigo pensaria que, para criar, é
preciso aguardar a inspiração. É um erro. Não que eu queira negar a importância
da inspiração. Pelo contrário, considero-a uma força motriz, que encontramos em
toda a atividade humana e que, portanto, não é apenas um monopólio dos
artistas. Essa força, porém, só desabrocha quando algum esforço a põe em movimento,
e esse esforço é o trabalho.”
Igor
Feodorovitch Stravinski
A vida
“Não, a vida não me desapontou! Pelo
contrário, todos os anos a acho melhor, mais desejável, mais misteriosa...
desde o dia em que vejo a mim a grande libertadora, a ideia de que a vida podia
ser experiência para aqueles que procuram saber, e não dever, fatalidade,
duplicidade!... Quanto ao próprio conhecimento, seja ele para outros aquilo que
quiser, um leito de repouso, ou o caminho para um leito de repouso, ou distração
ou vagabundagem, para mim é um mundo de perigos, é um universo de vitórias onde
os sentimentos heroicos têm a sua sala de baile. ‘A vida é um meio de
conhecimento’; quando se tem este princípio no coração, pode viver-se não
somente corajoso mas feliz, pode-se rir alegremente! E quem, de
resto, se ouvirá, portanto, a bem rir e a bem viver se não for primeiramente
capaz de vencer e de guerrear?”
Friedrich
Nietzsche, in A Gaia Ciência
Público
Ser intelectual
é, entre outras coisas, observar com estranheza seu nome e sua imagem se
alienarem do que você pensa.
Ser um intelectual público (se é que há outro) é:
1. Viver permanentemente com o compromisso de procurar a verdade, de
dizê-la — até onde se conseguiu compreendê-la —, de assumir as dificuldades
dessa busca, de admitir quando não se acredita estar enxergando bem e de
reconhecer os erros de interpretação e juízo quando interlocutores os apontam.
2. Aceitar qualquer pessoa como interlocutor no espaço público. Mas se
reservar o direito de responder somente às críticas ou observações que se
situem dentro da vontade honesta de compreender a realidade, recusando as
tentativas de produção de polêmicas fundadas em agressões imaginárias ou
posicionamentos a priori inamovíveis.
Foucault: “O polemista procede baseado nos privilégios que tem de antemão e que
nunca vai questionar. Ele possui, por princípio, direitos que o autorizam a
guerrear e que fazem desta luta um empreendimento justo; quem está diante dele
não é um parceiro na procura da verdade, mas um adversário, um inimigo errado e
nocivo cuja mera existência constitui uma ameaça.”
3. Não aceitar qualquer pessoa no espaço privado. Página de Facebook ou
e-mail pessoal, por exemplo, são espaços cuja soberania é privada. Certa vez
uma pessoa, cujos comentários eram obtusos e agressivos, reagiu assim a meu
pedido de que nunca mais postasse um comentário em minha página: “Vocês
liberais são engraçados: defendem o contraditório, mas mandam logo que se cale
quem os contesta”. O motivo de meu pedido de silêncio tinha sido o seguinte:
após um texto em que eu procurava compreender a articulação entre monoteísmo e
perseguição sexual, recebo a seguinte sofisticada argumentação: “Francisco
Bosco, sua filhinha é tão linda, duvido que você queira mesmo que ela cresça e
vire uma sapatão se atracando com outra sapatão na Avenida Paulista”. Isso
vindo da mesma pessoa que, comentando um texto de Vladimir Safatle que eu
compartilhara, e no qual ele defendia a extinção da PM, por ser uma polícia
formada no entendimento do cidadão como inimigo, me disse: “Se alguma vez você
for sequestrado, não tem o direito de chamar a polícia”.
4. Saber que as relações imaginárias costumam estar sujeitas a reversões
dialéticas. A linha entre a admiração e a inveja é tênue, e muitos podem se
aproveitar de um erro seu (suposto ou verdadeiro) para dar uma guinada de 180
graus na economia narcísica e atacá-lo com indisfarçável prazer.
5. Estabelecer distinções nítidas entre o público e o privado. A mais
importante: na dimensão pública suas ideias e atos devem ser justificados em
relação a todos; na dimensão privada suas ideias e atos devem ser justificados
somente para aqueles que você admite em suas relações pessoais (parece óbvio,
mas infelizmente não é).
6. Diante de certos acontecimentos, observar com estranheza seu nome e
sua imagem se alienarem completamente do que você pensa e de como você age. Ter
a curiosa experiência (uma espécie de unheimlich)
de ouvir relatado, de modo distorcido, um episódio que você testemunhou ou
protagonizou.
7. Ser agraciado com interlocuções de alto nível — que ajudam a
esclarecer, aprimorar ou descartar suas próprias interpretações —, propostas
por leitores que o conhecem originalmente apenas na dimensão pública, e passam
a tornar-se seus amigos.
8. Habitar muitas vezes conflitos entre interesses públicos e privados,
procurando manter fidelidade para com o princípio público.
9. Dizer o que realmente pensa, com a contundência necessária, quando se
trata de problemas importantes para a esfera pública. Permitir, entretanto, que
a lógica do privado interfira em seus posicionamentos públicos quando o juízo
em questão seja de pequena importância (escrever sobre o livro de um amigo, por
exemplo).
10. Pensar de acordo com suas ações, mais decisivamente ainda do que
agir de acordo com suas convicções. O primeiro caso não admite erros: falsear
as complexidades da realidade é uma grave falta com a verdade e uma incursão,
com frequência, no moralismo. Já o segundo caso admite erros — e não reconhecer
a existência deles significa justamente incorrer no primeiro caso. Karl Kraus:
“Os hipócritas morais não são odiosos por agir diferente do que professam, mas
por professar algo diferente do que fazem. [...] O condenável não é a traição à
moral, mas a moral”.
11. Lamentar ser atacado por argumentos muito mais frágeis do que os
seus. E quanto mais frágeis, mais seguros de si. A humildade é constitutiva do
verdadeiro pensamento.
12. Tentar separar, o quanto for possível, sua
interpretação da realidade e seu próprio narcisismo, de modo que as críticas
àquela não sejam tomadas como um ataque ao seu ego.
Francisco Bosco, in oglogo.globo.com/cultura, de
29/05/2013
quarta-feira, 29 de maio de 2013
O campo
"O campo
é onde não estamos. Ali, só ali, há sombras verdadeiras e verdadeiro
arvoredo."
Fernando
Pessoa
Vida vivida
“Mas há a vida que é para ser
intensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem
nenhum medo. Não mata.”
Clarice
Lispector
Meu querer espontâneo
“De certo modo, o homem é um ser que nos
está intimamente ligado, na medida em que lhe devemos fazer bem e suportá-lo.
Mas desde que alguns deles me impeçam de praticar os atos que estão em relação
íntima comigo mesmo, o homem passa à categoria dos seres que me são
indiferentes, exatamente como o sol, o vento, o animal feroz. É certo que podem
entravar alguma coisa da minha atividade; mas o meu querer espontâneo, as
minhas disposições interiores não conhecem entraves, graças ao poder de agir
sob condição e de derrubar os obstáculos. Com efeito, a inteligência derruba e
põe de banda, para atingir o fim que a orienta, todo o obstáculo à sua atividade.
O que lhe embaraçava a ação favorece-a; o que lhe barrava o caminho ajuda-a a
progredir.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos
terça-feira, 28 de maio de 2013
O Teatro Mágico: O anjo mais velho
"O
dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente"
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente"
Enquanto
houver você do outro lado
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete a cena se inverte
Enchendo a minha alma daquilo que outrora eu deixei de acreditar
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete a cena se inverte
Enchendo a minha alma daquilo que outrora eu deixei de acreditar
Tua
palavra, tua história
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar
Metade
de mim
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Só
enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Enquanto
houver você do outro lado
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete a cena se inverte
Enchendo a minha alma d'aquilo que outrora eu deixei de acreditar
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete a cena se inverte
Enchendo a minha alma d'aquilo que outrora eu deixei de acreditar
Tua
palavra, tua história
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar
Metade
de mim
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Só
enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Metade
de mim
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Agora é assim
De um lado a poesia o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim
E o fim é belo incerto... depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só
Só
enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar..
Sedução
A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.
Adélia Prado
Milton e o concorrente
Milton
ainda não abriu a sua loja, mas o concorrente já abriu a dele; e já está
anunciando, já está vendendo, já está liquidando a preços baixo do custo.
Milton ainda está na cama, ao lado da amante, desta mulher ilegítima, que nem
bonita é, nem simpática; o concorrente já está de pé, alerta, atrás do balcão.
A esposa – fiel companheira de tantos anos – está a seu lado, alerta também.
Milton ainda não fez o desjejum (desjejum? Um cigarro, um copo de vinho, isto é
desjejum?) - o concorrente já tomou suco de laranja, já comeu ovo, torrada,
queijo, já sorveu uma grande xícara de café com leite. Já está nutrido.
Milton
ainda está nu, o concorrente já se apresenta elegantemente vestido.
Milton
mal abriu os olhos, o concorrente já leu os jornais da manhã, já está a par das
cotações da bolsa e das tendências do mercado. Milton ainda não disse uma
palavra, o concorrente já falou com clientes, com figurões da política, com o
fiscal amigo, com os fornecedores. Milton ainda está no subúrbio; o concorrente,
vencendo todos os problemas de transito, já chegou ao centro da cidade, já está
solidamente instalado no seu prédio próprio. Milton ainda não sabe se o dia é
chuvoso, ou de sol, o concorrente já está seguramente informado de que vão
subir os preços dos artigos de couro. Milton ainda não viu os filhos (sem falar
da esposa, de quem está separado); o concorrente já criou as filhas, já
formou-as em Direito e Química, já as casou, já tem netos.
Milton
ainda não começou a viver.
O concorrente já está sentindo uma dor no
peito, já está caindo sobre o balcão, já está estertorando, os olhos
arregalados – já esta morrendo, enfim.
Moacyr
Scliar, in O anão e a televisão
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Palavra, firmeza
“As palavras têm sua própria firmeza. A palavra
na página não pode revelar (pode esconder) a flacidez da mente que a concebeu. Todos
os pensamentos são evoluções – ganham mais clareza, definição, autoridade ao
serem impressos – ou seja, descolados da pessoa que os pensa.”
Susan Sontag
Todos a um tempo
“Considera quantas coisas, no mesmo
instante infinitesimal, se produzem simultaneamente em cada um de nós, tanto no
domínio do corpo como no da alma. Por isso te não surpreenderá que muitos mais
acontecimentos se produzam, ou antes, que eles se produzam todos a um tempo, no
ser simultaneamente único e universal a que chamamos mundo.”
Marco Aurélio,
in Pensamentos
domingo, 26 de maio de 2013
Suporte
“Tudo o que acontece, acontece de sorte
que naturalmente o podes suportar ou naturalmente o não podes suportar; não
protestes, mas, enquanto te for possível, suporta-o. Se ao invés é coisa que
naturalmente és capaz de suportar, não reguingues, senão mais depressa dás com
tudo em terra. Lembra-te, todavia, que és naturalmente capaz de suportar tudo o
que de ti depende tornar suportável e tolerável; basta que consideres que é o
teu interesse ou o teu dever a impor-te esse trabalho.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos
A maravilha da minha terra: a sangria da Barragem de Pau dos Ferros*
Fotos: Elilson Batista
Foto: Pablo Einstein Batista
*Ah, saudade... registro fotográfico da sangria da Barragem, dia 08 de abril de 2008.
Soneto 123
Não! Tempo, não te regozijarás porque envelheço:
Tuas pirâmides erguidas com nova força
A mim não assustam, nem surpreendem;
São apenas visões de velhos lugares.
Nossos dias são breves e, portanto, admiramos
O que tu nos impõe que envelheceu;
E preferimos tê-los conforme nosso desejo,
A conhecê-los somente por suas lendas.
Desafio tanto as histórias quanto a ti,
Sem me importar com o passado ou o presente;
Pois teus livros e o que vemos ambos mentem,
Feitos, mal e mal, em tua contínua pressa:
Isto eu juro, e assim será sempre,
Serei verdadeiro, apesar de ti e tua longa foice.
William
Shakespeare
Ser humano: um projeto por concluir
"Todos os anos exterminamos comunidades
indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas
línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar
recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. Konrad
Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser
humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um
projeto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece,
a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade
de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no
engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade
do poder econômico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática
como a ocidental tenha deificado coisas abstratas como esse papel chamado
dinheiro e uma cadeia de imagens efêmeras. Devemos fortalecer, como tantas
vezes disse, a tribo da sensibilidade...”
José
Saramago, in Revista Universidad de Antioquia (2001)
sábado, 25 de maio de 2013
Duas maneiras cega a fortuna
“No golfo de uma privança, nunca o perigo
é mais certo, que quando a fortuna é mais próspera. De duas maneiras cega a
fortuna, porque cega como luz e cega como foice; com uma mão abraça, e com
outra corta; com a que abraça introduz a cegueira, e com a que corta mostra o
desengano. Consiste a prudência em que se temam os resplendores da luz, para
que se não cegue aos rigores do golpe. Não faz mal à embarcação o penedo que
sobressai por cima da água; porque para evitar o perigo sabe o piloto desviar a
nau, por ver manifesto o perigo. Nos penedos que as águas escondem, aí naufraga
sempre o baixel; porque cobriu com capa de cristal uma ruína de penhasco, e os
que, navegando pelo mar, caminham com os olhos nas ondas, facilmente se esvaem,
e quanto maior é na cabeça o esvaecimento, vem a ser mais no coração a
fraqueza. Não sabe o que navega quanto tem vencido de distância, se do mesmo
mar não tira os olhos, e só fazendo balizas na terra sabe o quanto no mar
caminham. É um golfo grande o da privança, e a maior prudência consiste em que
se divirtam de alguma vez os olhos, e que façam balizas em terra firme, que é a
verdade.”
Padre
Antônio Vieira, in As Sete Propriedades da Alma
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Suplemento - A Nova Poesia Brasileira
A
nova edição especial do Suplemento Literário, veículo da Superintendência de
Publicações e Suplemento Literário, vinculada à Secretaria de Estado de
Cultura, já está disponível. Com o título de ‘A nova poesia brasileira vista
por seus poetas’, a revista traz um painel representativo do que foi produzido
em poesia por autores nascidos a partir de 1960, com enfoque na produção desses
autores nas duas últimas décadas.
Essa seleção foi feita por poetas
brasileiros que tiveram, além desse desafio, a difícil tarefa de redigir
comentários sobre o poema que selecionaram Em números, trata-se de 54 poetas,
que escolheram 52 poemas de 40 autores.
A edição reúne poetas de diversas partes
do país, como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Rio
Grande do Norte.
Acesse
aqui para o arquivo em pdf.
Conheça e leia os 101 Maiores Roteiros do Cinema eleitos pelo Sindicato dos Roteiristas
Após o Oscar
2013, muitos dos nossos leitores nos pediram uma lista dos melhores roteiros já
feitos no cinema. Desejo pedido é desejo realizado!
O renomado Sindicato
dos Roteiristas (Writers Guild of America) tem sua própria lista dos 101
maiores roteiros do cinema de todos os tempos. Esse é o momento de aprofundar
os conhecimentos para quem quer se tornar um cinéfilo de primeira.
Entre os
listados, há clássicos como “O Crepúsculo dos Deuses“, passando por inesquecíveis
como “Pulp Fiction”, até atuais como “Brilho Eterno de Uma Mente
Sem Lembranças”.
Além de vocês
conhecerem os melhores, nós fizemos questão de buscar e disponibilizar online
(exceto alguns que realmente não estão na rede) de cada roteiro dos agraciados.
Para abrir o
roteiro, clique sobre o título e boa leitura!
Veja a lista
completa aqui.
O outro lado da vida
“Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro.
Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar,
alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de
geada… De resto, não tenho grandes projetos. Acho que o planeta está perdido e
que, provavelmente, a hipótese de Antônio José Saraiva está certa: é melhor que
isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para
olhar para os outros.”
Al
Berto, in Entrevista à revista Ler (1989)
Escrever
“Em vários aspectos, escrever é o ato de
dizer Eu, de se impor sobre as outras pessoas, de dizer escute-me, veja pelo
meu lado, mude ideia. É um ato agressivo, até mesmo hostil.”
Joan
Didion
quinta-feira, 23 de maio de 2013
O som que vem de dentro
Compositor criativo, instrumentista virtuoso, arranjador de
mão cheia. Não faltam adjetivos para qualificar o som que brota dos dedos de
Manoca Barreto – um dos gigantes da música potiguar da atualidade. Quem já
presenciou suas performances ao vivo comprovou que a guitarra é praticamente a
extensão de seu braço, tamanha a intimidade do artista com o instrumento.
Perfeccionista, professor de muita gente que está tocando (e bem) por aí,
Manoca lança seu segundo disco solo sugestivamente intitulado “O som que
vem” neste próximo sábado (25) no auditório da Escola de Música da UFRN.
Compositor,
guitarrista e arranjador, Manoca Barreto pertence a uma geração de virtuoses da
música instrumental. Há dois anos ele lapida seu segundo disco, O Som que vem,
que será lançado neste sábado, no auditório da Escola de Música da UFRN
O show de lançamento terá duas sessões: às 19h e às 20h30,
com ingressos à venda por R$ 20 na hora ou antecipado na Ótica New Vision
(Midwal Mall). A noite virtuosa terá participação de Wigder Valle (voz),
Fernando Suassuna (bateria), Rogério Pitomba (bateria), Júnior Primata (baixo),
Airton Guimarães (baixo acústico), Eduardo Taufic (piano) e Anderson Pessoa
(saxofone).
Mesmo afirmando ter dado uma relaxada no quesito
perfeccionismo, Manoca trabalhou por dois anos neste novo álbum – o disco
anterior “Bom Sinal”, de 2005, consumiu pelo menos o dobro desse tempo até
ficar pronto. “Confesso que deixei a coisa fluir de maneira mais natural neste
novo trabalho, mas muitas vezes a demora decorre de minha atividade acadêmica –
minha prioridade são as aulas”, disse com sua tranquilidade característica.
“Este trabalho chegou ao seu momento de finalização, para mim, como uma grata
surpresa. A ideia da predominância das sonoridades acústicas, somadas aos
recursos tecnológicos disponíveis, aconteceu naturalmente, e a harmonia dessa
interação é o reflexo do que penso hoje como pessoa e como artista”, avalia
Barreto.
O músico também acumula no currículo o CD “Tempo Bom”,
gravado em 2009 com o Caninga Trio ao lado do baixista Mário Cavalcanti Júnior
‘Primata’ e do saxofonista paraibano Heleno ‘Costinha’ Feitosa. “O Caninga é um
projeto muito especial pra mim, pois além da amizade há uma química musical
fantástica. E como nem sempre encontramos tempo para se dedicar ao trio,
dizemos que somos ‘caningados’ em manter o grupo funcionando”, brinca. Manoca
Barreto é, desde 1998, professor de Guitarra Elétrica, Prática de Conjunto e
Harmonia Funcional e Improvisação da EMUFRN.
Entre o jazz e as raízes
Diferente do primeiro disco solo, que reuniu músicas de
várias épocas, em “O som que vem” Manoca priorizou composições recentes. São
dez ao todo, que flertam com a cadência
brasileira e a sofisticação do jazz. Exclusivamente instrumental, este disco
traz pelo menos três detalhes que merecem destaque: o primeiro é a presença da
voz do cantor Wigder Valle em duas faixas; Wigder não canta, até por quê não há
letra, faz vocalizações na música que dá nome ao disco e em “Quando acontece”.
“É uma das melhores vozes que conheço, as músicas ganharam um brilho especial
com essa participação”, garante Manoca.
O segundo detalhe diz respeito à rendição de Manoca ao violão
de nylon, instrumento feito sob medida pelo luthier natalense Fraterno Brito.
“Sempre fui do time da guitarra, mas quando peguei esse violão comecei a
dedilhar o que viria a ser a introdução de ‘O som que vem’, por isso esse
título”, explica. A guitarra que Manoca Barreto usou durante a entrevista concedida
ao VIVER é outra pérola: nada de grife famosa ou multinacional, a guitarra
híbrida de sonoridade semi-acústica que possui saída extra para emular um
violão de aço foi construída na fábrica Cast do luthier Josino Saraiva em São
Paulo. Por último, um detalhe afetivo importante, é a dedicatória que o músico
faz a mãe em “Tudo que eu queria”. “Nem preciso dizer o tanto que ela
representa, é a mãe que eu queria se fosse para escolher”.
Quem não puder ir ao lançamento, pode adquirir o novo CD de
Manoca nas livrarias Cooperativa Universitária e Potylivros, banca Cidade do
Sol, lojas de instrumentos musicais (Musical Som e Luz, Natal Groove e Arte
Musical), pela internet está disponível no iTunes e na Amazon.
Serviço
Show de lançamento do
disco “O som que vem”, de Manoca Barreto. Sábado (25), às 19h e às 20h30, no
auditório da Escola de Música da UFRN. Preço: R$ 20. Tel: 3231-4443.
Yuno Silva, in www.tribunadonorte.com.br, de 23/05/2013
O bobo amor
“É quase impossível evitar o excesso de
amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o
amor faz o bobo.”
Clarice
Lispector
Cansaço da vida
“Não te deixes distrair com os incidentes
que te chegam de fora! Reserva-te um tempo livre para aprender qualquer coisa
de bom e deixa-te de flanar sem rumo! Já é tempo de te guardares doutra sorte
de vagabundeio. Bem loucos, com efeito, são aqueles que, por serem topa-a-tudo,
sentem o cansaço da vida e não têm um fim a que dirijam os seus esforços e,
para o dizer de uma vez, as suas ideias.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos
quarta-feira, 22 de maio de 2013
O disco
Sou lenhador. O nome não importa. A choça em que nasci e na qual logo hei
de morrer fica à beira do bosque. Do bosque dizem que se estende até o mar que
rodeia toda a terra e que nele existem casas de madeira iguais à minha.
Tampouco vi o outro lado do bosque. Meu irmão mais velho, quando éramos
pequenos, me fez jurar que nós dois derrubaríamos todo o bosque até não restar
uma única árvore. Meu irmão morreu e agora procuro e continuarei procurando
outra coisa. No rumo do poente corre um riacho em que sei pescar com a mão. No
bosque há lobos, mas os lobos não me amedrontam e meu machado nunca me foi
infiel. Não fiz o cálculo de meus anos. Sei que são muitos. Meus olhos já não
veem. Na aldeia, aonde já não vou porque me perderia, tenho fama de avaro, mas
que pode ter amealhado um lenhador do bosque?
Fecho a porta de minha casa com uma pedra para que
a neve não entre. Uma tarde ouvi passos trabalhosos e depois uma batida. Abri e
entrou um desconhecido. Era um homem alto e velho, envolto numa manta puída.
Uma cicatriz atravessava seu rosto. Os anos pareciam haver dado a ele mais
autoridade que fraqueza, mas notei que lhe custava andar sem o apoio do bastão.
Trocamos umas palavras que não lembro. Disse afinal:
- Não tenho casa e durmo onde posso. Percorri toda
a Saxônia.
Aquelas palavras convinham à velhice dele. Meu pai
sempre falava da Saxônia; agora as pessoas dizem Inglaterra.
Eu tinha pão e peixe. Não falamos durante o jantar.
Começou a chover. Com uns couros armei uma cama para ele no chão de terra, onde
meu irmão morreu. Ao chegar a noite, dormimos.
O dia clareava quando saímos de casa. A chuva
cessara e a terra estava coberta de neve recente. Deixou cair o bastão e
ordenou-me que o erguesse.
– Por que devo te obedecer? - disse-lhe.
– Porque sou um rei – respondeu.
Julguei-o um louco. Apanhei o bastão e lhe dei.
Falou uma voz diferente.
– Sou o rei dos Secgens. Muitas vezes, levei-os à
vitória na dura batalha, mas na hora marcada pelo destino perdi meu reino. Meu
nome é Isern e sou da estirpe de Odin.
– Não venero Odin – respondi. - Venero Cristo.
Como se não me ouvisse, continuou:
– Ando pelos caminhos do desterro, mas ainda sou
rei porque tenho o disco. Queres vê-lo?
Abriu a palma da mão, que era ossuda. Não havia
nada na mão. Foi então que percebi que sempre a mantinha fechada.
Olhando-me fixamente, disse:
– Podes tocá-lo.
Já com algum receio pus a ponta dos dedos sobre a
palma. Senti uma coisa fria e vi um brilho. A mão fechou-se bruscamente. Eu não
disse nada. O outro continuou com paciência, como se falasse com um menino:
– É o disco de Odin. Tem um único lado. Na terra
não existe outra coisa que tenha um só lado. Enquanto estiver em minha mão,
serei rei.
– É de ouro? - disse a ele.
– Não sei. É o disco de Odin e tem um só lado.
Então senti a cobiça de possuir o disco. Se fosse
meu, poderia vendê-lo por uma barra de ouro e seria um rei.
Disse ao vagabundo que ainda odeio:
– Na choça tenho um cofre de moedas escondido. São
de ouro e brilham como o machado. Se me deres o disco de Odin, eu te darei o
cofre.
Disse teimosamente:
– Não quero.
– Então – disse eu – podes prosseguir teu caminho.
Deu-me as costas. Uma machadada na nuca bastou e
sobrou para que vacilasse e caísse, mas, no cair, abriu a mão e vi o brilho no
ar. Marquei bem o lugar com o machado e arrastei o morto até o riacho, que
estava muito cheio. Atirei-o lá.
Ao voltar para
casa, procurei o disco. Não o encontrei. Faz anos que continuo à sua procura.
Jorge Luis Borges, in O livro de areia
A opinião
“Considera que não são as ações dos
outros que nos perturbam, pois que pertencem ao domínio das suas vontades, mas
a opinião que sobre ela formamos. Suprime-a, pois: trata de anular o juízo que
te deixa indignado e a tua cólera se desvanecerá. Como suprimi-la? Meditando em
que não há nisso nada de vergonhoso para ti, porquanto se houvesse outra coisa,
além do mal moral, que fosse vergonhosa, tu também cometerias necessariamente
muitas faltas; tu te tornarias um bandido, de qualquer maneira.”
Marco
Aurélio, in Pensamentos e Reflexões
terça-feira, 21 de maio de 2013
A escrita
“A escrita é uma pequena porta. Algumas
fantasias, feito grandes peças de mobiliário, não passarão por ela.”
Susan
Sontag
Sempre somos pó
“Esta nossa chamada vida, não é mais do
que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de
ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros
mínimo: De utero translatus ad
tumulum: Mas ou o caminho seja largo, ou breve, ou brevíssimo; como é
círculo de pó a pó sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai
circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele, tanto
mais se chega para ele: e quem, quanto mais se aparta, mais se chega, não se
aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo e não outro é o nosso fim, e
porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que
nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele: o passo que nos aparta,
esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz; e como esta
roda que anda e desanda juntamente, sempre nos vai moendo, sempre somos pó.”
Padre
Antônio Vieira, in Sermões
O nosso variável “eu”
“Sendo
variável o nosso ‘eu’, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais
deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as
circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de
escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem
dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em
demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a
mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá
tornar-se um celerado ou um herói. As grandes oscilações da personalidade
observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência,
elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As
possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os
nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O
adágio ‘Nosce te ipsum’ dos antigos filósofos constitui um conselho
irrealizável. O ‘eu’ exteriorizado representa habitualmente uma personalidade
de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas
qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também
porque o nosso ‘eu’ contém uma pequena porção de elementos conscientes,
conhecíveis em rigor, e, em grande parte, elementos inconscientes, quase
inacessíveis à observação.
O
único meio de descobrir o nosso ‘eu’ real é, já o dissemos, a ação. Cada qual
só se conhece um pouco depois de ter observado a sua maneira de agir em
circunstâncias determinadas. Pretender adivinhar como procederemos numa
situação dada é muito quimérico. O marechal Ney, quando jurou a Luís XVIII que
lhe traria Napoleão numa gaiola de ferro, estava de muito boa fé, mas não se
conhecia; um simples olhar do Imperador bastou para que mudasse a sua
resolução; o infortunado marechal pagou com a vida a ignorância da sua própria
personalidade. Se estivesse mais familiarizado com as leis da psicologia, Luís
XVIII ter-lhe-ia provavelmente perdoado.
As
teorias expostas nesta obra relativamente ao caráter podem, por vezes, parecer
contraditórias. De um lado, com efeito, insistimos na fixidez dos sentimentos
que formam o carácter e, de outro, mostramos as variações possíveis da
personalidade.
Essas
oposições irão dissipar-se rememorando os pontos seguintes:
1º. Os
carácteres formam-se a partir de um agregado de elementos afetivos
fundamentais, mais ou menos invariáveis, aos quais se juntam elementos
acessórios, facilmente mutáveis. Estes últimos correspondem às modificações que
a arte do criador aplica a uma espécie, sem modificar por isso os seus
carácteres essenciais;
2º. As espécies
psicológicas acham-se, como as espécies anatômicas, sob a estreita dependência
do meio. Devem adaptar-se a todas as mudanças desse meio e a ele, de facto, se
adaptam, quando essas transformações não são consideráveis em extremo nem
demasiadamente súbitas;
3º. Os mesmos
sentimentos podem oferecer a aparência de uma mudança quando se aplicam a
assuntos diferentes, sem que, entretanto, haja sofrido modificação na sua
natureza real. Tornando-se amor divino em certas conversões, o amor humano é um
sentimento que mudou de nome, mas não de natureza.
Todas
essas averiguações têm um interesse muito prático, porquanto se acham na
própria base de muitos problemas modernos importantes, principalmente o da
educação.
Observando
que a educação modifica a inteligência ou, pelo menos, a soma dos conhecimentos
individuais, concluiu-se que ela podia modificar igualmente os sentimentos. Era
esquecer por completo que os estados afetivos e intelectuais não apresentam uma
evolução paralela.
Quanto
mais se aprofunda o assunto, tanto mais firmemente se reconhece que a educação
e as instituições políticas desempenham um papel bastante fraco no destino dos
indivíduos e dos povos.
Essa doutrina, contrária, aliás, às
nossas crenças democráticas, parece, por vezes, contrariada também pelos fatos
observados em certos povos modernos, e é isso que sempre a impedirá de ser
facilmente admitida.
Gustave
Le Bon, in As Opiniões e as Crenças
segunda-feira, 20 de maio de 2013
Vago e vário
Tudo é vago e
muito vário
Meu destino não
tem siso,
O que eu quero
não tem preço
Ter um preço é
necessário
E
nada disso é preciso.
Leminski
Opiniões e juízos contrários
“Para
que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser
humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas
forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os
propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior,
desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença
de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho
amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma
cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma
similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E
há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera
transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma
mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa
reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis
e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento
de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes
são contrários.”
Michel
de Montaigne, in Ensaios - Da Vaidade
domingo, 19 de maio de 2013
A dor
“Normalmente, a ausência de dor é apenas
a condição física necessária para que o indivíduo sinta o mundo; somente quando
o corpo não está irritado, e devido à irritação voltado para dentro de si
mesmo, podem os sentidos do corpo funcionar normalmente e receber o que lhes é
oferecido. A ausência de dor geralmente só é 'sentida' no breve intervalo entre
a dor e a não-dor; mas a sensação que corresponde ao conceito de felicidade do
sensualista é a libertação da dor, e não a sua ausência. A intensidade de tal
sensação é indubitável; na verdade, só a sensação da própria dor pode
igualá-la.”
Hannah
Arendt, in A Condição Humana
A literatura suscita emoções eternas
“As
emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios devem variar
constantemente, mesmo que ligeiramente, para não perder a sua virtude.
Desgastam-se à medida que o leitor os reconhece. Daí o perigo de afirmar que
existem obras clássicas que o serão para sempre.
Cada
qual descrê da sua arte e dos seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em
dúvida a indefinida duração de Voltaire ou de Shakespeare, acredito (nesta
tarde de um dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.
Clássico não é um livro (repito-o) que
possui necessariamente tais ou tais méritos. É um livro que as gerações dos
homens, motivadas por razões diversas, leem com prévio fervor e com uma
misteriosa lealdade.”
Jorge
Luís Borges, in Nova Antologia Pessoal