domingo, 31 de março de 2013

A cantora Lysia Condé interpreta Ivan Lins, em Natal


Dando continuidade à série de homenagens da cantora Lysia Condé aos grandes nomes da Música Popular Brasileira, o escolhido para o mês de abril foi Ivan Lins.
Ao lado do virtuosismo de Juliano Ferreira no violão, da sensibilidade de Airton Guimarães no contrabaixo acústico e da precisão de Darlan Marley na bateria, Lysia Condé promete apresentações sofisticadas, com arranjos bem elaborados e a interpretação que lhe é peculiar.
Agenda: 
5 de abril (sexta) - Jobim Gastronomia e Música - 21h30
*6 de abril (sábado) - ZenBarCafé (Projeto Café Concerto) - 21h30*
12 de abril (sexta) - Jobim Gastronomia e Música - 21h30
19 de abril (sexta) - Jobim Gastronomia e Música - 21h30
26 de abril (sexta) - Jobim Gastronomia e Música - 21h30

Penélope IV

E ela não disse
já não te pertenço
há muito entreguei meu coração ao sossego
enquanto seu coração balançava em viagem
enquanto eu me consumia
entre os panos da noite
você percorria distâncias insuspeitadas
corpos encantados de mulheres com cujas línguas
estranhas eu poderia tecer uma mortalha
da nossa língua comum.
E ela não disse
no início ainda pensei em você
primeiro como quem arde diante de uma fogueira
apenas extinta
depois como quem visita em lembrança a praia da infância
e então como quem recorda o amplo verão
e depois como quem esquece.
E ela também não disse
a solidão pode ter muitas formas,
tantas quantas são as terras estrangeiras,
e ela é sempre hospitaleira.
Ana Martins Marques

A surpresa

Foi um domingo afortunado aquele. O Longras não esperava descascar tão cedo os dois abacaxis mais difíceis de seu elenco de vitalinas: Elvira, uma solteirona magra e míope, que havia dois anos esperava um noivo capaz de suportá-la; e Lindaura, uma dengosa moreninha, que exigia, além de “honesto, trabalhador e fiel”, um rapaz que, se vestisse, no dia da boda, um terno azul-marinho, em vez do usual costume de linho branco.
Para a solteirona magra e míope, apareceu um cidadão viúvo, o Palimércio, com oito filhos. E que andava à cata de madrasta para a pirralhada incorrigível. Tinha sessenta e cinco anos e uma farta dose de reumatismo, que lhe emperrava uma das pernas. Capengava, mas correu ao encontro de sua diva, com estrabismo e tudo, porque ela representava a solução doméstica para o seu caso. A única exigência feita era que lhe mandassem um carro à porta da residência, a fim de transportá-lo à igreja no dia do casório. Porque os táxis andavam escassos e ele não ia lá das pernas.
Para Lindaura, que era atraente e bem apanhada, apareceu o Laurentino, comerciário, branco, boa-pinta, que só tinha como defeito uma amnésia persistente, que o levava a esquecer as coisas mais importantes da vida.
O dono do programa consultou os candidatos sobre as datas dos esponsais:
- Na semana próxima – respondeu Lindaura, antes que o noivo se esquecesse do compromisso assumido.
- Devagar com o andor que o santo é de barro. Tenho de falar com uma alfaiataria, para atender seu desejo.
Quanto ao Palimércio, não haveria problema. Expediria instruções ao garagista para que mandasse buscá-lo no dia marcado.
Convencionou-se o enlace de Elvira com Palimércio e de Lindaura com Laurentino dentro de quinze dias. Os candidatos deixaram o endereço para que, na data certa, o carro e o terno azul-marinho chegassem ao seu destino.
A campainha bateu insistentemente.
Laurentino correu à porta. Abriu-a. Ninguém. Estava preocupado com o terno azul-marinho que encomendara para a cerimônia. E que não chegava nunca. Olhou o relógio. O ponteiro marcava cinco horas. A tarde caía. O alfaiate não mandava a roupa.
A campainha voltou a tocar. Espiou mais uma vez, e nada. Como o ruído continuasse, passou pelo corredor. Ouviu então de onde vinha o barulho timpânico. Não era da porta, não. Era o telefone. Seria o alfaiate desculpando-se da demora? Levantou o fone, ainda metido no pijama de listas.
- Alô.
E do outro lado, uma vozinha meiga, convidativa:
- É o Laurentino?
- Eu mesmo.
- Você está pronto?
Ainda nem sequer havia tomado banho, à espera da roupa, mas reconheceu a voz de Lindaura. Lembrou o compromisso. E teve de mentir.
-  Quase pronto. Só falta pôr a gravata e o paletó.
- Então não demore. Olhe que os padrinhos já chegaram aqui em casa. Às sete horas da tarde estaremos todos na igreja. Ficou bem o terno azul-marinho que escolhemos juntos?
- Uma luva.
- Então você deve estar uma uva. Até já, querido.
Laurentino recolocou o fone no lugar. Só depois é que considerou a questão. Ele havia prometido à noiva que se casaria de escuro e gravata cinza-clara, tendo escolhido com ela uma roupa feita. Azul-marinho. Teria esquecido, por acaso, de dar o endereço? Não. Lembrava-se de que o fizera por escrito. O que podia acontecer é que a direção do programa se houvesse equivocado, mandando o terno para outro noivo. Como a encomenda não chegava, o remédio era apelar para o costume de linho branco que a lavanderia mandara na véspera, engomadinho e reluzente. Lindaura – a sua prometida, com a qual deveria casar-se naquele dia, dentro de momentos – detestava essa indumentária, que lhe causava a sensação de casamentos feitos no Palácio da Justiça, ali na rua Dom Manuel, entre gente do povo. Ela suspirava por um casamento de gente bem. Não tendo outra solução, envergou o costume de linho. Cinquenta minutos antes da hora do casório pára, em frente à casa, um carro de luxo, com motorista em grande uniforme.
- Vim buscar o noivo.
- Sou eu mesmo.
A sorte o estava ajudando. Não contava com aquela ajuda da providência.
- Para onde vamos?
- À praça, na igreja Nossa Senhora da Paz.
O motorista conferiu o endereço com o papel que tinha no bolso. Era o mesmo. Não teve dúvida em receber o passageiro. Ainda mais que estava de branco e sapato preto, assim como quem vai casar. Laurentino olhou o relógio, esquecido de que adiantara o ponteiro a fim de não chegar atrasado. Para evitar dúvidas, pediu ao motorista que aumentasse a velocidade. Não desejava que Lindaura ficasse à sua espera. Pela primeira vez na vida queria cumprir a palavra dada a testar sua pontualidade. Em poucos minutos, o automóvel ganhou a praça. Ao descer dele, Laurentino ouviu os últimos compassos do coro, e deduziu que, mesmo tendo corrido, chegara atrasado. Que a noiva já devia haver entrado na igreja, porque não havia aglomeração na calçada. Convidados e curiosos estavam todos lá dentro, sentados ou entupindo a porta e a passagem. Que fez, então? Para ganhar tempo, embarafustou pela ala direita do templo, onde uma porta dava acesso ao altar. Vendo a noiva já de joelhos em frente ao padre, não discutiu. Acotovelou os curiosos e ganhou o degrau em que, encolhida e genuflexa, ela o esperava. Pacientemente. De cabeça baixa, como se estivesse em oração. Ou em transe.
Prosternou-se a seu lado, pedindo em voz baixa, quase imperceptível.
- Perdão pelo atraso. Depois explicarei.
Contrafeita, a moça não mudou de posição. Nem sequer moveu a cabeça para ouvir a desculpa. Devia estar impaciente, aborrecida. Por duas coisas: primeiro, pela demora do noivo, depois por vê-lo chegar de branco, em vez de terno escuro que ela mesma escolhera com ele. Sentindo a frieza com que era recebido, Laurentino justificou-a, procurando na humildade, no recolhimento, corrigir, ou, pelo menos, atenuar as culpas que carregava. À semelhança da futura esposa, enterrou a cabeça no peito, ouviu as palavras sacramentais que o sacerdote começava a proferir. Atordoados pelos imprevistos e pela série de acontecimentos que marcavam a boda, ao serem interrogados se estavam de acordo em tomar-se por legítimos esposos, ambos proferiram um sim convencional, que era mais de mau humor que de satisfação. Em todo caso, um sim. Estavam casados, irremediavelmente casados pela igreja.
Terminada a cerimônia, levantaram-se lentamente, dirigindo-se à sacristia, onde deveriam receber os cumprimentos.
Quando a noiva levantou o véu, Laurentino recuou espavorido e estupefato: tinha a seu lado uma criatura velha e vesga, que não era outra senão Elvira, cuja miopia não a deixou ver um palmo diante do nariz.
Na confusão da pressa, alguém trocara os endereços, remetendo ao Palimércio o terno que devia servir ao Laurentino. E despachando para este o carro que devia ir buscar o outro.
O resultado é que Laurentino chegara à igreja meia hora antes de sua vez. E Palimércio, atrasado e esbaforido, meia hora depois, quando Lindaura transpunha a porta do templo e o coro começava a soltar as primeiras notas da Marcha Nupcial.
Osvaldo Orico, in A vida imita os contos

Comunicação

“Se falares a um homem numa linguagem que ele compreenda, a tua mensagem entra na cabeça dele. Se lhe falares na sua própria linguagem, a tua mensagem entra-lhe diretamente no coração.”
Nelson Mandela

''Meu pequeno cachoeiro'', por Raul Sampaio



Eu passo a vida recordando
de tudo quanto aí deixei
Cachoeiro, Cachoeiro
vim ao Rio de Janeiro
pra voltar e não voltei!
Mas te confesso na saudade
as dores que arranjei pra mim
pois todo o pranto destas mágoas
ainda irei juntar nas águas
do teu Itapemirim.
Meu pequeno Cachoeiro
vivo só pensando em ti
ai que saudade dessas terras
entre as serras
doce Terra onde eu nasci!
Meu pequeno Cachoeiro
vivo só pensando em ti
ai que saudade dessas terras
entre as serras
doce Terra onde eu nasci!
Recordo a casa onde eu morava
o muro alto, o laranjal
meu flambuaiã na primavera
que bonito que ele era
dando sombra no quintal
A minha escola, a minha rua
os meus primeiros madrigais
ai como o pensamento voa
ao lembrar a Terra boa
coisas que não voltam mais!
Meu pequeno Cachoeiro
vivo só pensando em ti
ai que saudade dessas terras
entre as serras
doce Terra onde eu nasci.

Invejoso

"O invejoso emagrece com a gordura dos outros."
Horácio

O mundo mudou

Se o homem estivesse realizado com seu modo de viver urbano e confortável, não viveria sonhando com a paz de cabanas

O mundo mudou. E não estou falando isso porque o papa Bento XVI renunciou. Nem porque o próximo papa talvez seja negro, como dizem, o que seria um claro indício de mudança nos hábitos do mundo. Nem porque o Brasil agora tem como presidente uma mulher, que insistem em chamar feiamente de “presidenta”. Não. “O mundo mudou” porque está sempre mudando. E sempre estará, até que um dia chegue o seu alardeado fim (se é que chegará).
Mas quando um homem de meia idade (qual será a inteira?) afirma “o mundo mudou”, o que está verdadeiramente querendo dizer? Que assiste ao nascimento de uma outra era, quiçá. Que vê o mundo passando por uma transformação profunda, como há muito não se via, fazendo a distância de uma década parecer um século.
Hoje vivemos “protegidos” por muitos cuidados e paparicos, sempre sob a forma de “serviços”, e desde que você tenha dinheiro para usá-los, claro. Carro quebrou na marginal? Relaxe, o guincho da seguradora virá em minutos resgatá-lo. Tem dificuldade de locomoção? Espere, a empresa aérea disporá de uma cadeira de rodas para levá-lo ao terminal. Surgiu uma goteira no seu chalé em plenas férias de verão? Calma, o moço que conserta telhados está correndo para lá agora.
Vai ficando para trás um outro mundo – de iniciativas, de gestos solidários, de amizade, de improvisação (sim, “quem não improvisa se inviabiliza”, eu diria, parafraseando Chacrinha). Estamos criando uma geração que não sabe bater um prego na parede, trocar um botijão de gás, armar uma rede. Tá, o leitor agora se pergunta do outro lado: “Quem precisa disso neste mundo cheio de confortos?”...
É, talvez ninguém precise de fato. Mas tenho o orgulho e a vaidade bestas de ter em meu “currículo” a habilidade de fazer “boca de lobo”, por exemplo. Explico: quando a rede – rede de dormir, aquela que o pensador italiano Domenico de Masi considera a maior invenção humana – é longa demais, mais longa que o espaço reservado para armá-la, então damos um nó engenhoso que faz com que o punho da rede diminua, fazendo-a caber naquele espaço.
Parece ser de uma inutilidade sem fim estar aqui falando de redes e improvisações e imaginando um amigo indo ao encontro do outro para resgatá-lo no trânsito engarrafado do fim da tarde... Mas, se o homem contemporâneo estivesse tão plenamente realizado com seu modo de viver urbano e confortável, não viveria sonhando com a paz de cabanas e chalés, com férias perfeitas perto do mar azul de Alagoas, onde poderia ver tevê a cabo mas sem sair da rede (a de dormir, não a internet); nem viveria maldizendo os prestadores de serviços que lhe impõem castigos e humilhações, toda vez que atrasam a entrega ou adiam infinitas vezes a colocação da cortina da sala.
É, o mundo mudou sim. E não adianta dirigir nossas lamúrias a Deus, ocupado demais com as muitas goteiras do mundo e as dezenas de motoboys atropelados na avenida Rebouças. Só nos resta o telefone do SAC, onde gastaremos nossa bílis com impropérios ao vento; ou o site da loja de eletrodomésticos onde ninguém tem nome (que saudade dos Reginaldos, Edmilsons e Velosos!). Ligaremos para falar com a nossa própria solidão, a nossa dependência do mundo dos serviços e a nossa incapacidade de viver com real simplicidade, soterrados por senhas, protocolos e pendências vãs. Nem Kafka poderia sonhar com tal mundo.
Zeca Baleiro, in www.istoe.com.br

Desconcerto trivial

“A regra de bem viver, a pauta dos bons costumes, em ordem à bem-aventurança da terra, não sustenta créditos religiosos, nem morais, nem filosóficos diante do desconcerto trivial em que tudo se nos oferece.”
Camilo Castelo Branco

sexta-feira, 29 de março de 2013

Casuarina - Ponto de Vista



Do ponto de vista da terra quem gira é o sol
Do ponto de vista da mãe todo filho é bonito
Do ponto de vista do ponto o círculo é infinito
Do ponto de vista do cego sirene é farol.

Do ponto de vista do mar quem balança é a praia
Do ponto de vista da vida um dia é pouco
Guardado no bolso do louco
Há sempre um pedaço de deus
Respeite meus pontos de vista
Que eu respeito os teus.

Às vezes o ponto de vista tem certa miopia,
Pois enxerga diferente do que a gente gostaria
Não é preciso por lente nem óculos de grau
Tampouco que exista somente
Um ponto de vista igual.

O jeito é manter o respeito e ponto final (2x)
Composição: João Cavalcanti e Eduardo Krieger

Nenhum sentimento é indigno

“Não digas de nenhum sentimento que é pequeno ou indigno. Não vivemos de outra coisa que dos nossos pobres, formosos e magníficos sentimentos, e contra cada um que cometermos uma injustiça é uma estrela que apagamos.”
Hermann Hesse

Um disco fundamental da MPB

Nara Leão 
Opinião de Nara (1964)

Durante muitos anos, boa parte do repertório musical brasileiro gravado ficou esquecido nas prateleiras de lojas de discos ou em sebos, ocasionando uma procura muito grande daqueles que buscavam manter uma boa discoteca e/ou ouvir novamente grandes momentos de nossa canção popular. Muitos dos antigos LPs mesmo quando eles reinavam no mercado não eram relançados, e assim as novas gerações pouco conheciam do trabalho de cantores e intérpretes. As já famosas coletâneas lançavam apenas o básico do repertório de cada artista e se repetiam sempre. Com o advento do CD descobriu-se que uma maneira de esquentar as vendas do mercado fonográfico: seriam as gravadoras abrirem seus arquivos e relançarem discos históricos e fundamentais, resgatando assim um patrimônio musical inigualável e, por consequência direta, conservar de forma definitiva antigas matrizes, além, é claro, de despertar o interesse por antigos artistas que fizeram a história da música popular brasileira.
Apesar do esforço, muitos discos acabaram tendo uma tiragem pequena, porém a sua distribuição na maioria das vezes precária não se preocupou em fazer retorná-los a grandeza que tinham quando foram originalmente lançados e, dessa maneira, muitos ainda continuam esquecidos nas prateleiras das lojas, e o publico pouco sabe da sua existência, agora sob novo formato e com a gravação restaurada. É uma pena, pois um trabalho como esse merecia mais cuidado, até porque em tais relançamentos incidem custos que se não derem o resultado financeiro esperado, já que ninguém faz nada para ter prejuízo, a tendência é diminuir o ritmo de relançamentos, perdendo com isso o público e a memória de nossa canção.
Por outro lado, também muitas dessas iniciativas acabam obtendo o êxito almejado por estarem sob os cuidados de profissionais que sabem exatamente o que e porque estão empenhados nessa luta em prol da revalorização da música nacional. Estas palavras iniciais são para nos remeter aos oportunos lançamentos que já vem ocorrendo a alguns anos das obras completas de grandes interpretes/compositores, e no caso especifico nestas linhas falaremos de um LP de Nara Leão que faz parte das duas caixas com o total de sua discografia, relançada e remasterizada no formato digital.
O disco em questão é Opinião de Nara e é fundamental para uma discografia básica de música brasileira por diversos fatores, dentre eles o fato de ter despertado em Oduvaldo Viana Filho a ideia a partir de seu título de produzir um dos mais importantes shows de música brasileira em todos os tempos, Opinião, que contou além de Nara, com a participação de Zé Kéti, João do Vale e foi o responsável pelo lançamento de Maria Bethânia.
A gravação produzida pelo selo Philips iniciou-se em setembro de 1964 em São Paulo, no estúdio da Rádio Gazeta, e contava com a participação do maestro Erlon Chaves ao piano, Tião Neto no baixo e Edson Machado na bateria, sendo depois concluída no estúdio da Phonogram no Rio de Janeiro. Nara Leão nessa ocasião vinha se distanciando do rótulo de musa da Bossa Nova e partia para um repertório cada vez mais engajado: vivíamos os primeiros momentos da ditadura e a perspectiva futura era muito sombria, por outro lado, havia a forte influência em sua carreira dos compositores e das ideias oriundas dos CPCs os Centros Populares de Cultura da UNE – União Nacional dos Estudantes.
Este seu segundo LP seguiria as bases do repertório do seu primeiro trabalho produzido por Aloysio de Oliveira para a gravadora Elenco e contava com uma seleção de músicas que misturava os sambas de Zé Kéti e João do Vale indo aos compositores de sua geração como Edu Lobo e Baden Powell e outros como Tom Jobim,Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo. Nessa salada musical bem dosada não faltaram canções líricas como Derradeira primavera, de Tom e Vinicius, os sambas Labareda e Deixa, de Baden e Vinicius, Em tempo de adeus, de Edu Lobo e Ruy Guerra, Opinião e Acender as velas, de Zé Kéti, Chegança, de Edu Lobo e Oduvaldo Viana Filho, Sina de caboclo, de João do Vale e J. B. de Aquino, que tratava de reforma agrária e Esse mundo é meu, de Sergio Ricardo, que deram o toque político do disco.
Acrescente-se ainda Berimbau, de João Melo e Clodoaldo Brito, Na roda de capoeira, do folclore baiano e a clássica marcha Malmequer, de Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar, sucesso do carnaval de 1941, inaugurando um hábito de Nara que era incluir em cada um de seus discos um antigo clássico da música brasileira. Destaque também para a introdução de Opinião, de Zé Kéti, que por sugestão de Glauber Rocha, que aliás deus vários palpites no disco, vem precedida por batidas de tambores, relembrando toques marciais militares, a fim de não nos esquecermos que vivíamos momentos de um poder político oriundo das casernas.
Juntando-se tudo isso temos um disco permanente, autoral, indispensável, uma intérprete inesquecível e o melhor da música popular brasileira contemporânea. Que seja, pois, bem vindo de volta às nossas casas.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br

A felicidade

“O que é a felicidade além da simples harmonia entre o homem e a vida que ele leva?”
Albert Camus

Celebração da coragem - 2

Perguntei a ele se tinha visto algum fuzilamento. Sim, tinha visto. Chino Heras tinha visto um coronel ser fuzilado, no final de 1960, no quartel de La Cabana. A ditadura de Batista tinha muitos carrascos, coisa ruim a serviço da dor e da morte; e aquele coronel era um dos muitos, um dos piores.
Estávamos em meu quarto, numa roda de amigos, em um hotel de Havana. Chino contou que o coronel não tinha querido que vendassem os seus olhos, e sua última vontade não fora um cigarro: o coronel pediu que o deixassem comandar seu próprio fuzilamento.
O coronel gritou: Preparar! e gritou: Apontar! Quando ia gritar: Fogo!, o fuzil de um dos soldados travou. Então o coronel interrompeu a cerimônia.
— Calma — disse para a fila dupla de homens que deviam matá-lo. Eles estavam tão próximos que quase podia tocá-los.
— Calma — disse. Não fiquem nervosos.
E novamente mandou preparar armas, e mandou apontar, e quando estava tudo em ordem, mandou disparar. E caiu.
Chino contou esta morte do coronel, e ficamos calados. Éramos vários naquele quarto, e todos nos calamos.
Esticada feito uma gata sobre a cama, havia uma moça de vestido vermelho. Não recordo seu nome. Recordo suas pernas. Ela tampouco disse nada.
Passaram-se duas ou três garrafas de rum e no fim, todo mundo foi dormir. Ela também. Antes de ir embora, da porta entreaberta, olhou para o Chino, sorriu e agradeceu:
— Obrigada — disse — Eu não conhecia os detalhes. Obrigada por ter me contado.
Depois soubemos que o coronel era pai da moça.
Uma morte digna é sempre uma boa história para se contar, mesmo que seja a morte digna de um filho da puta. Mas eu quis escrevê-la, e não consegui.
Passou o tempo e esqueci.
Da moça, nunca mais ouvi falar.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

quinta-feira, 28 de março de 2013

Nova edição da Revista Formas

A Formas está aí mais uma vez com uma edição bem dedicada ao que temos de melhor: os projetos de ambientação e interiores, sem esquecer a multiplicidade de temas que sempre estampam nossas páginas.
Começamos com entrevista de um dos arquitetos mais comentados nos últimos meses. Ricardo Dantas é o responsável pelo projeto de dois dos três atuais estádios de futebol em construção. O outro é o Arena das Dunas.
Nas ambientações, um caprichado projeto de Cypriana Pinheiro para uma residência voltada ao mar, cercada do que há de melhor.
As arquitetas do escritório de Franzé Arquitetos elaboraram a ambientação de um apartamento de 120² amparadas no fator sobriedade e funcionalidade, sem deixar de lado o conforto.
Larissa Cardoso fornece boas dicas para montagem de um living, cheio de sofisticação e um projeto luminotécnico diferenciado.
Se você quer dar uma repaginada em uma antiga residência sem tirar dela o charme da época, Luzia Emerenciano e Mychelle Araújo mostram como se faz nas próximas páginas.
Maria Luzia Negreiros transformou um amplo apartamento em um espaço clean e ao mesmo tempo arrojado no uso de materiais modernos.
Se o seu estilo primar mais pelo conservadorismo e o gosto pelas peças clássicas, os arquitetos Anderson Costa e Patrícia Diniz dão algumas ideias de como montar sua ambientação.
Para fechar, mais uma vez contemplamos um município potiguar para mostrar suas riquezas naturais, potenciais turísticos e características peculiares. Desta vez é Patu, detentor de alguns recordes mundiais.
É isso.
Boa leitura!


Amor sensual

“É o destino de o amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos - isto é, que se acham inibidos nos seus objetivos - ou deve, ele próprio, sofrer uma transformação desse tipo.”
Sigmund Freud

Êxito: fazer

“As pessoas de êxito são as que souberam fazer, quando deviam fazê-lo, sem lhes importar se lhes aprazia ou não.”
Aldous Huxley

quarta-feira, 27 de março de 2013

A Palavra é poderosa

"Uma das mais remotas experiências poéticas que me ocorre é a de uma composição escolar no 3º ano primário, que eu terminava assim: "Olhai os lírios do campo. Nem Salomão, com toda sua glória, se vestiu como um deles...".
A professora tinha lido este evangelho na hora do catecismo e fiquei atingida na minha alma pela sua beleza. Na primeira oportunidade aproveitei a sentença na composição que foi muito aplaudida, para minha felicidade suplementar. Repetia em casa composições, poesias, era escolhida para recitá-las nos auditórios, coisa que durou até me formar professora primária. Tinha bons ouvintes em casa. Aplaudiam a filha que tinha "muito jeito pra essas coisas". Na adolescência fiz muitos sonetos à Augusto dos Anjos, dando um tom missionário, moralista, com plena aceitação do furor católico que me rodeava. A palavra era poderosa, podia fazer com ela o que eu quisesse."
Adélia Prado

Ideias opostas no espírito

"A marca de uma inteligência de primeira ordem é a capacidade de ter duas ideias opostas presentes no espírito ao mesmo tempo e nem por isso deixar de funcionar."
F. Scott Fitzgerald

terça-feira, 26 de março de 2013

Esculturas em cruz

A ponte mais tradicional entre religião e arte se dá pelo campo multifacetado das artes plásticas. A imagem de Jesus na cruz é a figura clássica da representação cristã e do tradicionalismo artístico. Por ela se percebe a mudança de estilo nas escolas das artes e a construção de um repertório iconográfico de imagens sacras, criadas para representar o rosto de Jesus Cristo, desde a era medieval até os dias contemporâneos.
O artista plástico Demétrius Coelho, da Galeria de Artes e Design Demétrius Coelho, de Natal – RN, iniciou uma série de esculturas inspiradas nas imagens do Jesus crucificado. São peças confeccionadas a partir de diferentes materiais, designs e tamanhos. Pelas mãos habilidosas do artista, a madeira e o ferro se fizeram arte. O mármore foi esculpido até ganhar contornos. O aço inox se moldou à forma. E a resina concedeu a beleza plástica à arte.
Todos esses materiais foram usados por Demétrius Coelho para moldar a figura de Cristo; para concretizar ideias a partir de silogismos tradicionais influenciados pelos matizes modernos. As peças compõem o silêncio sagrado de seu laboratório-atelier, situado em Petrópolis. Por lá o artista-escultor transmite seu pensamento e eterniza a sua arte, seja ela profana, sagrada ou meramente conceitual.





Siga-me

O Fotógrafo russo Murad Osmann e sua namorada Nataly Zakharova viajam constantemente a trabalho e vêm com uma única e romântica perspectiva de divulgar suas experiências pelo globo em paisagens famosas e exóticas no Instagram. Isto chamou a atenção de importantes publicações como o Daily Mail e o Huffington Post. O projeto inteiro na verdade começou por acidente: “Eu estava tirando fotos de tudo e Nataly ficou irritada, então ela me puxou para seguir em frente. Assim foi como o primeiro ‘#followmeto’ foi feito, e eu gostei bastante do resultado, então temos continuado a série desde então”.
Curta a seguir algumas fotos postadas:















Mais aqui.

Um sonhador

“E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros? É um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes... um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque ele é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, às vezes muito triste, às vezes rude, noutras muito compreensivo e enternecedor, num momento um egoísta e noutro capaz dos mais honoráveis sentimentos... não é uma vida assim uma tragédia? Não é isto um pecado, um horror? Não é uma caricatura? E não somos todos mais ou menos sonhadores?” 
Fiodor Dostoievski, in Escritos Ocasionais

A dúvida e a crença

“A dúvida é um estado de insatisfação e inquietude do qual lutamos para nos desvencilhar e passar para um estado de crença, ao passo que este é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar ou transformar numa crença em outra coisa. Pelo contrário, nós agarramos tenazmente não só ao acreditar, mas a acreditar precisamente naquilo em que acreditamos. Tanto a dúvida como a crença têm efeitos positivos sobre nós, ainda que bem distintos. A crença não nos faz agir prontamente, mas predispõe-nos a agir de uma certa maneira quando surge a ocasião. A dúvida é desprovida desse efeito ativo, mas estimula-nos a investigar até que ela própria seja aniquilada. (...) A irritação da dúvida provoca uma luta para alcançar um estado de crença.”
Charles Peirce, in A Fixação da Crença

A Arte na história

“A história da arte só pode basear-se na mais elevada e completa concepção da arte. O progresso cronológico e psicológico da humanidade na arte somente pode ser exibido mediante o contato com os mais perfeitos objetos que o homem tem sido capaz de produzir. A arte foi de início uma atividade limitada, ocupada com a seca e magra imitação tanto do significante como do insignificante. Desenvolveu-se, então, uma sensibilidade mais delicada e atraente pela natureza, e, finalmente, conhecimento, regularidade, força e seriedade foram acrescentados de tal modo que, favorecida pelas circunstâncias, a arte elevou-se às alturas, até que afinal se tornou possível para o gênio afortunado, munido de tudo isso, produzir o encantador e o perfeito. Infelizmente, porém, as obras de arte que proclamam tal facilidade, que dão aos homens um sentimento tão reconfortante, que os inspiram com liberdade e serenidade, sugerem ao artista que deseja emulá-las que elas foram criadas com igual facilidade. A mais alta realização da arte e do gênio é uma aparência de facilidade e leveza, e o imitador sente-se tentado a facilitar as coisas para si mesmo e trabalhar apenas nessa aparência superficial. Assim a arte gradualmente declina da sua condição elevada, tanto no todo como nos detalhes.”
Goethe

segunda-feira, 25 de março de 2013

Rapadura Cult: dois anos na rede


O que parecia ser uma brincadeira naquela noite de 25 de março de 2011, na criação do Rapadura Cult, tornou-se um firme compromisso na divulgação da arte e da cultura.
Poucos foram os dias – nestes dois anos – que não foram postadas matérias, por motivos justificáveis: doença ou viagens, em que eu não tinha acesso à internet.
Obrigado aos que acessam esse modesto e persistente blog.

Seiscentos e Sessenta e Seis

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Mário Quintana

Escrevo com prazer


“Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando...”
Clarice Lispector

Um dístico

Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.
Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na rua de São José, entre onze horas e meio dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.
A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos; cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho – o pedinte era um velho – mostrou em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.
Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia 0bsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da platéia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances durante anos eternos.
Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dine de l'eglise et soupe du théâtre.

Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho . O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.
É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, “Le matin catholique”, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Memo: “et le soir idolâtre”.
Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.
Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã: “'Le matin catholique”. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram um ou dois mil réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor e fossem três mil réis, ao todo; ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos, questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.
Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: “Para a missa...”
Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dísstico: “Il dine l'église et soupe du théâtre”.
De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes na mão, grave, calado, e sem remorsos.
Machado de Assis, in A Quinzena, de Vassouras, n° 7, 01/06/1886

domingo, 24 de março de 2013

O Plano Borges

Pouco mais de meio-dia, no aclamado boteco Tio Sam, tudo parece estar de acordo com a filosofia do proprietário do estabelecimento, ou seja, a normalidade. O domingo não se apresenta dos mais gloriosos, mas não chove e, a cada trinta segundos, passa uma bela moça ou formosa senhora, a caminho da praia. Às mesas do Tio Sam e do boteco que lhe é vizinho, os coroas de sempre - nenhum dos quais jamais precisou de Viagra ou semelhante, mas sempre tem um amigo que precisa - se postam tão perto quanto possível da calçada, para desfrutar da paisagem e comentar as qualidades organolépticas das desfilantes. Amavelmente cafajestes, denominam isso "apreciar o cânter" - e o cânter aqui desta calçada leblonina nunca decepciona os aficionados.
Nenhuma novidade. Como acontece frequentemente, Dick Primavera começa a dar expediente em seu celular mesmo bem antes de sentar-se. Ele insiste que são clientes de sua próspera empresa de condicionamento de ar, mas, cala-te boca, comentários maledicentes afirmam que se trata da complexa administração de uma agenda de admiradoras invejavelmente abarrotada, onde o overbooking às vezes causa um probleminha. Mas, de resto, pode-se até dizer que se instaura uma certa pasmaceira, quebrada somente por alguma observação revoltada sobre exame de próstata, a inclusão da Rejeição Não-Justificada de Paquera como grave infração no Estatuto do Idoso, ou como seria interessante que alguns de nós, seguindo altos exemplos, formássemos uma quadrilha para roubar dinheiro público, assim garantindo a famosa qualidade de vida, durante o ocaso de nossa existência. Mas é da convicção geral que o mercado está saturado, pois abundam quadrilhas e escasseia o que roubar, é grande a concorrência e não tem misericórdia.
A ausência do comandante Borges, sempre arrebatado na postulação de suas convicções, era certamente, como de costume, a grande responsável pela conversa morna e preguiçosa. A maior parte das especulações opinava que, havendo chegado a um estado pré-apoplético no dia anterior, enquanto defendia algumas de suas posições controvertidas, ele resolvera tirar o dia de folga e talvez fazer drenagem de adrenalina. Pena, porque, quando o temperamento iracundo do comandante se manifesta, não há quem não desperte de qualquer leseira. Uma tarde de domingo sem o comandante não é uma tarde completa.
Felizmente essa terminou sendo completa outra vez, porque, quando não mais era esperado, ei-lo que surge, em sua garbosa bicicleta elétrica moderníssima, de boné novo, sorridente e sem exigir forca para ninguém. Pediu um chope e bolinhos de bacalhau para os companheiros de mesa e se acomodou confortavelmente na cadeira. Belo dia, não? Meteorologicamente, podia não ser, mas historicamente era um dia lindo, um dos dias mais lindos de sua vida. Depois de muito matutar havia chegado às pinceladas finais de seu grande projeto para o Brasil, não era possível que a população não o apoiasse num plebiscito, ou coisa assim. Mas este é um problema para depois, o que interessa agora é o plano para nossa sofredora pátria.
Esse plano envolve uma cuidadosa programação de investimentos públicos, centrados na construção em massa de penitenciárias, para alojar todos os que estão fora da cadeia e tinham que estar dentro. Seria o Programa Penitenciário Nacional. Construção de presídios-modelo de primeiro mundo, embora sem firulas, tudo na austeridade de uma boa cadeia. Seriam dezenas ou centenas de vastos complexos, em todo o território nacional. A mão de obra seria basicamente de condenados já presos e do número extraordinário dos que viriam a ser presos. Os trabalhos de construção ficariam de graça, feitos por construtoras e empreiteiras delinquentes, o que não é muito difícil de achar.
- E não será o bolso do contribuinte que vai sustentar os vagabundos na cadeia! - acrescentou ele, já exaltado. - Os ricos ou os que tiverem renda pagarão a hospedagem. Cada um paga o que pode. Os alojamentos são os mesmos para todos, mas cada um paga o que pode, de forma que o ricaço vai pagar a mesma diária da suíte dele em Abu Dabi ou o aluguel do apartamento em Nova York. E o pobre, que não tiver renda nenhuma, paga com o salário que receber de seu trabalho na penitenciária. Todo mundo na penitenciária vai ter que trabalhar, porque quem não trabalhar não come. E a administração do sistema vai para a iniciativa privada, é bom negócio, vai dar bastante lucro.
Com o boom da construção civil e seu efeito multiplicador, o País prosperaria até no embalo. Mas é forçoso reconhecer, acrescentou o comandante, que, o código penal precisa ser mudado e simplificado. Só haverá pena de cadeia fechada, nada de frescura de serviços comunitários, de sair para Natal e outras colheres de chá. O que varia é o tempo de cadeia, mas qualquer infração rende cadeia. O juiz de plantão julga no mesmo dia e encana o elemento.
- Quanto aos di-menor, a lei vai ser também bem simples - finalizou ele. Para o di-menor com menos de 12 anos, vai para a cadeia o pai ou responsável, por um número de anos igual à metade da idade do vagabundinho. Para quem está entre os 12 e os 16, cadeia direta nele, por metade dos anos de sua idade. E qualquer reincidente pega pena repetida e assim sucessivamente. Que tal? Amanhã mesmo já começo a colher assinaturas na internet.
- Você vai apresentar isso como o Plano Borges?
- Não, eu detesto aparecer, fico satisfeito só em ter tido a ideia para uma solução perfeita dos nossos problemas. Quer dizer, a verdade é que eu sinto falta de um aspecto. Você não acha que as penitenciárias deviam ter uma forquinha? Ou senão uma guilhotinazinha? Cadeira elétrica eu sou contra por causa do gasto de energia, mas guilhotina vai por gravidade, corta ligeirinho...
João Ubaldo Ribeiro, in www.estadao.com.br

A palavra


"E uma vez lançada, a palavra voa irrevogável."
Horácio