quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Gonzaguinha- eu apenas queria que você soubesse




Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira

Eu apenas queria que você soubesse
Que esta menina hoje é uma mulher
E que esta mulher é uma menina
Que colheu seu fruto flor do seu carinho

Eu apenas queria dizer a todo mundo que me gosta
Que hoje eu me gosto muito mais
Porque me entendo muito mais também

E que a atitude de recomeçar é todo dia toda hora
É se respeitar na sua força e fé
E se olhar bem fundo até o dedão do pé

Eu apenas queria que você soubesse
Que essa criança brinca nesta roda
E não teme o corte de novas feridas
Pois tem a saúde que aprendeu com a vida

Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira.

Não percebemos

“Teoricamente sabemos que a Terra gira, mas nós não percebemos; o solo que pisamos não parece mexer-se e vivemos tranquilos; o mesmo acontece com o tempo de nossa vida”.
Marcel Proust

Clarão

“A centelha que constitui nossa vida consciente deve jorrar de um pólo a outro, por cima do abismo que separa os contrários, a fim de que no espaço de um clarão percebamos o mundo”.
Franz Kafka

Para a Feira do Livro

A Ángel Crespo
Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
João Cabral de Melo Neto

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A gravidez do poder

Imagem: Google


A força do poder nasce e morre no estuário da vulnerabilidade. No que se refere à condição humana. No que tange ao “sistema” essa força é permanente e fora do controle pessoal.
O poder engravida de vaidade, presunção, luminosidade e sensação de potência. Tudo isso convive na gestação. Ao fim, dá à luz a solidão. O Ex é um cultivador do capim que prospera no batente do seu retiro.
Algumas cenas brutais desse contraste ficaram tatuadas na memória como símbolos da repetição quase monótona do ritual desse teatro.
Uma delas com a esposa de Mao Tsé-Tung, após ser despojada da mais fantástica soma de poderes que já teve uma mulher. Senhora da vida e da morte numa nação. No tribunal, onde se punha para ser julgada, ela tentou impor sua autoridade. Foi subjugada por um simples soldado; esbofeteada e algemada, em público.
Na Libéria, todo o Ministério do governo deposto foi amarrado em estacas, para a humilhação pública, antes da execução. Alguns, como o Ministro da Defesa, defecaram nas calças. O único que manteve a dignidade foi o Ministro da Agricultura, o menos poderoso do grupo.
Na sua dacha, Nikita Kruschev, ex-senhor da União Soviética, cultivava tomates e ostracismo. Certa vez, ao passar por uma plantação reclamou do proprietário sobre o método empregado naquele cultivo de tomates. O agricultor, ao reconhecê-lo, respondeu: “Passe calado, pois você não manda mais em nada”.
Vi, numa ocasião, Cortez Pereira ser destratado por um ex-bajulador. O fim do poder produz o ex-chefe e o ex-babão.
Luiz Maria Alves, tempos do Diário de Natal, tinha assento de honra aonde chegasse. Testemunhei um episódio que configura o presente texto. Na promulgação da Lei Orgânica de Natal, de cuja sistematização participei, o ilustre jornalista já havia deixado a direção do Diário e tentava fundar um ouro jornal.
No início da solenidade, ele entra e ninguém toma conhecimento. Ficou em pé, com o braço escorado na soleira de uma janela. Incomodado com o descaso, fui até ele, peguei-o pelo braço e o fiz sentar-se na minha cadeira. O Presidente Sid Fonseca determinou que se providenciasse outra cadeira para mim.
Não foi só pela dívida de gratidão que tinha com ele, quando de uma discussão com o então Secretário de Segurança, Coronel Delgado. Precisei responder ao Secretário sobre uma declaração ameaçadora que ele me fizera.
Preparei um texto duro e fui bater à porta da imprensa. Ao passar pela Rio Branco, avistei Luiz Maria Alves. Aproximei-me e perguntei se podia entregar-lhe aquele texto. Ele pegou o cachimbo com a mão esquerda e com a direita recebeu o envelope.
No dia seguinte, a carta estava publicada no Diário de Natal, com chamada em destaque na primeira página.
Meu pequeno gesto foi imitação do seu gesto maior. Té mais.
François Silvestre, in Novo Jornal

Sobre lucro e louvor

“Não é só lucro o que se pode haver em moeda senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos com chaparias de ouro”.
  Machado de Assis, in O segredo do Bonzo

Piquenique

O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique.
Paulo Leminski

Amor verdadeiro

“Se verdadeiramente amo alguém, então amo a todos, amo o mundo, amo a vida. Se posso dizer a outrem Eu te amo, devo ser capaz de dizer: Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti”.
  Erich Fromm 

Saber

“Só sabemos com exatidão quando sabemos pouco; à medida que vamos adquirindo conhecimentos, instala-se a dúvida.”
Goethe

Clarice por Clarice

“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”
Clarice Lispector

Campo Geral

“Quem quiser saber meu nome
carece perguntar não:
eu me chamo lenha seca,
carvão de barbatimão…”

“Amarro fitas no raio,
formo as estrelas em par,
faço o inferno fechar porta,
dou cachaça ao sabiá,
boto gibão no tatu,
calço espora em marruá;
sojigo onça pelas tetas,
mò de os meninos mamar!”

“Ô ninho de passarim,
ovinho de passarinhar:
se eu não gostar de mim,
quem é mais que vai gostar?”
João Guimarães Rosa

A incapacidade de ser verdadeiro




 Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.
Carlos Drummond de Andrade, in Poesia e prosa

O Bem e o Mal

“Não é possível que o mal e o bem sejam perduráveis; donde se segue que, havendo durado muito o mal, esteja o bem por perto.”
Miguel de Cervantes, in Dom Quixote

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Carta aos Missionários, com Biquíni Cavadão



Missionários de um mundo pagão
Proliferando ódio e destruição
Vêm dos quatro cantos da terra
A morte, a discórdia
A ganância e a guerra
E a guerra...
Missionários e missões suicidas
Crianças matando
Crianças inimigas
Generais de todas as nações
Fardas bonitas, condecorações
Documentam na nossa história
O seu rastro sujo
De sangue e glória...
Missionários de um mundo pagão
Proliferando ódio e destruição
Vêm dos quatro cantos da terra
A morte, a discórdia
A ganância e a guerra
E a guerra...
Missionários e missões suicidas
Crianças matando
Crianças inimigas
Generais de todas as nações
Fardas bonitas, condecorações
Documentam na nossa história
O seu rastro sujo
De sangue e glória...
Vindo de todas as partes
Mas indo pra lugar algum
Assim caminha a raça humana
Se devorando um a um
Gritei para o horizonte
Ele não me respondeu
E então fechei os olhos, sua voz
Assim me bateu...

Ofensa

“Não se sente tanto a ofensa do inimigo, como a que do amigo se recebe.”
Aristóteles

Liberdade

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa 

Música: sine qua non na minha existência


"Só sei que a música é um sine qua non na minha existência. Redefine a percepção que tenho de mim mesmo, ou melhor, aquilo que eu busco no transcendental. Por outras palavras, demonstra-me a realidade de uma presença, de um "além" factual, que resiste à circunspecção analítica ou empírica. Esta realidade é simultaneamente um lugar-comum, trivial, algo de palpável e de ulterior. Exerce um singular domínio sobre nós. Nem a psicanálise nem o descontrucionismo ou o pós-modernismo conseguiram dizer algo de esclarecedor sobre a música, o que me parece um fato crucial. Esses jogos linguísticos de decifração subversiva, de suspeita na esteira da Nietzsche e Freud, são praticamente impotentes no que toca à música. Permanecem encurralados, na sua arrogância, dentro da esfera linguística que dizem relativizar ou deslindar. Por que razão os havemos de levar a sério a nível humano ou filosófico?
Outra coisa se poderá inferir - como o fez Wittgenstein quando nos contou que, mais de uma vez, o lento movimento do Terceiro Quarteto de Brahms o arredara da ideia do suicídio. A música autoriza, convida à conclusão de que as ciências teóricas e práticas ou a investigação racional jamais conseguirão decifrar completamente a existência. (...)
Os argumentos filosóficos desde a antiguidade até aos nossos dias - de Platão, de Nietzsche, por vezes de Wittgenstein - podem ter uma cadência e musicalidade distintas. As afirmações de que a arquitetura é "música congelada", de que a poesia aspira à condição de música enquanto tautologia perfeita de forma e conteúdo (sendo que na música a forma é o conteúdo e vice-versa), são imagens que exprimem verdades profundamente sentidas mas não fundadas na razão.
Quem pode definir a "alma"? Mas quem é que não percebe intuitivamente a apóstrofe de Shakespeare contra aqueles que "não têm música na alma", uma ideia cristalizada pela designação "música soul"? Não ouso sequer imaginar as limitações, a miséria humana infligida pela cegueira, mas interrogo-me se a surdez não será a mais escura das escuridades."
George Steiner, in Errata: Revisões de uma vida

Retrato do Brasil poético

Uma antologia recém-publicada na França reúne mais de cem brasileiros, ao longo de 1.500 páginas, num largo painel do País, que vai do século 16 ao 20 sublinhando as sutis afinidades entre os autores.

Les éditions Chandeigne são ousadas. Elas publicaram uma obra de 1.500 páginas, La Poésie du Brésil - Anthologie du XVIe au XXe Siècle, que apresenta as obras de 134 autores, desde os mitos ameríndios aos poetas concretistas do século 20. A tipografia é elegante e a programação visual, cuidadosa. Todos os textos são apresentados em versão bilíngue. Max de Carvalho, que organizou este monumento, traduziu os poemas para o francês com Magali de Carvalho e François Beauchamp. A poesia de um país não tem começo ou então seria preciso perscrutar os rabiscos no fundo das cavernas do período pré-histórico ou o vento das savanas. Para o Brasil, recuperar os primórdios de sua literatura é uma missão ainda mais inviável, porque os índios que habitavam as selvas antes da chegada dos portugueses não tinham escrita.
Max de Carvalho escolheu, no entanto, nos fazer ouvir, no início de sua antologia, os ecos das poesias índias. Sob o belo título Les Immémoriaux (Os Imemoriais), ele reagrupa lendas submersas ou cantos recolhidos entre xamãs pelos etnólogos. Alguns objetarão que os primeiros poetas do Brasil desprezavam a palavra indígena como um peixe despreza uma maçã e que eles eram mais influenciados pelas canções de gesta da Europa do que pelas tribulações do pássaro amarelo ou do grande peixe amazônico.
Isso não é absolutamente exato. Entre os primeiros poetas portugueses, encontram-se homens, jesuítas, sobretudo - por exemplo, o apóstolo do Brasil, o grande José de Anchieta (1534-1597) -, que falavam o guarani. Anchieta é conhecido pelos sermões furiosos equivalentes aos de Bossuet no século seguinte. Ele também escrevia poemas poderosos. Um dia, na condição de refém voluntário dos índios tamoios, ele escreveu na areia de uma praia, com a ponta de seu cajado, um poema de 6 mil versos, os quais decorou e posteriormente transcreveu. Alguns consideram essas caligrafias de areia como o primeiro poema do Brasil.
Matéria completa aqui.

Provérbio revisado

Minha mãe me ensinou:
“O que tem de ser tem muita força”.
Mas começo a perceber
Ser preciso que este dito se distorça.
Por isso tenho dado força
Pra mudar “o que tem de ser”.
Leila Miccolis

Caráter

"Os homens de caráter são a consciência da sociedade a que pertencem. A medida natural dessa força é a resistência às circunstâncias. Os homens impuros julgam a vida pela versão refletida nas opiniões, nos acontecimentos e nas pessoas. Não são capazes de prever a ação até que ela se concretize. Todavia, o elemento moral da ação preexistia no autor e a sua qualidade, boa ou má, era de fácil predição. Tudo na natureza é bipolar, ou tem um pólo positivo e um pólo negativo. Há um macho e uma fêmea, um espírito e um fato, um norte e um sul. O espírito é o positivo, o fato é o negativo. A vontade é o norte, a ação é o pólo sul. O caráter pode ser classificado como tendo o seu lugar natural no norte. Distribui as correntes magnéticas do sistema. Os espíritos fracos são atraídos para o pólo sul, ou pólo negativo. Só veem na ação o lucro, ou o prejuízo que podem encerrar.
Não podem vislumbrar um princípio, a não ser que este se abrigue noutra pessoa. Não desejam ser amáveis mas amados. Os de caráter gostam de ouvir falar dos seus defeitos; aos outros aborrecem as faltas; adoram os acontecimentos; vinculam a estes um fato, uma conexão, uma certa cadeia de circunstâncias e dai não passam. O grande homem sabe que os eventos são seus servos: estes devem segui-lo.
Uma dada ordem de acontecimentos não tem poder para lhes garantir a satisfação proporcional ao grau de imaginação de que são dotados. O espírito da bondade transcende qualquer série de circunstâncias, ao passo que a prosperidade pertence a um determinado espírito e introduz a força e a vitória, seus frutos naturais, em qualquer ordem de acontecimentos."
Ralph Waldo Emerson, in O Caráter

Bilhar

Da série Poesia numa Hora Dessas?!

"E essa agora?
Se o que explodiu sobre a
Rússia mostrou alguma coisa
foi que meteoro não tem hora."



O mais assustador do meteoro que cruzou o céu da Sibéria e explodiu no ar como várias bombas atômicas é que ele chegou sem ser anunciado. Com todas as atenções voltadas para o outro asteroide, o que passou de raspão, o asteroide da Sibéria entrou pela porta dos fundos sem ser detectado. A desculpa é que era pequeno demais para chamar a atenção e por isso os alarmes não funcionaram. Nossa ilusão, até agora, era que qualquer detrito espacial que se aproximasse de nós seria identificado e rotulado, e sua trajetória calculada até o último milímetro com grande antecedência, o que nos daria tempo para preparar o espírito - ou usar nossos cartões de crédito até o limite - no caso da colisão com a Terra ser inevitável. Agora sabemos que qualquer coisa menor do que meio campo de futebol pode chegar de surpresa e explodir sobre nossas cabeças. Só nos faltava essa.
Imagino que tenha gente pensando em como evitar a catástrofe, no caso de um asteroide gigante vir em nossa direção. O cinema já previu algumas soluções, como a de mandar um foguete com ogiva nuclear desintegrar o bólido antes que ele nos atinja. O problema é o asteroide grande se desintegrar em vários asteroides pequenos, como o que assustou a Sibéria, o que não seria vantagem. Outra dúvida é como nos comportaríamos se nenhum plano de defesa se mostrasse viável e nosso destino fosse, fatalmente, o dos dinossauros, que desapareceram depois que o choque de um asteroide mudou o clima da Terra. Como a perspectiva de uma morte coletiva, que não distinguisse classes, ricos e pobres, virtuosos e pecadores afetaria as relações humanas, nos nossos últimos dias de existência? Não tenho nenhuma vontade de descobrir. Se bem que a situação até daria uma boa crônica.
Corpos celestes se chocando no espaço lembram o que disse o Einstein sobre a aparente desorganização do Universo. Ele negou que fosse tudo aleatório e não seguisse nenhum plano. Deus, afirmou Einstein numa frase que ficou famosa, não joga dados com o Universo. Tinha razão. Não joga dados, joga bilhar.
Luís Fernando Veríssimo, in www.estadao.com.br, coluna Cultura

Não se pode nomear a Beleza

“Certa noite, longe daqui alguém me disse que a procura da Beleza é a procura de um lugar perdido. A perda desse lugar leva os Homens a sentirem uma enorme e incurável melancolia por se tratar de uma harmonia esquecida, um tempo onde se decifravam as chaves do Universo pelas imagens, uma "Idade de Ouro" perdida (a Arcádia de Virgílio?), um mundo em que as correspondências eram compreendidas e comunicadas. Não se pode nomear a Beleza, nem explicá-la, nem falar dela. A beleza salva. A cor deslumbrante, a suntuosa construção, o luxo agressivo, a sedução das violentas estruturas da Beleza. A construção da Beleza tem de ser possível, a Forma será o seu caminho. A Beleza no horror irá sarar as minhas feridas.”
Rui Chafes, in Os laços invisíveis

Cuidar ou não cuidar... eis a questão!


Imagem: Google

Carrego comigo o insuportável mau hábito de querer estar próximo de quem gosto, esta vontade besta de querer cuidar de quem pretensamente penso ser meu, esta babaquice de zelar pelo outro ser como você gostaria de ser zelado, bobagem de quem quer cultivar sementes em deserto - terra infértil - coisa de romântico abobalhado.
Há de deixar-se que floresça ao léu o que tiver que florescer, como o xique-xique no sertão que não se entrega à secura da terra quente e faz brotar seus frutos e flores.
Há que se furar no espinho, assim mesmo, os que não sabem distinguir o dissabor do estar longe, da prazenteira felicidade do que é perto e doce.
Se é liberdade tal proeza, que seja, eu prefiro o aprisionamento do enlaçar das mãos, a mão na cintura, a boca no lábio alheio, a vontade de não sair, de não fechar a porta, de correr pros braços.
Carrego comigo um monte de sentimentos em desuso no velho baú de sonhos que hoje já quase não mais fazem sentido.
Piegas, diriam tantos. E eu vou seguindo na multidão, cultivando estas coisas sem saber ao certo se um dia ainda irei usá-las.
Não está errado querer ser só, viver os dias sem algemas que o cerceiem as loucuras que sejam, mas não está certo a desventura da solidão para quem se conquista. Senão, abre mão, deixa voar, pois se já não é importante a presença, que a ausência se faça companhia.
Caio César Muniz, in Coluna Recitanda, de O Mossoroense, 24/02/2013

Deus

“...Vejo sobre a faixa de sol coberta de neve uma minúscula rã. Ela pisca um olho e arregala o outro. Sem se mexer, ela me observa. Compreendo que se trata de Deus.”
Gao Xingjian, in A montanha da alma

Os livros

Imagem: google

"Penso que devemos ler apenas os livros que nos ferem e apunhalam. Se o livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para que o lemos? Para que nos faça felizes, como quando se escreve? Santo Deus, nós seríamos felizes precisamente se não tivéssemos livros e o tipo de livros que nos fazem felizes são aqueles que nós próprios poderíamos escrever, se fosse preciso. Mas nós precisamos dos livros que nos afetem como uma calamidade, que nos magoem profundamente, como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós próprios, como sermos desterrados para florestas distantes de toda a gente, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado que há dentro de nós."
Franz Kafka

Chegou o tempo

Chegou o tempo...
Chegou o tempo de fechar as mãos,
De recolher as dádivas e dar: 

Pra quê bramir no peito o coração,
inflorar a tristeza, encaminhar
quedas no precipício, no vazio,
insculpir vozes que não têm som, 

em terra seca libertar sementes... 

Pra quê por outros ter os desafios,
Aveludar angústias, dores, com
Sorrisos entre os lábios permanentes? 

Chegou o tempo de me despedir
e adormecer nos brados do cansaço:
serenamente os dias a provirem
alheios à jornada dos meus passos.
António Salvado 

Não escrever

“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.
Clarice Lispector

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Música: Luz

“Não será preciso nenhuma luz e ele que toque a Sonata ao Luar no escuro para melhor se esclarecerem as coisas.”
Marcel Proust

Prunus em Flor

Prunus en fleur. Musée de Shanghai, de Shitao, artista chinês (1642-1707) 

Amor e desprezo

“É essa a inclinação natural das mulheres – Disse Dom Quixote: - desdenhar quem as quer e amar a quem as despreza.”
Miguel de Cervantes

Os outros

“Os outros”
Pronunciamos “uzoutrus”.
Uso os outros.
Elilson Batista

Elogio da velhice

“Aquele que envelhece e que segue atentamente esse processo poderá observar como, apesar de as forças falharem e as potencialidades deixarem de ser as que eram, a vida pode, até bastante tarde, ano após ano e até ao fim, ainda ser capaz de aumentar e multiplicar a interminável rede das suas relações e interdependências e como, desde que a memória se mantenha desperta, nada daquilo que é transitório e já se passou se perde.”
Hermann Hesse, in Elogio da Velhice

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Zizi Possi - Canção de protesto


Porque será
Que fazem sempre tantas
Canções de amor
E ninguém cansa
E todo o mundo canta
Canções de amor
De minha parte
Às vezes não aguento
Noventa e nove e um pouco mais por cento
Das músicas que existem são de amor
E quanto ao resto
Quero cantar só
Canções de protesto
Contra as canções de amor
Odeio "As Time Goes By"
O manifesto
Canções de amor
Muito ciúme, muita queixa, muito "ai"
Muita saudade, muito coração
É o abusar de um
Santo nome em vão
Ou a santificação de uma banalidade
Eu queria o canto justo na verdade
Da liberdade só do canto
Tenra, limpa, lúcida, e no entanto
Sei que só sei querer viver
De amor e música.
Composição: Caetano Veloso

Mundo macro


Secção transversal de tintas de parede de um teatro do século 18. Cada nível representa uma camada de tinta diferente, que foi visualizado com luz refletida, ampliado 100 vezes em um microscópio.
Imagem de Natasha Loeblich, Colonial Williamsburg Foundation.

Opinião e realidade

“Se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.”
Machado de Assis, in O segredo do Bonzo

Opiniões alheias

“A borboleta acha-nos pesados, o pavão mal vestidos, e a águia rasteiros.”
Joaquim Nabuco

Mulher, não ames!

Original de Joaquim Manoel de Macedo:

Mulher, Irmã, escuta-me: não ames,
Quando a teus pés um homem terno e curvo
jurar amor; chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
as lágrimas são gotas de mentira
E o juramento manto da perfídia.
    
Versão de Manuel Bandeira:

Teresa, se algum sujeito bancar o
sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredite não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

Acerca da índole

“A índole é, muitas vezes, ocultada; outras, subjugada; quase nunca extinta. A força faz a índole mais violenta, em represália; a doutrina e o discurso tornam-a menos importuna; somente o costume alcança alterá-la e refreá-la. Àquele que busca vencer a sua própria índole não se deve propor tarefas nem muito grandes nem muito pequenas; as primeiras tornar-se-ão desalentado ante os sucessivos fracassos; as outras, devido às repetidas vitórias, tornar-se-ão convencido. A princípio, deve-se adestrar com auxílios, como o fazem os nadadores com bexigas ou cortiças; mas ao cabo de certo tempo, é mister se adestre com desvantagens, como os dançarinos com sapatos pesados. Chega-se a grande perfeição quando a prática é mais árdua do que o uso. Quando a índole é pujante e, por consequência, difícil de vencer, o primeiro passo será resistir-lhe e deter-lhe os ímpetos a tempo, a exemplo daquele que, quando estava irado, repetia as vinte e quatro letras do alfabeto; em seguida, racioná-la em quantidade, como o que, proibido de beber vinho, passou dos repetidos brindes a um trago nas refeições; por fim, anulá-la de todo.
Não erra o antigo preceito em recomendar que, para endireitar a índole, se a encurve até ao extremo contrário, contanto que este não seja vicioso. Ninguém deve impingir a si mesmo um hábito com perpétua continuidade, mas sim com alguma intermitência. A pausa reforça a nova arremetida, e se alguém que não seja perfeito estiver sempre em adestramento, exercitará tanto os seus erros quanto as suas habilidades, convertendo ambos em hábitos; e não há outra maneira de evitar isso senão mediante intermitências regulares. Que ninguém confie excessivamente na vitória que alcançou sobre a sua própria índole, pois esta pode permanecer soterrada por longo tempo e, contudo, reviver conforme a ocasião ou tentação.”
Francis Bacon, in Ensaios Civis e Morais

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Comissão: Para quê?

“Uma comissão consiste de uma reunião de pessoas importantes que, sozinhas, não podem fazer nada, mas que, juntas, decidem que nada pode ser feito.”
Fred Allen

A arte imita a vida: Ganhador do festival de Berlim volta para vida modesta na Bósnia


Ganhador do festival de Berlim, ator, sucateiro, pai, marido ou um excluído da sociedade?
As flores e aplausos com que Nazif Mujic foi recepcionado nesta semana na Bósnia após ganhar o prêmio de melhor ator no Festival de Berlim marcam o auge de uma série de surpresas inacreditáveis na vida desse cigano pobre e marginalizado.
"Realizei meu sonho 100 por cento", disse Mujic a jornalistas ao chegar na segunda-feira ao norte da Bósnia.
Mujic se tornou inesperadamente famoso ao interpretar a si mesmo em "An Episode in the Life of an Iron Picker", filme baseado nas duras circunstâncias da sua vida real, e coestrelado por sua mulher, Senada Alimanovic.
O filme aborda as dificuldades de Mujic para manter a mulher e as duas filhas numa sociedade em que o dinheiro parece ser mais importante que a vida humana.
O fato de a família ser cigana agrega uma dimensão adicional de preconceito e alienação, mas a história contada pelo cineasta bósnio Danis Tanovic é mais universal.
Os alunos foram dispensados das aulas na segunda-feira na aldeia de Poljice para recepcionar o cigano desempregado, que sustenta a mulher e três filhos catando sucata.
"Bravo, Nazif", aplaudiam os vizinhos enquanto ele dirigia um carro pela esburacada rua que leva até sua deteriorada casa, no vizinho povoado de Svatovci.
Fonte: Reuters

Igualzinha, igualzinha



Margô voltou de Paris com uma bolsa Vuitton. Contou para as amigas o que passara para comprar sua bolsa Vuitton. Entrara numa fila enorme em frente à loja Vuitton do Champs Elysées. No frio! Chegara a brigar com uma japonesa ("Ou chinesa, sei lá") que tentara cortar a sua frente na entrada da loja. Lá dentro, custara a ser atendida. Uma multidão. Mas finalmente conseguira.
- E aqui está ela - disse Margô, mostrando a bolsa Vuitton como um troféu.
Foi quando aconteceu uma coisa que a Margô jamais esperaria. A Belinha mostrou a sua bolsa e disse:
- Igual à minha.
Houve um silêncio constrangido. Depois que se recuperou da surpresa, Margô sorriu e perguntou:
- Você também esteve em Paris, querida?
- Estive
- Que inferno, a fila da Vuitton, né?
- Eu não comprei a bolsa na loja da Vuitton.
- Ah, não? Não foi no Champs Elysées?
- Foi, mas na outra calçada.
- Como?
- Estavam vendendo na rua. Por 19.
O sorriso da Margô desapareceu. Sua bolsa Vuitton custara exatamente 1.900, na loja.
- Ah. Imitação - disse.
- Mas é igualzinha.
- Igualzinha, igualzinha, não - corrigiu Margô. - A minha é legítima. A sua é falsa.
Belinha então propôs que todos examinassem as duas bolsas, para descobrir se havia alguma diferença. Não encontraram nenhuma.
À noite, na cama com seu marido Oscar, Margô ainda estava furiosa.
- Cachorra!
- O que, bem?
- A Belinha. Não precisava ter esfregado a bolsa de 19 na minha cara.
- Mas ela foi honesta. Poderia dizer que comprara a bolsa na loja, igual a você. Poderia ter mentido.
- Você não vê? Ela me chamou de otária. De nova-rica deslumbrada. De, de...
- Calma. Sabe que essa é uma questão filosófica? - disse Oscar. - Uma imitação perfeita só deixa de ter o mesmo valor do original quando é descoberta. Dizem que várias obras atribuídas ao Rembrandt não são dele, são de um falsificador. Mas continuam nos museus, encantando todo o mundo. Por que estragar o prazer de ver ou ter um Rembrandt, por um detalhe?
- Oscar, você não está me ajudando.
Hoje, quando alguém comenta a bolsa da Margô e pergunta se é Vuitton, ela responde.
- Parece, não é? Mas comprei numa calçada do Champs Elysées. Por US$ 19!
Luís Fernando Veríssimo, in www.estadao.com.br

Amor vem de amor

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“De mim, pessoa, vivo para a minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é a minha neblina...”
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa