sábado, 29 de dezembro de 2012
Consciência da imperfeição da vida
Nasce
o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os
ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por
imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e
semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá
o nome de ideal.
Por
muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por
imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três
conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.
Podemos
ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita; é a
imperfeição que imputamos a um artefato mal fabricado. Podemos, por contra,
tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na
essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa
coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como
se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos
clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita
porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios,
aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que
falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria
ser. Assim, todo o corpo é imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a
vida vida imperfeita porque, durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito
porque o envelhece o cansaço; toda a compreensão imperfeita porque, quanto mais
se expande, em maiores fronteiras confina com o incompreensível que a cerca.
Quem sente desta maneira a imperfeição da vida, quem assim a compara com ela
própria, tendo-a por infiel à sua própria natureza, força é que sinta como
ideal um conceito de perfeição que se apoie na mesma vida. Este ideal de
perfeição é o ideal helénico, ou o que pode assim designar-se, por terem sido
os gregos antigos quem mais distintivamente o teve, quem, em verdade, o formou,
de quem, por certo, ele foi herdado pelas civilizações posteriores.
Pelo segundo destes critérios
teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência,
ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior - inferior a qualquer
coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a
superioridade. É esta inferioridade essencial que, neste critério, dá às coisas
a imperfeição que elas mostram. Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura
o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a essência do que é vil é não
poder durar; desaparece a juventude porque é um episódio desta vida passageira;
murcha a beleza que vemos porque cresce na haste emporal. Só Deus, e a alma,
que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o
ideal que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristianismo a religião
que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais
perfeitamente o definiu para nós.
Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida
por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não
existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta
imperfeição. Teremos a vida por ilusória; não já imperfeita, como para os
gregos, por não ser perfeita; não já imperfeita, como para os cristãos, por ser
vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera aparência,
absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é
vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de imperfeição que
nasce aquela forma de ideal que nos é mais familiarmente conhecida no budismo,
embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia muito antes daquele
sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É
certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos
espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase todas as confissões. Como,
porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente
apareceram, podemos ser imprecisos, porém não seremos inexatos, se dermos a
este ideal, por conveniência, o nome de ideal índio.
Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção
Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
O Centauro - Desafio*
O Centauro
Nasci numa verde campina
De coice, casco, anca e crina
De peito, dorso e olho forte.
- Criei-me virado pro norte.
De coice, casco, anca e crina
De peito, dorso e olho forte.
- Criei-me virado pro norte.
Meu porte era príncipe e pelo
Meu corpo dourava meu pelo.
Meu signo – abril - era Touro
- Nasci sem temer matadouro.
Meu signo – abril - era Touro
- Nasci sem temer matadouro.
Galope, galardo, galante.
Valente, valoroso, vadiante.
Fui xucro, sem sela, selvagem.
- Não fui parte, eu era a paisagem!
Beleza de Pégasus e fúria,
- Sem marca e sem ter ferradura.
Em raio e relâmpago a raça.
Em raio e relâmpago a raça.
De corpo corcel a couraça.
Mas manso em malícia e meloso
Em arrodear égua em ouso...
E assim me cresci tempo afora
E assim me cresci tempo afora
E vim dar nos tempos de agora.
E que por cavalo me tomem,
Que estes, então, não me domem,
Porque, quem domar pode o homem,
Quem nunca o animal domar pôde?
E logo, quem não domar pode
Porque, quem domar pode o homem,
Quem nunca o animal domar pôde?
E logo, quem não domar pode
O bicho ou o homem, então como
Domar se a mim não me domo?
É que bicho ou homem já é raro,
então domar como, um CENTAURO?...
Paulo
César Pinheiro
Desafio
Éramos eu e um cavalo
No seu galope macio
Pulando cerca de arame
Pisando morro de pedra
Andando em leito de rio.
No seu galope macio
Pulando cerca de arame
Pisando morro de pedra
Andando em leito de rio.
Éramos eu e um cavalo
E era um cavalo bravio
Casco de lâmina forte
Andar de chão de montanha
Crina de véu e pavio
Ele bufando fagulha.
E era um cavalo bravio
Casco de lâmina forte
Andar de chão de montanha
Crina de véu e pavio
Ele bufando fagulha.
E eu contraído de frio
Mandado pelo barroso
Éramos eu e um cavalo
Indo de encontro ao vazio.
Mandado pelo barroso
Éramos eu e um cavalo
Indo de encontro ao vazio.
Éramos nós e os cavalos
Feitos do mesmo feitio
Vindo de todos os lados
E sobre eles sangrentos
Seus cavaleiros sombrios.
Feitos do mesmo feitio
Vindo de todos os lados
E sobre eles sangrentos
Seus cavaleiros sombrios.
Éramos nós e os cavalos
A nos causar calafrios
Todos os outros já mortos
Por essa causa contrária
Que se chamou poderio.
A nos causar calafrios
Todos os outros já mortos
Por essa causa contrária
Que se chamou poderio.
E
eu com uma bala no peito
Meu alazão nos baixios
Caímos da cordilheira
Deixando a causa nas lendas
Pra quem quiser desafio.
Meu alazão nos baixios
Caímos da cordilheira
Deixando a causa nas lendas
Pra quem quiser desafio.
Composição:
Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro
* No CD Casa de Morar, de Renato Braz
Acerca do aborrecimento
“Uma das características essenciais do
aborrecimento consiste no contraste entre as circunstâncias presentes e outras
mais agradáveis que exercem uma força irresistível sobre a imaginação. É também
essencial que as faculdades do indivíduo não estejam inteiramente ocupadas.
Fugir diante de inimigos que pretendem tirar-nos a vida, deve ser desagradável,
mas certamente não é aborrecido. Um homem também não se sente aborrecido quando
é executado, a não ser que tenha uma coragem quase sobre-humana. Da mesma
maneira nunca ninguém bocejou ao pronunciar o seu primeiro discurso na Câmara
dos Lordes, salvo o falecido duque de Devonshire, que por isso mesmo se tornou
célebre. O aborrecimento é essencialmente um desejo frustrado de aventuras, não
necessariamente agradáveis, mas pelo menos de incidentes que permitam à vítima
do tédio distinguir um dia dos outros dias. O oposto do aborrecimento é, numa
palavra, não o prazer, mas sim a agitação.”
Bertrand
Russell, in A Conquista da Felicidade
José Arcadio Buendía
“Já quase pulverizado pela profunda decrepitude da
morte, Prudêncio Aguilar vinha duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de
galos. Prometiam fazer uma criação de animais magníficos, não tanto para
desfrutar umas vitórias que no momento já não lhes fariam falta, mas para ter
alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. Era Prudêncio
Aguilar quem o limpava, quem lhe dava de comer e quem lhe dava notícias
esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e que era coronel de
guerra. Quando só, ele se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava
que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com
a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo
quadrinho da Virgem dos Remédios na parede do fundo. Desse quarto passava para
outro exatamente igual, cuja porta abria para passar para outro exatamente
igual, e em seguida para outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir
de quarto em quarto, como numa galeria de espelhos paralelos, até que Prudêncio
Aguilar lhe tocava o ombro. Então voltava de quarto em quarto, acordando para
trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto
da realidade. Uma noite, porém, duas semanas depois de o terem levado para a
cama, Prudêncio Aguilar tocou-lhe o ombro num quarto intermediário, e ele ficou
ali para sempre, pensando que era o quarto real. Na manhã seguinte, Úrsula lhe
levava o café quando viu se aproximar um homem pelo corredor. Era pequeno e
atarracado, com um terno de fazenda negra e um chapéu também negro, enorme,
enterrado até os olhos taciturnos. ‘Meu Deus’, pensou Úrsula. ‘Eu teria jurado
que era Melquíades’. Era Cataure, o irmão de Visitación, que havia abandonado a
casa e fugido da peste da insônia, e de quem nunca se tornou a ter notícia.
Visitación perguntou-lhe porque tinha voltado, e ele respondeu na sua língua
solene:
- Vim ao funeral do rei.
Então entraram
no quarto de José Arcadio Buendía, sacudiram-no com toda a força, gritaram-lhe
ao ouvido, puseram um espelho diante das fossas nasais, mas não puderam
despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o
ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores
amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa,
e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento.
Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha
compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o
enterro pudesse passar.”
Gabriel Garcia Márquez , in Cem Anos de Solidão
Bóson de Higgs foi o maior avanço científico do ano, diz revista Science
O físico Peter
Higgs, pai da teoria do bóson de Higgs, posa ao lado de estátua de Albert
Einstein, em Barcelona, na Espanha
A
descoberta do Bóson de Higgs, partícula que explica o mistério da massa, lidera
uma lista dos 10 principais avanços científicos de 2012, divulgada esta
sexta-feira (21) pela revista Science. A "Partícula de Deus"
recebeu o nome de Peter Higgs, um britânico tímido e de fala mansa de 83 anos
que, em 1964, publicou um trabalho conceitual sobre a partícula - o físico
belga François Englert, 79, contribuiu com a pesquisa separadamente.
Na
sua teoria, Higgs explicou que o bóson de Higgs, que ficou desconhecido por
quase 50 anos, é responsável por criar um campo de força dentro do átomo que dá
massa às partículas. Isso significa que se elas interagem bastante com o
campo, como é o caso dos quarks, elas passam a ser mais massivas; mas se
interagem menos, elas ficam com pouca massa, como os életrons.
Sem
essa partícula, os cientistas dizem que os átomos agrupados do Universo -
inclusive os seres humanos, que são feitos de uma cadeia de carbono -
não poderiam existir. E afirmam que todos nós seríamos como os raios de
luz, já que os fótons (partículas que não têm massa no átomo) não são atraídos
pelo bóson de Higgs e passam direto pelo campo de força.
Matéria
completa aqui.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
Imperscrutável
/Um dia em segredo
Um salto na eternidade
Vou desaguando pelo espaço/
/Eu brinco, grito, deixo as horas
Faço pouco caso do tempo
Deixo acontecer./
/Verde, como eu te quero
Fogo que queima o verde
Lento, covarde, em chamas
Imperscrutável, enfastiado./
/Entropia, poesias, entre linhas
Leve o fardo leve tudo
Se alimente, seja gente
Seja breve , apenas seja/
[...]
Vou desaguando pelo espaço/
/Eu brinco, grito, deixo as horas
Faço pouco caso do tempo
Deixo acontecer./
/Verde, como eu te quero
Fogo que queima o verde
Lento, covarde, em chamas
Imperscrutável, enfastiado./
/Entropia, poesias, entre linhas
Leve o fardo leve tudo
Se alimente, seja gente
Seja breve , apenas seja/
[...]
Cláudio
Castoriadis, poeta
mossoroense
Não entender
“Não entendo. Isso é tão vasto que
ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode
não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não
entender, do modo como falo, é um dom. não entender, mas não como um simples
espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como
ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só
que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo.”
Clarice
Lispector
O amor alheio
Quiseste expor teu coração a nu
E assim, ouvi-lhe todo o amor enleio.
Ah, pobre amigo, nunca saibas tu
Como é ridículo o amor... alheio!
Mário
Quintana
A brilhante arte subversiva de Banksy
Quem disse que
é preciso ser famoso para fazer sucesso? Apesar do aparente paradoxo, o
grafiteiro Banksy se encaixa no perfil de artista que todo mundo conhece, mas
ninguém sabe exatamente quem é. Seus grafites e intervenções urbanas são
internacionalmente notórias, mas até hoje sua real identidade permanece em
segredo.
Autor de
diversas obras carregadas de críticas ao modelo capitalista (e da pra perceber
que ele possui uma “amor” especial pelos EUA), à guerra e à desigualdade, seu
anonimato torna-se compreensível na proporção de sua criatividade.
A começar pela
sua especialidade, o grafite, que por si só representa a quebra da ordem na
sociedade civilizada: se faz em lugares pouco propícios, retrata o inconsciente
coletivo e cada vez mais - seja como forma de expressão artística, de denúncia
social ou de ambos os aspectos - se solidifica como parte do cenário urbano.
Tal cenário é
a principal tela de pintura de Banksy, que se apropria desde pequenas fendas
nos muros de becos londrinos até visíveis fachadas de construções abandonadas.
Mas o melhor é que sua arte-denuncia não se restringe ao desenho: suas ideias
também são representadas em forma de esculturas, distribuídas até nos lugares
mais improváveis (como quando ele colocou uma réplica de um guerreiro de Guantánamo
em um dos parque de diversão da Disney, em 2006).
Além
de seu talento artístico e criativo, as obras de Banksy possuem aquela válvula
de escape para elementos da sociedade com os quais convivemos - e ao mesmo
tempo detestamos. É como se o “proibido” de repente tivesse assumido
criativamente diferentes formas. Suas gravuras chocam pelo teor de realista,
mas ao mesmo tempo transmitem a graça que qualquer obra de arte proporciona
àqueles que a admiram bem de perto. Com aquele toque a mais de crítica, é
claro.
Texto de Nathalie
Bonome, in
avantecultura.blogspot.com.br
Nhorinhá
Imagem: Google
Digo: outro mês, outro longe – na
Aroeirinha fizemos paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de
vermelho, se ria. – “Ô moço da barba feita...” – ela falou. Na frente da boca,
ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava em fio. Tão bonita, só. Eu apeei
e amarrei o animal num pau da cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por
tanto que desses três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância
de trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De repente,
passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que tocavam um boi preto que
iam sangrar e carnear em beira d’água. Eu nem tinha começado a conversar com
aquela moça, e a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo
avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei
refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho
no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba
boa só se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá. Depois ela me deu de
presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra
mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia
milagrosa. Muito foi.
Guimarães
Rosa, in Grande Sertão: Veredas
Viva intensamente
"A Vida é
uma peça de teatro que não permite ensaios... Por isso, cante, ria, dance,
chore e viva intensamente cada momento de sua vida... Antes que a cortina se
feche e a peça termine sem aplausos."
Charles Chaplin
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
A Tristeza é feia e quer casar
Foto: Pink Sherbet
Está
no dicionário:
Tristeza: [Do lat. tristitia.] S.f. 1. Qualidade ou
estado de triste. 2. Falta de alegria. 3. Pena,
desalento, consternação. 4. Aspecto revelador de mágoa ou
aflição.
A tristeza, isso a gente sabe, também é quando o olhar desbota, a voz
perde a força, o andar fica pesado e impossível. É quando a cabeça não tem fome de
nada, saciada no silêncio. Ou ainda, quando o rio que corre lá dentro da alma
transborda e é preciso escoar de algum jeito. E o jeito são as lágrimas.
A tristeza é, na verdade, uma
moça. Não muito bonita. Um pouco feia. Tem cabelos longuíssimos e sem vida, que
cresceram sem que ela percebesse. Há anos estão penteados do mesmo jeito. Sua
roupa é bem feita, mas não tem cor. As mãos são mornas, de poucos movimentos e
sempre vagarosos. Finos e magros, seus pés cabem em qualquer sapato de qualquer
tamanho. Sua boca é lilás, como a boca dos mortos. Fala pouco, e quando o faz
as palavras já saem vaporizadas, flutuando no ar antes de caírem ao chão,
dissolvidas em seus significados.
Apesar disso, a Tristeza mora em
uma casa acolhedora, com perfume de baunilha e cortinas rendadas da cor do
âmbar. Há sempre música no ar. Na entrada existe um daqueles tapetinhos escrito
“bem-vindo”, próximo à porta com uma guirlanda em formato de coração. Ela sabe
que receber bem é importante, assim as pessoas ficam.
A Tristeza tem muitos amigos. Mas
ela vive triste, porque eles só a visitam quando as coisas não vão bem, e
partem assim que se sentem melhor. O que não faz dela uma moça solitária.
Tristeza tem sempre companhia.
A Tristeza, moça meio sem graça,
tem um desejo. A Tristeza quer casar. Quer encontrar um amor, ter muitos
filhos. No fundo, não deseja que eles sejam parecidos com ela. Porque a
Tristeza precisa da alegria à sua volta, assim o mundo lhe parece melhor.
Talvez seja como diz aquela canção: “A tristeza tem sempre uma esperança, de um
dia não ser mais triste, não”.
Tristeza e eu nos encontramos de
vez em quando. A última foi quando Léo se foi. Ela me pegou no colo enquanto eu
chorava. Léo, em toda sua doçura, por certo já havia se encontrado com ela
naqueles dias, sabendo que não descansaria mais sob a sua jabuticabeira. Os
gatos sabem.
Mas a Tristeza quer
casar. Quer encontrar alguém que desalinhe seus cabelos e a faça falar pelos cotovelos.
Que a leve para morar numa casa nova. Ela se mudará, e não deixará o novo
endereço para ninguém. Apenas um recado na porta da velha casa, no lugar da
guirlanda de coração: ”A Tristeza não mora mais aqui”.
Silmara Franco,
in www.fiodameada.wordpress.com
O Pastor
Tinha
a mania de abraçar as árvores, falava com as plantas e tinha ‘mão verde’.
Perdia-se no tempo dos óleos e acrílicos, acreditava em fadas e pintava
bosques encantados.
Contou-me
um dia que um pastor se tinha sentado a ‘ver-lhe” as telas.
Parado,
quieto, o pastor demorou uma eternidade que lhe pareceram segundos.
Sobre os azuis, verdes abstractos disse-lhe:
- Vossemecê pintou a minha aldeia!
Rita
Roquette de Vasconcellos
Amour*: alguns momentos e partida
A casa é de dois professores com mais de
60 anos. Vê-se pela cozinha, escassez de eletrodomésticos, a forma como lavam a
louça, mergulhada na água da pia, poupando detergente. Vê-se no equipamento de
reprodução de som, no mobiliário. Do vestíbulo de entrada acede-se ao quarto e
à cozinha. Uma janela abre para um saguão. Por aí vai entrar um pombo. Um rato
vagaroso. Um animal pré-histórico de marcha bamboleante, como os que povoam o
filme La Ciénaga de Lucrecia Martel e moldava, em barro preto, o artista troglodita
de Castro Daire. A entrada da ave representa a irrupção da natureza no espaço
privado, um degrau descendente na decadência, um sinal de perigo, invasividade,
um momento em que a dualidade exterior/interior se esbate e os habitantes da
casa, nós todos, afinal, ficamos expostos ao lento trabalho da morte. O fato de
sentirmos a entrada do pombo como uma ameaça - e da luz amarela do saguão -
mostra como avançou a doença comum que nos consome. Como nos encarceramos na
casa - casulo, de onde não queremos sair. Recusamos toda a exposição. E
torna-se insuportável a ideia de receber a visita dos que foram próximos e não
estão a sofrer a nossa metamorfose. Da ironia do genro inglês, às investidas da
filha litigante. Quando tocam à porta, abrimos e não se vê ninguém. Caminhamos
aos apalpões no patamar onde uma outra porta abre para um corredor iluminado.
Perguntamos, “está alguém”, e assustamo-nos com a nossa voz. Ninguém responde.
E de súbito uma mão tapa-nos a boca e sustem-nos a respiração. Sonho agônico dos
velhos, dos roncopatas, dos que sufocam. O concerto de abertura é visto do
ponto elevado do palco. Gente tão elegante. Com idade, mas sem a usura da
idade. É o nosso ponto de partida. Sorriem, trocam curtas frases espirituosas.
Se nos aproximássemos veríamos as placas das carótidas. A ausência como crise
inicial e pouco tempo depois a hemiparésia. Os cabelos perdem o brilho e a
leveza, os esfíncteres deixam de funcionar. O sono dos lactentes. Nunca mais a
música. E então somos outra vez crianças, não nos compreendem, repetimos uma
pequena frase, exasperamo-nos, chamamos pela nossa Mãe, cantamos o refrão de
uma canção antiga. Apaziguamo-nos com a mão da pessoa amada. O frio, o calor, a
seda, as rugas. E uma palavra que se levanta, palilálica, como uma jangada, na
onda da consciência que reflui. A palavra Mal. Segura de novo a minha mão. Dói.
Não deixes que me vejam assim. Dói. Que seja esta pessoa. Dói. Que me levem
para o Hospital. Dói. Acordar, vestir, fazer a higiene, preparar a comida,
mudar os lençóis, fingir a terapia, a ginástica e a terapia da fala, descansar,
comprar comida. O marido da porteira ajuda a trazer as compras para cima, outra
vez a comida, a higiene, ler algumas notícias. Não quero saber, não me
interessa. Beber o último copo. Dormir a última sesta. Esperar longamente. E
ser recompensado. Oh meu amor, tu voltas quando já não esperava. Regressam os
gestos mínimos que tanta falta me fizeram, o modo como te mexes, como andas, o
som dos teus pés na madeira do sobrado, a pausa que fazes para que te componha
o casaco, abra a porta. Os pequenos nadas que quando me faltaram eram tudo, a
falta que me fazias, como se o vento frio vindo do Sena castigasse os ossos
quando tu não estavas. Até que voltaste. É agora altura de partir e eu parto
contigo, atrás de ti.
Fonte: anaturezadomal.blogspot.com.br
*O
drama "Amour", dirigido pelo austríaco Michael Haneke sobre os
desafios do amor para um casal de idosos e vencedor da Palma de Ouro no
Festival de Cannes deste ano, venceu no domingo o prêmio de melhor filme da
Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles.
Instruções para chorar
Deixando de lado os motivos, apreciemos a
maneira correta de chorar, entendido como algo que não se aproxima do
escândalo, nem que insulta o sorriso com a sua paralela e torpe semelhança. O
choro médio e ordinário consiste numa contração geral do rosto e num som
espasmódico, acompanhado de lágrimas e soluços, estes últimos no fim, uma vez
que o choro acaba no momento em que nos assoamos energicamente. Para chorar,
dirija a imaginação para você mesmo, e se isto for impossível, por ter
adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de
formigas ou nos golfos do estreito de Magalhães nos quais ninguém entra, nunca.
Chegado o choro, deve tapar-se com decoro o rosto, usando ambas as mãos com as
palmas viradas para dentro. As crianças chorarão com as mangas da camisa
encostadas à cara e, de preferência, num canto do quarto. Duração média do
choro, três minutos.
Julio
Cortázar
segunda-feira, 24 de dezembro de 2012
Lenine: Todos os caminhos
Eu já me perguntei
Se o tempo poderá
Realizar meus sonhos e desejos
Será que eu já não sei
Por onde procurar
Ou todos os caminhos dão no mesmo
E o certo é que eu não sei o que virá
Só posso te pedir que nunca
Se leve tão a sério, nunca
Se deixe levar, que a vida
É parte do mistério
É tanta coisa pra se desvendar.
Por tudo que eu andei
E o tanto que faltar
Não dá pra se prever nem o futuro
O escuro que se vê
Quem sabe pode iluminar
Os corações perdidos sobre o muro
E o certo que eu não sei o que virá
Só posso te pedir que nunca
Se leve tão a sério, nunca
Se deixe levar que a vida
A nossa vida passa
E não há tempo pra desperdiçar.
Noel num vem
Im todo ano é igual
Se aprochegando o Natal
Já começa o farnizim
De avistar Papai Noel
Espirrar no meio do céu
E arrisca é dele num vim.
Liás, aqui nunca vei
Esse homi de vermei
Cum saco chei de brinquedo
Só se vê mermo im retrato
E os minino do mato
Só fica chupando os dedo.
Me diga, o caba que veve
Nas frialdade das neve
No mei daquelas lonjura
Que diabo vem vê pra cá?
Só se for pa esturricar
No oco dessa quentura.
Ele num vem nem a pau
Um caba internacional
Um lorde da Escandinava
Custumado cum sarmão
Vai vim bater no sertão
Pra cumer preá cum fava?
Só se ele for bocó
Pra vim naquele trenó
Que nem pneu num pissui
Se nas estrada da roça
As vez inté as carroça
Se ingancha nos pidrigúi!?
Inda duvido tombem
Que os animá que ele tem
Nesses camim lhe carregue
No mei desses carrapicho
Só sendo que aqueles bicho
Vai ter os casco dum jegue.
O natal de nossas banda
Num tem os carrim que anda
Nem robô que conta estora
Num tem trenzim que apita
Nem as buneca bonita
Que dorme, que fala e chora.
Nós tem buneca de trapo
Feita de tira e fiapo
Dos retaizim de rayon
Tem pião de aruera
E a mió roladera
De lata de mucilon.
Nós tem buneco de barro
Tem as nota de cigarro
E os cachorro de areia
Tudo coisa de arremedo
Foi num foi se esfola um dedo
Chutando bola de meia.
Vamo dexar de ilusão
Que o véi da televisão
Cum baiba branca na cara
Vistido de incarnado
É um atô custumado
A inganar babaquara.
Não vá pensar que é quexume
Inveja, raiva, ciúme
Ou coisa de quem fuxica
Mais eu lhe digo: se aquete
Que esse veim da charrete
Só é pai de gente rica.
Zenóbio Oliveira,
poeta mossoroense
Conto de Natal
Sem
dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se
deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem
compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
—
Que é?
O
homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios
de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o
segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
—
Porcaria...
Tirou
o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro
lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro
lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame
arrebentado ou dois fios mais afastados.
—
Péra aí...
Andou
para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo
pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
—
Vamos ver aqui...
Com
esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com
o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela
curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro
lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
—
Mulher!
Passando
os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois
passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
—
Péra aí...
Arranjou
afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até
a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O
sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O
calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De
tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e
meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não aguentava mais andar.
E pensou em voltar até o sítio de ‘seu’ Anacleto.
—
Não...
Ficaram
parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos
grossos de chuva. O menino choramingava.
—
Eh, mulher...
Ela
não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de
um carro de bois.
—
Oh, graças a Deus...
Às
7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha.
O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava
gritos de dor.
—
Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O
carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do
fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
—
Eu acho que o jeito...
O
carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer
jeito junto de uma vaca e um burro.
No
dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de
noite na casa de ‘siá’ Tomásia, mas ‘siá’ Tomásia tinha ido à festa na Fazenda
de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se
tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino
agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada,
mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre
um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
—
Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
—
Natal?
Com
a pergunta de Faustino a mulher acordou.
—
Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...
Ela
fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não
ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando
embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
—
Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A
mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um
lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e
estava mexendo no embrulho de trapos:
—
Eh, pai, vem vê...
—
Uai! Péra aí...
O menino Jesus Cristo estava morto.
Rubem
Braga, in Nós e o Natal
Carta a Papai Noé
Em
meio aos sentimentos presentes neste Natal, lembremos daqueles a quem o
"bom velhinho" não consegue chegar, nos versos mais que verdadeiros
do poeta Luiz Campos, que rebate a hipocrisia e o apelo comercial desta festa
que deveria ser mais cristã.
Ilustração: Arievaldo Viana
Seu moço eu fui um garoto
Infeliz na minha infância
Que soube que fui criança
Mas pela boca dos outo.
Só brinquei com os gafanhoto
Que achava nos tabuleiro
Debaixo dos juazeiro
Com minhas vaca de osso
Essa catrevage, sêo moço
Que a gente arranja sem dinheiro.
Quando eu via um gurizin
Brincando de velocipe
De caminhão e de gipe
Bola, revólver e carrin
Sentia dentro de mim
Desgosto que dava medo
Ficava chupando o dedo
Chorando o resto do dia
Só pruquê eu num pudia
Pegar naqueles brinquedo.
Mas preguntei uma vez
A uns fio de dotô
Diga, fazendo um favô
Quem dá isso pra vocês?
Mim respondeu logo uns três
Isso aqui é os presente
Que a gente é inocente
Vai drumí às vêis nem nota
Aí Papai Noé bota
Perto do berço da gente.
Fiquei naquilo pensando
Inté o Natá chegá
E na Noite de Natá
Eu fui drumi mim lembrando
Acordei fiquei caçando
Por onde eu tava deitado
Seu moço eu fui enganado
Que de presente o que tinha
Era de mijo uma pocinha
Que eu mermo tinha botado
Saí c’a bixiga preta
Caçando os amigos meu
Quando eles mostraram a eu
Caminhão, carro e carreta
Bola, revólver, corneta
E trem elétrico, até
Boneca, máquina de pé
Mas num brinquei, só fiz vê
E resolvi escrevê
Uma carta a Papai Noé.
“Papai Noé, é pecado
Os outro se matratá
Mas eu vou le recramá
Um troço que tá errado
Que aos fio de deputado
Você dá tanto carrin
Mas você é muito ruim
Que lá em casa num vai
Por certo num é meu pai
Que num se lembra de mim.
Já tô certo que você
Só balança o povo seu
E um pobe qui nem eu
Você vê, faz qui num vê
E se você vê, porque
Na minha casa num vem?
O rancho que a gente tem
E pequeno mas le cabe
Será que você num sabe
Qui pobe é gente também?
Você de roupa encarnada,
Colorida, bonitinha
Nunca reparou que a minha
Já tá toda remendada
Seja mais meu camarada
Prêu num chamá-lo de ruim
Para o ano faça assim:
Dê menos aos fio dos rico
De cada um tire um tico,
Traga um presente pra mim.
Meu endereço eu vou dá,
Da casa que eu moro nela
Moro naquela favela
Que você nunca foi lá
Mas quando você chegá
Que avistá uma paióça
Cuberta cum lona grossa
E dois buraco bem grande
Uma porta véia de frande
Pode batê que é a nossa.
Luís Campos, Poeta mossoroense