sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Carta aos tímidos

"Como um tímido veterano, acho que já posso dar alguns conselhos às novas gerações de envergonhados, jovens que estão recém-descobrindo o martírio de ter de enfrentar este terror, os outros, e se lançando na grande aventura que é se impor, se fazer ouvir, ter amigos, namorar, procriar e, enfim, viver, quando o que preferia era ficar quieto em casa. Ou, de preferência, no útero.
Para começar, algumas coisas que não funcionam. Tentei todas e não deram certo. Decorar frase, por exemplo. Já fui com uma frase pronta para impressionar a menina e na hora saiu 'Teus marilus verdes são como dois olhos, lagoa'. Também resista à tentação de assumir um ar superior e dar a impressão de que você não é tímido, é misterioso. Eu sou do tempo em que a gente usava chaveiro com correntinha (além de tope e topete, tope de gravata enorme e topete duro de Gumex) e ficava girando a correntinha no dedo enquanto examinava as garotas na saída das matinês (eu sou do tempo das saídas de matinês). Um dia deu certo, a garota veio falar comigo, ou ver de perto o que mantinha o topete em pé, foi atingida pela hélice da correntinha e saiu furiosa. Melhor, porque eu não tinha nenhuma fala pronta que correspondesse à pose. Evite, é claro, as manobras calhordas. Como identificar alguém tão tímido quanto você no grupo e quando alguém, por sacanagem, lhe pedir um discurso, passar a palavra imediatamente para ele. O mínimo que um tímido espera de outro é solidariedade. E não há momento mais temido na vida de um tímido do que quando lhe passam a palavra.
Tente se convencer de que você não é o alvo de todos os olhares e de todas as expectativas de vexame quando entra em qualquer recinto. No fundo, a timidez é uma forma extrema de vaidade, pois é a certeza de que, onde o tímido estiver, ele é o centro das atenções, o que torna quase inevitável que errará a cadeira e sentará no chão, ou no colo da anfitriã. Convença-se: o mundo não está só esperando para ver qual é a próxima que você vai aprontar. E mire-se no meu exemplo. Depois que aposentei a correntinha e (suspiro) perdi o topete, namorei, procriei, fiz amigos, vivi e hoje até faço palestras, ou coisas bem parecidas. Mesmo com o secreto e permanente desejo, é verdade, de estar quieto em casa."
Luís Fernando Veríssimo

A casa materna

Imagem: Google

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.
A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis.
Vinicius de Moraes

Arte na cabeça

Relva. Pedaços de alumínio. Madeira. Perucas. Tinta. Pedras. Todos os materiais servem para que Levi van Veluw altere a percepção de si mesmo para os espectadores. Atenção: as imagens que se encontram neste artigo não recorreram à manipulação digital.

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Usando diversas combinações de materiais, formas, cores e padrões, o holandês Levi van Veluw manipula fotografias da sua própria cabeça. Jogando com o valor de cada material, ele dá-lhe um significado completamente diferente, contribuindo para uma perspectiva invulgar do mundo.

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Exibindo regularmente desde 2007, este artista é também professor de Fotografia, tendo ganho já prêmios nos IPA International Photo Awards, na Art Interview Award e na American Photography 23. Todo o seu trabalho assenta no conceito da sua cabeça como mensageira do seu próprio trabalho e objeto de transformações e combinações. Dando um ar quase universal ao seu próprio rosto, o espectador pode identificar-se com o seu trabalho.

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

É ainda de realçar que as imagens não são alvo de manipulação digital e, por isso, os materiais que vemos como cobertura do fotógrafo são reais: ele encontrou perucas para pôr sobre si mesmo, pedaços de tapete, pequenas pedras, entre outros materiais. Cada fotografia tem uma história para contar. Por outro lado, usa a mesma posição em todas as fotografias propositadamente, de forma a que a imagem humana se torne cada vez menos importante para o espectador e este se possa focar nos materiais utilizados.

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Van Veluw tem também um conceito diferente de estética: para ele as pequenas imperfeições são importantes e têm valor estético acrescido ainda pelo facto de os materiais utilizados se encontrarem fora do seu contexto habitual, da sua zona de conforto. O objetivo assumido do fotógrafo é alterar a percepção do espectador, mesmo que de forma limitada e acerca de um assunto de reduzida importância.

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Cabeca Instalacao Levi van Veluw

Diana Guerra, in obviousmag.org

Traição particular

“Algumas pessoas acreditam que além da grande traição original, uma pequena traição particular foi reservada exclusivamente para cada uma delas. Em outras palavras, seria assistirmos um drama de amor representado num palco, onde a artista principal – ao sorrir falsamente para seu amante – na realidade se estivesse dirigindo a um determinado espectador, ao fundo da plateia. Convenhamos que isso é ir longe demais...”
Franz Kafka, in Contos, fábulas e aforismos

A dificuldade

"A dificuldade é um severo instrutor."
Edmund Burke

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carta de Mauro Beting ao pai Joelmir Beting

Joelmir Beting morreu aos 75 anos, em São Paulo<br /><b>Crédito: </b> Reprodução / CP

“Nunca falei com meu pai a respeito depois que o Palmeiras foi rebaixado. Sei que ele ficou sabendo. Ou imaginou. Só sei que no primeiro domingo depois da queda para a Segunda pela segunda vez, seu Joelmir teve um derrame antes de ver a primeira partida depois do rebaixamento. Ele passou pela tomografia logo pela manhã. Em minutos o médico (corintianíssimo) disse que outro gigante não conseguiria se reerguer mais.
No dia do retorno à segundona dos infernos, meu pai começou a ir para o céu. As chances de recuperação de uma doença autoimune já não eram boas. Ficaram quase impossíveis com o que sangrou o cérebro privilegiado. Irrigado e arejado como poucos dos muitos que o conhecem e o reconhecem. Amado e querido pelos não poucos que tiveram o privilégio de conhecê-lo.
Morre o jornalista Joelmir Beting.
Meu pai.
O melhor pai que um jornalista pode ser. O melhor jornalista que um filho pode ter como pai.
O Joelmir Beting. O meu pai. Um cara trabalhador. Um cara legal. O meu pai que me faz um cara, inclusive, jeitoso. O melhor pai que um jornalista pode ser. O melhor jornalista que um filho pode ter como pai.
Precisaria dizer algo mais para o melhor Babbo do mundo que virou o melhor Nonno do Universo? Sei disso. Preciso. Mas não sei. Normalmente ele sabia de tudo. Quando não sabia, o Joelmir inventava com a mesma categoria com que falava sobre o que sabia.
Todo pai é assim para o filho. Mas um filho de jornalista que também é jornalista fica ainda mais órfão. Nunca vi meu pai como um super-herói. Apenas como um humano super. Só que jamais imaginei que ele pudesse ficar doente e fraco de carne. Eu nunca admiti que nós pudéssemos perder quem só nos fez ganhar.
Por isso sempre acreditei no meu pai e no time dele. O nosso time. O Palmeiras. Ele me ensinou tantas coisas que eu não sei. Uma que ficou é que nem todas as palavras precisam ser ditas. Devem ser apenas pensadas. Quem fala o que pensa não pensa no que fala. Quem sente o que fala nem precisa dizer. Mas hoje eu preciso agradecer pelos meus 46 anos. Pelos 49 de amor da minha mãe, Lucila. E pelos 75 dele. Mais que tudo, pelo carinho das pessoas que o conhecem, logo gostam dele. Especialmente pelas pessoas que não o conhecem, e algumas choraram como se fosse um velho amigo.
Uma coisa aprendi com você, Babbo. Antes de ser um grande jornalista é preciso ser uma grande pessoa. Com o Joelmir aprendi que não tenho de trabalhar para ser um grande profissional. Preciso tentar ser uma grande pessoa. Como você fez as duas coisas.
Desculpem, mas não vou chorar. Choro por tudo. Por isso choro sempre pela família, pelo Palmeiras, amores, dores, cores, canções, pelas cores. Mas não vou chorar por algo mais que tudo que existe no meu mundo que são meus pais. Meus pais, que também deveriam se chamar minhas mães, sempre foram presentes. Um regalo divino.
Meu pai nunca me faltou mesmo ausente de tanto que trabalhou. Ele nunca me falta porque teve a mulher maravilhosa que é dona Lucila. Segundo seu Joelmir, a segunda maior coisa da vida dele. Que a primeira sempre foi o amor que ele sentiu por ela desde 1960, quando se conheceram na rádio 9 de julho. Onde fizeram família. Meu irmão e eu. Filhos também do rádio. Filhos de um jornalista econômico pioneiro e respeitado, de um âncora de TV reconhecido e inovador, de um mestre de comunicação brilhante e trabalhador.
Meu pai.
Eu sempre soube que jamais seria no ofício nem algo perto do que ele foi. Porque raros foram tão bons na área dele. Raríssimos foram tão bons pais como ele. Rarésimos foram tão bons maridos. Rarissíssimos foram tão boas pessoas. E não existe outra palavra inventada para falar quão raro e caro palmeirense ele foi. Mas sempre é bom lembrar que palmeirenses não se comparam. Não são mais. Não são menos. São Palmeiras. Basta.
Como ele um dia disse no anúncio da nova arena, em 2007, como esteve escrito no vestiário do Palmeiras no Palestra, de 2008 até a reforma: “Explicar a emoção de ser palmeirense a um palmeirense é totalmente desnecessário. E a quem não é palmeirense… é simplesmente impossível”!
A ausência dele não tem nome. Mas a presença dele ilumina de um modo que eu jamais vou saber descrever. Como jamais saberei escrever o que é o Joelmir Beting. Como todo pai de toda pessoa. Mais ainda quando é um pai que sabia em 40 segundos descrever o que era o Brasil. E quase sempre conseguia. Não vou ficar mais 40 frases tentando descrever o que pude sentir por 46 anos.
Explicar quem é Joelmir Beting é desnecessário. Explicar o que é meu pai não estar neste mundo é impossível. Nonno, obrigado por amar a Nonna. Nonna, obrigado por amar o Nonno. Os filhos desse amor, eu e Gianfranco, jamais serão órfãos. Como não serão os seus netos.
Como oficialmente eu soube agora, 1h15min desta quinta-feira, 29 de novembro, 32 anos e uma semana depois da morte do meu Nonno, o seu Angelo, pai da minha guerreira Lucila. Joelmir José Beting foi encontrar o Pai da Bola Waldemar Fiume nesta quinta-feira, 0h55min".

A arte

"A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação."
Fernando Pessoa
"Se os homens fossem severos para consigo próprios e generosos para com os outros, nunca dariam azo a ressentimentos."
Confúcio

A festa

Estava suave o sol, o ar limpo e o céu sem nuvens. Afundado na areia, um caldeirão de barro fumegava. No caminho entre o mar e a boca, os camarões passavam pelas mãos de Zé Fernando, mestre de cerimônias, que os banhava em água-benta de sal e cebolas e alho.
Havia bom vinho. Sentados em roda, amigos compartilhávamos o vinho e os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés.
Enquanto acontecia, essa alegria estava já sendo recordada pela memória e sonhada pelo sonho. Ela não terminaria nunca, e nos tampouco, porque somos todos mortais até o primeiro beijo e o segundo copo, e qualquer um sabe disso, por menos que saiba.
Eduardo Galeano, in O livro dos abraços

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Gonzaga, pai e filho


Na tela explodem corações. Na plateia, lágrimas pela história comovente e canto silencioso pelas belíssimas canções. Dois talentos da música popular brasileira, que a vida juntou pelo sangue e desuniu no dia a dia da carreira de um e do crescimento do outro. Desencontros familiares levados ao extremo.
Um era o Luiz Gonzaga, ídolo maior de gerações de brasileiros. Este, quando as astúcias cruéis do mercado acenavam com o ostracismo, teve as mãos do filho para trazê-lo de volta aos palcos com o nome de Gonzagão para contrastar com o filho, Gonzaguinha. Para voltar a ser considerado grande teve que se unir ao moleque.
O Luizinho eu conheci, lá pelos idos de 1968, batendo na porta de um apartamento em Copacabana. Queria falar com o Milton Nascimento para lhe pedir que cantasse sua música, O trem, num festival estudantil da antiga TV Tupi. Mas o Milton estava em Minas por alguns dias. Eu e a namorada passávamos um tempo no pequeno apartamento da Travessa Angrense. Depois de três tentativas ele desistiu e resolveu cantar ele mesmo a canção. Assisti pela televisão à sua vitória e ao início de seu sucesso.
Os anos se passaram e nos tornamos amigos absolutos. Morou primeiro em minha casa, na Cachoeirinha, já com intenção de morar em Minas. Depois, com a companheira mineira, fez sua própria casa, lugar de encontro, por 10 anos, de muitos amigos da vida cultural de Belo Horizonte. Na cozinha de minha casa, sentávamos ele, eu e minha mulher em uma pequena mesa de pequenas cadeiras, de minhas filhas, e passávamos horas em conversas sobre o mundo, o Brasil, a vida e tudo o mais.
Assisti ao constante aprimoramento de sua delicadeza. Sua história era repleta de mágoas, injustiças. Mas ele guardou bem o amor e a generosidade de Dina e Xavier, que o criaram no Morro de São Carlos. Foi tecendo aos poucos sua obra original, conquistou multidões, embalou corações.
Ao mesmo tempo, foi costurando a abertura do livro de sua vida, começando por gravar uma série de diálogos ásperos e elucidadores com o pai Gonzaga. Romperam-se todos os diques e, sem nenhuma psicanálise, foram os dois compondo um acerto de contas com o passado comum.
Das trevas do desentendimento foram surgindo pequenas luzes de compreensão, de respeito, peitos abertos para o que viesse. E o que veio foi a união dos dois diante de um tempo novo. E os dois cantaram juntos a canção imortal de brasilidade e beleza. E o povo cantou com eles: é a vida, é a vida, é a vida. Minha vida é andar por esse país pra ver se um dia me encontro feliz.
Obrigatório assistir ao filme Gonzaga, de pai para filho.
Fernando Brant, in Caderno EM Cultura - Jornal Estado de Minas - 28/11/2012

Dançando, com Pitty, em Agridoce



Eu sei que lá no fundo
Há tanta beleza no mundo
Eu só queria enxergar
As tardes de domingo
O dia me sorrindo
Eu só queria enxergar
Qualquer coisa pra domar
O peito em fogo
Algo pra justificar
Uma vida morna

O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando com você
Não esqueço aquela esquina

A graça da menina
Eu só queria enxergar
Por isso eu me entrego
À um imediatismo cego
Pronta pro mundo acabar
Você acredita no depois?
Prefiro o agora
Se no fim formos só nós dois
Que seja lá fora

O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando
O mundo acaba hoje e eu estarei dançando com você.

Os namorados

Esta elegia para os namorados
que andam em silêncio pela praça morta,
de passo leve, incerto como o sonho
a que se entregam solitariamente.

É triste e breve como os namorados
e o seu amor de adolescência. morta
toda a ternura ficará e o sonho
também surgindo solitariamente.

Que este silêncio vence os namorados,
como um aviso fúnebre e fatal,
aparecendo em meio aos carinhos.

Lembrando amor e sonho abandonados
e o riso frágil, rápido, irreal:
“tanto mais juntos quanto mais sozinhos”.
H. Dobal, poeta piauiense

Concurso de Fotografia “Paisagens do Ecossistema Potiguar”


1º lugar


2º lugar


3º lugar

Através do clique de vários fotógrafos potiguares, a beleza e a riqueza dos ecossistemas do Rio Grande do Norte estarão para sempre preservadas. Momentos únicos da fauna e flora da caatinga, mata atlântica, dunas, restinga, serras, tabuleiro litorâneo, manguezal, mar, rio, lagoas e muitos outros foram imortalizados por meio das 365 fotos inscritas no Concurso IDEMA de Fotografia “Paisagens do Ecossistema Potiguar”, promovido pelo órgão ambiental entre os meses de junho a outubro deste ano.
O resultado apontou como grande vencedora a fotografia de Vlademir Alexandre, com um registro das Dunas do Rosado, em Areia Branca. Pela conquista, o fotógrafo irá receber uma premiação de três mil reais. A segunda colocação do concurso ficou com o fotógrafo Magnus Nascimento, que com um registro em Lajes do Cabugi, conquistou o prêmio de dois mil reais. O terceiro lugar foi para o participante José Bezerra Segundo, com um registro em Martins. Pela terceira colocação, o fotógrafo receberá um prêmio no valor de mil reais.
Além das três fotografias vencedoras, a equipe julgadora selecionou outras dezessete fotos merecedoras de menção honrosa. Todas as 20 fotografias selecionadas pelo júri estão disponíveis na página do IDEMA, através do www.idema.rn.gov.br. No próximo ano, o IDEMA irá realizar uma exposição fotográfica no Parque das Dunas contemplando as vinte fotos eleitas pela comissão julgadora.
Fonte: www.substantivoplural.com.br
“Sou exatamente como aparento ser.”
Gore Vidal

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Lamento sertanejo, com Gilberto Gil e Dominguinhos


Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga e do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.

Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando à esmo.
Composição: Gilberto Gil e Dominguinhos
“Olhando de longe, tudo é belo.”
Tácito

O destino dos gênios

Em certos os casos, quanto mais nobre o gênio, menos nobre o destino.
Um pequeno gênio ganha fama,
um grande gênio ganha descrédito,
um gênio ainda maior ganha desprezo;
um deus ganha crucificação.
Fernando Pessoa

A juventude e a velhice

“A juventude quer divertir-se, a velhice, trabalhar. Ninguém se casa só para ter filhos, mas, uma vez que os tem, eles o modificam e, no fim, ele percebe que tudo, com efeito, acontecera somente em função deles. Isso prende-se ao fato de que a juventude, sem dúvida, gosta de falar da morte, mas nunca pensa nela. Com os velhos, dá-se o contrário. Os jovens julgam que vão viver eternamente; daí, poderem reportar a si mesmos todos os seus desejos e pensamentos. Ao contrário, os velhos já perceberam que, num ponto qualquer, existe um fim e que tudo o que alguém tem ou faz só para si mesmo, acaba por cair no vazio e por ter acontecido em vão. Assim, necessitam de outra eternidade, bem como da crença de que não estão trabalhando unicamente para os vermes. Para isso existem mulher e filhos, atividades e cargos e pátria: para saber-se por quem é, afinal de contas, que suportamos a lida e o desgaste e as aflições cotidianas."
Hermann Hesse, in Gertrud

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O homem

"A melhor definição que posso dar de um homem é a de um ser que se habitua a tudo."
Dostoievski

Viver é muito...

Ilustração: Carybé

“Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.”
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Felicidade X sofrimento

“A felicidade bestializa, só o sofrimento humaniza as pessoas.”
Mário Quintana

domingo, 25 de novembro de 2012

A fonte da felicidade

"A raiz do mal reside no fato de se insistir demasiadamente que no êxito da competição está a principal fonte de felicidade."
Bertrand Russell

A fé

Ninguém pode dizer que sejamos deficientes em matéria de fé. O simples fato de que estejamos vivos é em si mesmo indiscutível evidência de fé.
Mas consideras isso uma prova de fé? A rigor, ninguém pode realmente deixar de viver.
Pois é nessas palavras – “ninguém pode realmente deixar de viver” – que reside o poder insano da fé: ela se corporifica em tal negação.
Franz Kafka, in Contos, fábulas e aforismos

Os parceiros

Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.
Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste...
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.
Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro... eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se
numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce...
Como também disfarce é a minha vida!
Mário Quintana
“Só há uma tosse admissível: a nossa.”
Nélson Rodrigues

sábado, 24 de novembro de 2012

Escreva para os outros

“Ninguém escreve para si mesmo, a não ser um monstro de orgulho. A gente escreve pra ser amado, pra atrair, encantar, etc.”
Mário de Andrade

O delírio

Imagem: Google

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faça-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais pode saltar o capítulo; vá direto a narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos; caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
— Engana-se, replicou o animal, nós vamos a origem dos séculos.
Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Baleão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que senti umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a conformação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava gelar-nos um ar de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
— Onde estamos?
— Já passamos o Éden.
— Bem; paramos na tenda de Abraão.
— Mais se nós caminhamos para trás! redarguiu montejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois — cogitações de enfermo — dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo de nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? Destacou-se da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o Sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, quer foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? Perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receie perder este andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante a sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? A Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos a esperança, consolação dos homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto! exclamou. Para que tu queres mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e parece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isso dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo. A história dos homens e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos do que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Comodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: - "Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei a atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, - o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocaram-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas (XII capítulo)

Erro

“Entre as condições de vida poderia estar o erro.”
Friedrich Nietzche

Quando homens de bem acabarem mal

“Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha na maior inquietude; quando vemos pessoas de bem acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar publicamente, atirando-se contra sua espada, que a república perecia ao mesmo tempo que ele. Como não se afligir com a ideia de que a fortuna paga tão injustamente os méritos dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais maltratados?
Mas, que se deve então fazer? Observa como cada um destes grandes homens suportou seu destino; e se eles mostrarem coragem, ambiciona a mesma firmeza de alma. Se forem fracos e covardes diante da morte, sua perda é indiferente: ou eles são dignos de que os admiremos por sua bravura, ou sua covardia os torna indignos de pena. Não será vergonhoso, se a morte heroica destes homens de coragem fizesse de nós apenas covardes? Glorifiquemos um herói digno de tanta glória e digamos: ‘Ó bravo! Ó afortunado homem! Eis que tu escapas a todas as misérias, à inveja, à morte; eis-te a sair da prisão. Longe de te julgarem digno de uma má sorte, os deuses estimaram que merecestes estar para o futuro ao abrigo da tirania da fortuna’. Quanto àqueles que querem salvar-se e que no limiar da morte se voltam para a vida, é preciso empurrá-los com viva força para seu carrasco.
Eu não chorarei nem por quem se alegra nem por quem chora: o primeiro seca minhas lágrimas antecipadamente e o outro torna-se por suas lágrimas indigno das dos outros. Vou eu chorar por Hércules queimado vivo; por Régulo crivado com mil pontas ou por Catão, que suportou com coragem tantos golpes? Todos estes heróis, pelo sacrifício de uma insignificante parte de sua existência, souberam tornar-se eternos e a morte foi para eles o caminho da imortalidade.”
Sêneca, in Da tranquilidade da alma

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A maturidade

“A maturidade do homem consiste em ter reencontrado a seriedade que em criança se colocava nos jogos.”
Friedrich Nietzche

A Deus


Caro Deus,
Se Você existe, e se é como O descrevem — onisciente, onipresente e, acima de tudo, onipotente —, com certeza não irá tremer em seu assento celestial ao ser confrontado por um simples livro [“Os Versos Satânicos”] e seu escrevinhador, não é? Os grandes filósofos muçulmanos com frequência discordam em relação à Sua relação precisa com os homens e os atos humanos.
Ibn Sina (Avicena) argumentava que Você, por estar muito acima do mundo, limitava-se a tomar conhecimento dele em termos muito gerais e abstratos. Ghazali discordava. Qualquer Deus “aceitável ao islã” conheceria em minúcias tudo o que acontecesse sobre a superfície da terra e teria uma opinião a respeito.
Bem, Ibn Rushd não aceitava isso, como Você há de saber se Ghazali estivesse certo (e não saberá se quem tivesse razão fosse Ibn Sina ou Ibn Rushd). Para Ibn Rushd, a opinião de Ghazali tornava Você muito parecido com os homens — com os homens com suas discussões tolas, suas dissensões mesquinhas, seus pontos de vista triviais. Imiscuir-se nos assuntos humanos estaria abaixo de Você, e O diminuiria. Por isso, é difícil saber o que pensar.
Se Você é o Deus de Ibn Sina e Ibn Rushd, nesse caso nem sabe o que está sendo dito e feito neste exato momento em seu nome. No entanto, se Você é o Deus de Ghazali, e lê os jornais, vê a TV e toma partido em disputas políticas e até literárias, não acredito que pudesse fazer objeções a “Os Versos Satânicos”, ou a qualquer outro livro, por mais ignóbil que fosse. Que espécie de Todo-Poderoso poderia se deixar abalar pela obra de um homem? Ao contrário, Deus, se porventura Ibn Sina, Ghazali e Ibn Rushd estivessem todos errados e Você não existisse, também, nesse caso, Você não teria problemas com escritores e com livros.
Chego à conclusão de que minhas dificuldades não são com você, Deus, mas com Seus servos e seguidores no mundo. Uma famosa romancista me disse, certa vez, que tinha parado de escrever ficção durante algum tempo porque não gostava de seus admiradores. Fico a me perguntar se Você compreende a posição dela. Obrigado por Sua atenção (a menos que não esteja prestando atenção: Veja acima).
Salman Rushdie, in Joseph Anton - Memórias

Um disco fundamental da MPB

Gonzaguinha
De volta ao começo - 1980

Todas as gerações possuem seus poetas, aquelas pessoas dotadas de uma rara sensibilidade que tem o poder de transportar para as palavras todo o espírito de sua época e com isso tornarem-se seu porta-voz. No entanto, é necessário que além do talento com o verbo se vivencie sua época com muito vigor a fim de poder transmitir suas impressões com realismo e não apenas como expectador, tornando-se um cronista com um olhar aguçado sobre os problemas, angústias e esperanças que nutre como ser integrante de um universo em transformação.
Viver plenamente cada instante da vida, participar dos dramas da sociedade, tornar-se referência na afirmação de valores, lutar por um mundo mais humano e com justiça social e ainda por cima ter tempo de ser romântico, transmitindo emoções por todos os lados e firmar uma obra que extrapola seu tempo tornando-a eterna, não é tarefa para qualquer pessoa. É preciso além do talento, ter a argúcia necessária para compreender em plenitude a sua verdadeira importância histórica, perceber-se como um ser integrante desse período vivido e captar cada instante como sendo único, universalizá-lo e transpor com cores vibrantes uma mensagem que será referencia de um tempo em que ator e autor social se confundem. É dessa maneira que podemos identificar e reverenciar figuras ilustres que muitos chamam de ícones de uma geração, pessoas que ajudaram a transformar outras pessoas, tornando-as melhores, contribuindo com sua arte para um mundo mais belo.
Um dos maiores personagens de seu tempo, notadamente os anos setenta foi o cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha. Iniciando sua carreira nos finais da década de sessenta, sua consagração viria na década seguinte como um de seus poetas mais notáveis. Músico de rara inspiração é um dos poucos casos da música popular brasileira cuja obra é praticamente toda autoral, ou seja, sem parceiros, o que dá a condição de analisá-la sem as fragmentações de pensamento muitas vezes vista em parcerias onde na grande maioria dos casos não se sabe onde começa e termina a participação de um ou de outros compositores/poetas, apesar de seus incontestáveis méritos.
Filho do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, o moleque Gonzaguinha não foi criado no Nordeste, mas no Rio de Janeiro, onde vivenciou todas as sutilezas e malandragens dos morros cariocas, criando uma obra urbana e de grande conteúdo social, cujo reflexo deu-se logo no lançamento de seu primeiro disco lançado em 1973 contendo a canção Comportamento geral, proibida pela censura militar.
Crítico ferrenho dos desmandos da ditadura e da falta de liberdade, aos poucos se foi deixando levar pelos caminhos do coração conseguindo com maestria aliar dramas sociais e políticos com paixão, sem ser piegas, mas sim um incorrigível poeta romântico, capitalizando como poucos o universo feminino. Em 1980, já consagrado, lança um disco fundamental para a compreensão de seu pensamento, intitulado De volta ao começo, conseguindo mesclar a sátira/critica social com belas canções de amor, resultando num trabalho simplesmente arrebatador, um verdadeiro panorama daquela época. Abrindo o LP temos Questão de fé, fazendo uma referência aos exilados que estavam de volta ao país; em Ponto de interrogação, Grito de alerta e Sangrando atinge o clímax de seu talento de incorrigível poeta do amor, criando três canções que são clássicos de nossa canção moderna. Em Pequena memória para um tempo sem memória, A cidade contra o crime, Marcha do povo doido e Achados e perdidos, temos o artista em todo seu vigor tecendo críticas sociais com uma linguagem clara, inteligível e que não deixa dúvidas quanto ao seu conteúdo e significação, aqui o poeta revela-se em completa sintonia e clara percepção de seu tempo/realidade vivida.
Contudo, apesar de misturar amor com dramas sociais cotidianos o que permeia todo o trabalho, é o profundo sentido de esperança de um novo país que se avizinhava, pois ele já não era o homem descrente dos primeiros tempos, havia uma luz de esperança e alegria no ar, e isso fica bem demonstrado no fabuloso samba E vamos a luta, e na alegre e descontraída Bié, bié, Brazil. Em De volta ao começo, que dá nome ao disco, ele faz um retorno ao menino alegre e cheio de esperanças que era e verifica que esse tempo esta de volta. O LP ainda contém Libertad mariposa, composta e interpretada em espanhol, Paixão, Mulher e daí e Da vida, belas canções que se integram plenamente no conjunto da obra.
Um trabalho que marca a trajetória de um grande músico e poeta de nosso tempo que soube como poucos perceber sua própria história e a de nosso país, tornando-se no maior poeta/cronista de sua geração, que infelizmente foi para o andar de cima numa triste manhã do dia 29 de abril de 1991, mas cuja voz rascante/doce e bela juntamente com sua música e poesia vivem eternamente na memória de seus contemporâneos e na história da música popular brasileira, inscrita em letras maiúsculas.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br