*Curtindo Zé Ramalho antes do Show, hoje, na Praça de Eventos em Pau dos Ferros.
sexta-feira, 29 de junho de 2012
O Milagre
“Dias
maravilhosos em que os jornais vêm cheios de poesia... e do lábio do amigo
brotam palavras e eterno encanto... Dias mágicos... em que os burgueses espiam,
através das vidraças dos escritórios, a graça gratuita das nuvens...”
Mário Quintana
Condenação
Perdão:
estou predestinado a ser
feliz.
que fazer?
não sei torturar
nem quero o poder
a honra não me tenta
nem o sucesso almejo
menina,
nem teus apelos domésticos
nem teu regaço em brasa
detêm em mim esta poesia
sou feliz,
como o pássaro da anistia,
sobrevoando o céu tumultuado
executivos, heróis, soldados,
fanáticos, empresários,
proprietários,
classe média em geral,
eu vos declaro a minha
condenação:
sou cavalo do meu
sonho.
Climério Ferreira, poeta e compositor piauiense
Gravação
- Pronto, tá ligado. Posso começar?
- Pode.
- O senhor se sente realizado?
- Por que você quer saber isso?
- Nada não. O professor é que mandou lhe perguntar.
- O professor tem interesse em saber se eu me sinto
realizado?
- Sei não senhor.
- Então diga ao professor que venha me procurar.
- Pra quê?
- Para eu lhe perguntar se ele se sente realizado.
- O senhor vai perguntar isso a ele?
- Vou.
- O senhor também está estudando? Nessa idade,
poxa!
- Quê que tem? Toda idade é boa para estudar, a gente
não acaba nunca de saber as coisas. Mas não estou estudando não.
- Então por que vai perguntar isso ao professor?
- Porque se ele quer saber se eu me sinto
realizado, eu também quero saber a mesma coisa dele. Indiscrição por
indiscrição.
- Gozado... Mas se o senhor fizer isso não bota o
meu nome no meio, porque vai dar grilo. Vê lá, hem.
- Fique descansado. Não vou comprometer você.
- E o senhor só vai responder a minha pergunta
depois de falar com ele? E se ele não responder? Se demorar? Tenho de entregar
esta entrevista até quinta-feira.
- Bem, eu respondo agora mesmo.
- Então responde, vamos lá.
- Primeiro eu preciso saber: o que é se sentir
realizado?
- O senhor não sabe?
- Para dizer o que eu sinto, quero saber antes se o
que eu sinto é o mesmo que se deve sentir quando se está realizado, ou se julga
estar. E para isso é preciso saber o que é estar realizado.
- Poxa, não complica.
- Estou complicando, meu querido? Minha intenção
era simplificar, esclarecer. O que é mesmo se sentir realizado?
- Ora! Se sentir realizado é... quer dizer... Não
sei explicar muito bem, mas o senhor entende, né?
- Mais ou menos. Quer dizer: menos. E você?
- Se o senhor não entende bem, eu é que vou
entender?
- Então, como é que eu posso responder?
- Ué, o senhor é o entrevistado, o que sabe das
coisas.
- E quando não sei!
- Não sabe se está realizado?
- Não sei nem o que é realizado.
- Corta essa. Não vai me dizer que não tem
dicionário em casa.
- Tenho alguns, mas em vez de me tirarem as
dúvidas, me acrescentam outras.
- Desculpa, mas o senhor é enrolado, hem! Será que
não achou o significado de realizado?
- Achei quatro ou cinco, Quer ver? Olhe aqui, O
primeiro é o de coisa ou negócio que se realizou, que se tornou real. Será que
me tornei real? E antes não era? Quê que eu era então? Fantasma? Projeto?
- Assim o senhor me funde a cuca.
- Não tenho intenção.
- E os outros significados?
- No fim, está o neologismo, e aí é que - desculpe
a expressão, que não costumo usar, mas me deu vontade – aí é que a vaca vai pro
brejo. Aqui está: "indivíduo realizado:
dito por uma pessoa, de si própria, quando considera ter alcançado todos os
seus objetivos no terreno ético ou no de suas atividades profissionais ou
artísticas."
- Tá legal.
- Legal no papel, mas e dentro de mim?
- Dentro do senhor o quê?
- Quais são meus objetivos no terreno ético, ou,
mais modestamente, no terreno de minhas atividades profissionais ou artísticas?
Tenho objetivos éticos definidos? Quais são? São meus ou me são impostos ou
sugeridos pela educação e pela conveniência social ? Se fossem exclusivamente
meus, quais seriam? E em minhas atividades práticas ou criativas? Que é que eu
pretendo? Pretendo sempre as mesmas coisas? Não mudo de alvo? Não danço
conforme a música ou até sem ela e contra ela? Que é que eu sei de positivo a
respeito disso, ao longo de minha vida? Que pretendia eu há 20 anos'! Há 10? Na
semana passada? Me procure depois de eu morrer. Aí então, posso dar balanço.
- Chega! Chega!
- Estou caceteando você?
- Não está enchendo não. É que a
fita acabou. Até que a entrevista foi bacana, um tremendo barato. O professor
vai delirar, a turma também. Um cara que não sabe se está realizado nem o que é
realizado! Papo findo, tchau!
Carlos Drummond
de Andrade, in De notícias & não-notícias faz-se a
crônica
quinta-feira, 28 de junho de 2012
Soneto de aniversário
Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as
ilusões da vida
Prossiga ela
sempre dividida
Entre
compensações e desenganos.
Faça-se a carne
envilecida
Diminuam os
bens, cresçam os danos
Vença o ideal
de andar caminhos planos
Melhor que
levar tudo de vencida.
Queira-se antes
ventura que aventura
À medida que a
têmpora embranquece
E fica tenra a
fibra que era dura.
E eu te direi:
amiga minha, esquece...
Que grande é
este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
Vinicius de Moraes
Excerto de As vinhas da Ira
Os
arrendatários baixavam outra vez os olhos. Que iremos fazer? Não podemos nos
contentar com uma parte menor ainda das safras. Estamos na miséria. As crianças
tão sempre com fome. Não temos roupas, nem nada. Se toda a vizinhança também
não fosse assim, a gente até teria vergonha de ir à missa.
Afinal,
os donos da terra desembuchavam. O sistema de arrendamento, de divisão de
safra, não dava mais certo. Um homem só, guiando um trator, podia tomar o lugar
de doze ou quatorze famílias inteiras. Pagava-se-lhes um salário pequeno e
obtinha-se toda a safra. Era o que iam fazer. Não gostavam de ter que fazê-lo,
mas que remédio? Os monstros, que eram os bancos, exigiam o seu tributo. E os
monstros não podiam esperar mais.
Mas
os senhores vão matar a terra com todo esse algodão.
Sim,
a gente sabia disso. Mas arrancava bastante algodão antes que a terra morresse.
Depois vendia a terra. Muitas famílias lá do Leste tavam com vontade de comprar
um pedaço dessa terra.
Os
arrendatários endireitavam-se, coléricos. Nosso avô tomou conta destas terras e
ele teve que lutar com índios e expulsá-los daqui. E nossos pais nasceram aqui
e tiveram que matar as cobras e arrancar as ervas daninhas. Depois, vinha um
ano ruim, e eles tiveram que fazer empréstimos. E nós também nascemos aqui. E
nossos filhos também nasceram aqui. E nós tivemos que pedir dinheiro
emprestado. Depois o banco comprou as terras, mas nós ficamos e tivemos uma
parte de nossas colheitas.
Oh,
sim, nós sabemos disso. Mas a culpa não é nossa, é dos bancos. Um banco não é
como um homem. Um banco é um monstro.
Tá
certo, gritavam os arrendatários. Mas esta é a nossa terra. Nós a cultivamos,
fizemos ela produzir. Nascemos aqui e queremos morrer aqui. Mesmo que não
preste, ela é nossa. Ela é nossa, ouviu? Queremos morrer aqui quando chegar a
nossa vez de morrer. É isto o que dá direito de propriedade, e não simples
papéis, documentos escritos, cheios de números.
É
pena, sentimos muito. Mas não temos a culpa. A culpa é dos bancos. E um banco,
já sabe, um banco não é como um homem.
Sim
, mas os bancos são dirigidos por homens.
Não,
vocês estão enganados, completamente enganados. Um banco é muito diferente.
Acontece que todos os que trabalham no banco detestam o que os bancos têm que
fazer, mas eles obedecem, porque os bancos assim mandam. Um banco é mais que um
simples homem, é o que lhes digo. É um monstro, sim senhor. Os homens fizeram
os bancos, mas não os sabem controlar.
Os
arrendatários clamavam: Nossos avós matavam índios, nossos pais matavam
serpentes para ficar com as terras. Talvez a gente possa matar os bancos, eles
são piores que os índios e que as serpentes. Talvez a gente possa lutar outra
vez para ficar com as terras, lutar como lutaram nossos avós e nossos pais.
E
aí eram os donos das terras que ficavam encolerizados.
Não,
senhor. Vocês têm que sair daqui.
Mas
isto é nosso, gritavam os arrendatários. Nós...
Não,
senhor, isso é do banco, é do monstro do banco. Vocês tratem de ir embora.
Nós
podemos pegar nas nossas armas, como nossos avós fizeram quando vinham os índios.
Podemos, sim.
Não, agora é diferente. Primeiro vem o
xerife, depois vêm os soldados, tropas. Vocês serão presos se insistirem em
ficar, serão mortos se tentarem lutar para ficar. Agora é diferente; o monstro
não é homem, mas pode tornar homem quando quiser.
John Steinbeck, in Vinhas
da Ira. Tradução de Herbert Caro e Ernesto Vinhaes
quarta-feira, 27 de junho de 2012
Urgente e confidencial
Disparando por de trás
dos óculos escuros
dois tiros súbitos:
ela mata com os olhos.
O olhar não erra o alvo
não abarca o mar
mas apenas as pedras
onde ele bate e quebra.
Não usa as mãos
nem a alma do corpo
que ficou em outro lugar —
marmórea.
Só um pouco da voz, sem volta
em palavras finais
poupando lágrimas no espelho
Monalisa e incólume.
dois tiros súbitos:
ela mata com os olhos.
O olhar não erra o alvo
não abarca o mar
mas apenas as pedras
onde ele bate e quebra.
Não usa as mãos
nem a alma do corpo
que ficou em outro lugar —
marmórea.
Só um pouco da voz, sem volta
em palavras finais
poupando lágrimas no espelho
Monalisa e incólume.
Armando
Freitas Filho, in Máquina de escrever: poesia reunida
terça-feira, 26 de junho de 2012
“Embora o artista em todos os períodos da
sua vida permaneça mais próximo da infância, para não dizer mais fiel do que o
homem especializado na realidade prática, muito embora se possa afirmar que
ele, ao contrário deste último se mantém continuamente no estado sonhador e
puramente humano da criança brincalhona, o caminho que transpõe a partir dos primórdios intactos
até às fases tardias, jamais imaginadas do seu devir, é infinitamente mais
longo, mais aventuroso, mais emocionante para o espectador, do que o do homem
burguês, para o qual a reminiscência de também ter sido criança em outros
tempos nunca fica tão prenhe de lágrimas.”
Thomas Mann, in
Doutor Fausto
Família
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.
Carlos Drummond de Andrade, in Alguma Poesia
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.
Carlos Drummond de Andrade, in Alguma Poesia
segunda-feira, 25 de junho de 2012
A raça humana, com Gilberto Gil
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão
A raça humana risca, rabisca, pinta
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses
Desse divino oásis
Da grande apoteose
Da perfeição divina
Na grande síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de deus
A raça humana é
Uma semana
Uma semana
Do trabalho de deus
A raça humana é a ferida acesa
Uma beleza, uma podridão
O fogo eterno e a morte
A morte e a ressurreição
A raça humana é o cristal de lágrima
Da lavra da solidão
Da mina, cujo mapa
Traz na palma da mão
A raça humana risca, rabisca, pinta
A tinta, a lápis, carvão ou giz
O rosto da saudade
Que traz do gênesis
Dessa semana santa
Entre parênteses
Desse divino oásis
Da grande apoteose
Da perfeição divina
Na grande síntese
A raça humana é
Uma semana
Do trabalho de deus
A raça humana é
Uma semana
A última crônica
A caminho
de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.
Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher
da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que
a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de
uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a
noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu
último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último
olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras,
deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na
cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal
ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao
redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para
algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de
contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom,
inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a
redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se
aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e
depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a
reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom
encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo
com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma
pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não
começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um
discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira
qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha
aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que
a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a
Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a
menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas.
Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio,
a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra
você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A
negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo
crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo
botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba,
constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e
enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria
minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Fernando Sabino, in A
companheira de viagem
D. Quixote
Assim à aldeia volta o da "triste
figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcaboiço dobrado - um grande desalento,
No entristecido olhar - uns laivos de loucura...
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.
Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;
Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões - e não se ficar louco!
No arcaboiço dobrado - um grande desalento,
No entristecido olhar - uns laivos de loucura...
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.
Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;
Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões - e não se ficar louco!
Euclides
da Cunha
domingo, 24 de junho de 2012
Cada olhar, com a Banda de Boca*
*Grupo vocal baiano que faz TODOS os instrumentos com a boca, daí o nome da banda.
A excelência na virtude
“O homem que não tem mais do que o
próprio valor necessita de ser excelente em grande número de virtudes, tal como
a pedra que não é preciosa necessita de ser revestida de metal; mas comumente
acontece com a reputação o mesmo que com o lucro, se é verdadeiro o provérbio
que diz: que com leves ganhos se fazem pesadas bolsas, porque estes são
frequentes, enquanto os grandes só chegam de vez em quando; assim, também é
verdade que pequenas coisas ganham grande recomendação, porque são de uso e de
observação corrente, enquanto a ocasião de manifestar grandes virtudes só é
dada nos dias-santos. Para adquirir boas maneiras basta apenas não as
desdenhar, porque, habituando-nos a observá-las nos outros, deixamos
confiadamente operar em nós a imitação; pois se cuidarmos de as exprimir,
perdem logo a sua graça, a qual é serem naturais e desafetadas. O comportamento
de cada homem deve ser como um verso, no qual todas as sílabas são medidas.
Como pode um homem ocupar-se de grandes assuntos, se quebra demasiado o seu
espírito com mesquinhas observações? Não usar completamente de cerimônias é
ensinar aos outros que não as usem também, e assim diminuir o respeito próprio;
especialmente, não devem ser omitidas perante estrangeiros e pessoas
desconhecidas”.
Francis
Bacon, in Ensaios
sábado, 23 de junho de 2012
Estranhas aventuras da infância
Imagem: Google
Era um caminho tão pequenino
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas...
Enquanto a tarde, lenta, caía,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia...
Que nem sabia aonde ia,
Por entre uns morros se perdia
Que ele pensava que eram montanhas...
Enquanto a tarde, lenta, caía,
Aflitamente o procuramos.
Sozinho assim, aonde iria?
Porém, deixamos para um outro dia...
Perdido e só, nós o deixamos!
E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas más...
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada...
E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra...
E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!
E quando, enfim, ali voltamos
Já nada havia, só ervas más...
Tão vasto e triste sentiste o mundo
Que te achegaste, desamparada...
E foi bem juntos que regressamos,
Ombro com ombro, a mão na mão,
Enquanto, lenta, caía a tarde
E nos espiava a bruxa negra...
E nos seguia a bruxa negra
Que hoje se chama Solidão!
Mário
Quintana, in Baú de espantos
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Prie Dieu*
Instrumental Jazz na Festa Junina
Ontem, quinta-feira,
em meio ao caos sonoro junino no centro da cidade, o Pitombeira Trio, de Natal,
se apresentou no Cafezal. De princípio, os músicos tentaram se apresentar, mas
o equipamento de som instalado se mostrou deficiente para o evento. Resultado:
mais de meia hora para a equipe técnica acrescentar duas caixas de som que,
aliás, estavam ao lado, desligadas (entender quem há de!). Enfim, música
instrumental de qualidade na festa junina! E viva a diversidade. O trio é
formado por Paulo César PC nos teclados, Rogério Pitomba na bateria e Felipe
Morais no contrabaixo. Houve diversas participações especiais de músicos
mossoroenses, notadamente Allison Brazuca na guitarra e Gustavo Almeida na
bateria. Não levei minha filmadora para o evento, mas eis um vídeo que
demonstra o talento dos jovens músicos do Pitombeira Trio.
Vidas Secas - Conversa com Walnice Nogueira Galvão
No acervo de fotografia do Instituto Moreira Salles encontram-se
imagens relevantes do sertão de Minas Gerais e do Nordeste
brasileiro. A convite do blog do ims, a professora Walnice Nogueira Galvão –
especialista em dois escritores que retrataram a geografia física e humana
dessa região, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha – analisa um conjunto de fotos de Maureen Bisilliat, Alfredo Vila-Flor,
Claude Santos, Jair Dantas, Flávio de Barros e Edu Simões.
Segundo a professora, é possível identificar
três módulos no conjunto que lhe foi apresentado: natureza, guerra e estética.
Um outro elemento é ainda destacado: a figura do encourado. A
professora ressalta, por fim, o valor do álbum de Flávio de Barros, único
profissional que fotografou a Guerra de Canudos (1896-1897), recuperado pelo Instituto Moreira Salles. Veja o vídeo aqui: http://blogdoims.uol.com.br/ims/divisoes-do-sertao-conversa-com-walnice-nogueira-galvao/
Como não amar a única cidade no mundo onde um McDonald’s faliu?
Eu olindo, tu olindas,
ele olinda. Nos domingos, nós olindamos.
Descobri
que Olinda era verbo quando dei uma carona para o músico Erasto, irmão do
percussionista Naná Vasconcelos. O irmão menos famoso do clã dos Vasconcelos
escolheu a cidade alta para passar seus dias. Por lá escreveu o guia “das
Olindas” que diz assim:
“Subi Mercado da Ribeira
Desci largo de São Bento
No largo do Varadouro
Na Praça do Jacaré
Afoxé, afoxé
Olinda mandou me chamar”
Desci largo de São Bento
No largo do Varadouro
Na Praça do Jacaré
Afoxé, afoxé
Olinda mandou me chamar”
E,
enquanto cantarolava no carro durante a carona, avisou: “pode me deixar nos
Quatro Cantos mesmo, estou precisando Olindar”.
E
como não amar a única cidade no mundo onde um McDonald’s faliu?
Olinda
é mesmo uma cidade estranha. E isso me faz lembrar um causo, passado numa
segunda-feira chuvosa num bar da cidade histórica. E esse conto, caro leitor,
não se passou com a amiga da prima da minha sogra, não. Foi comigo mesmo que
aconteceu, por isso posso atestar de pés juntos, a estranheza do acontecido.
Lá
estávamos nós, amigos boêmios, numa festinha regada a jazz na sede da
Pitombeira (bloco famoso nos dias de Carnaval). Entre uma música e outra, rolou
um zum zum zum, à boca miúda, de que naquela mesma festinha estava Matt Dillon
(ator famoso das bandas de Hollywood).
-
Matt quem? É aquele que fez Supremacia Bourne?
-
Não, é o do filme Crash, no Limite. Aquele do
Oscar, pô.
Passada
a confusão para diferenciar Matt Dillon de Matt Damon (americano é tudo igual)
e Brad Pitt de Tom Cruise (que no calor na discussão, entraram na conversa sem
ter nada a ver com o assunto), confirmamos a presença do famoso no local. Sim,
era ele.
A
notícia, que tinha potencial para se transformar em euforia, autógrafos e briga
por fotos em qualquer lugar do mundo, parou por aí. É de Olinda que estamos
falando, afinal de contas. Ninguém, repito, ninguém no recinto abordou o cara.
Matt ficou lá; sozinho, carente.
O
desprezo pelo moço chegou a tal ponto que ele teve que tirar fotos dele mesmo
no balcão do bar. Deu até pena (dó, na linguagem do Sul, porque quem tem pena é
galinha). Mas a atitude blasé dos olindenses dizia “Pra que Matt se a gente tem
Erasto?”. Que mais além se transforma em “pra que McChicken, se aqui tem
tapioca?” ou “pra que badalar, se a gente pode Olindar”?
O fato, meus amigos, é que
Olinda não é uma cidade, é um estado de espírito. E ai dos turistas que passam
rápido demais, tiram fotos demais, compram bugigangas demais e nem têm tempo de
conjugar o verbo Olindar. Desses dá pena, de verdade.
Téta Barbosa, in oglobo.globo.com (Blog do Noblat)
A uma dama
Vês
esse Sol de luzes coroado,
Em pérolas a Aurora
convertida;
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de planetas adornado?
O céu deixemos: vês, naquele prado,
A rosa com razão desvanecida,
A açucena por alva presumida,
O cravo por galã lisonjeado?
Deixa o prado: vem cá, minha adorada:
Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?
Parece aos olhos ser de prata fina...
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de planetas adornado?
O céu deixemos: vês, naquele prado,
A rosa com razão desvanecida,
A açucena por alva presumida,
O cravo por galã lisonjeado?
Deixa o prado: vem cá, minha adorada:
Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?
Parece aos olhos ser de prata fina...
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.
Gregório de Matos