sábado, 31 de março de 2012
Uma lição milenar dos atenienses
“Somos amantes da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem
indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como
um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior
vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-se-á em uma mesma
pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em
outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá
falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio
às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios
interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos
as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por
compreendê-las claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho
à ação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate antes de
chegar a hora da ação.”
Discurso atribuído a Péricles, por Tucídides
O Rapadura Cult comentado
Caro amigo Elilson. Isso merece uma bebemoração, concorda?
Parabéns pelo seu excelente trabalho no blog. Um diferencial dos demais da
terrinha. Muita cultura e ZERO política. Muito do ótimo.
Um beatle abraço. Togo Ferrário.
Pra meu gosto e é gosto mesmo, que não devo satisfação a
crítico literário de tigela vazia, esse é o melhor blog intelectual do Rio
Grande do Norte. Consegue ser culto sem ser chato. Erudito sem ser besta e
instrutivo sem ser maçante. Poesia é feitura do belo com a língua e não
baboseira deslinguada! Pobre RN de medíocres Cânones.
Abraço de François Silvestre.
Abre Alas, de Ivan Lins
Abre alas pra minha folia
Já está chegando a hora
Abre alas pra minha bandeira
Já está chegando a hora
Apare os teus sonhos que a vida tem dono
E ela vem te cobrar
A vida não era assim, não era assim
Não corra o risco de ficar alegre
Pra nunca chorar
A gente não era assim, não era assim
Já está chegando a hora
Abre alas pra minha bandeira
Já está chegando a hora
Apare os teus sonhos que a vida tem dono
E ela vem te cobrar
A vida não era assim, não era assim
Não corra o risco de ficar alegre
Pra nunca chorar
A gente não era assim, não era assim
Encoste essa porta que a nossa conversa
Não pode vazar
A vida não era assim, não era assim
Bandeira arriada, folia guardada
Pra não se usar
A festa não era assim, não era assim.
Não pode vazar
A vida não era assim, não era assim
Bandeira arriada, folia guardada
Pra não se usar
A festa não era assim, não era assim.
O Pensador, de Rodin
- Que ela é imbecil, é, assim como eu; agora tu, o
que és, um sabichão, que fica aí deitado feito um saco e ninguém te vê fazendo
nada? Antes tu dizias que saías para dar aulas a crianças; e agora, por que não
fazes nada?
- Eu faço… – pronunciou Raskólnikov sem querer e em
tom severo.
- O que?
- Um trabalho…
- Que trabalho?
- Penso – respondeu sério, depois de uma pausa.
Nastácia rolou de rir. (…)
Dostoievski, in Crime e Castigo
Escola de Artes de Mossoró: Um Registro
Foi inaugurada
terça-feira, dia 27 de março, a Escola de Artes de Mossoró. Que não seja apenas
um ato, um fato, um discurso político. Que a Escola de Artes enraíze, frutifique
e se eternize.
O ator Stênio Garcia na "aula inaugural"
Fotos: Elilson Batista
O acerto de Albert Einstein
A Teoria da Relatividade de Albert Einstein é "incrivelmente
precisa", segundo um estudo publicado nesta sexta-feira (30), que ressalta
os acertos dos cálculos do físico alemão na hora de explicar a expansão do
Universo.
Esta conclusão surge de uma pesquisa feita por
uma equipe de físicos da Universidade de Portsmouth (sul da Inglaterra) e do
Instituto Max Planck de Física Extraterrestre da Alemanha, cujos resultados
foram anunciados nesta sexta-feira em um encontro nacional de astronomia na
Universidade de Manchester (Inglaterra).
Assim,
a expansão do Universo poderia ser explicada mediante a teoria de Einstein e a
constante cosmológica, uma combinação que representa a resposta "mais
simples" para este fenômeno, segundo os especialistas.
Os
pesquisadores se centraram no período compreendido entre 5 bilhões e 6 bilhões
de anos, quando o Universo tinha quase a metade da idade de agora, e realizaram
medições com uma precisão "extraordinária".
A
Teoria da Relatividade de Einstein prediz a velocidade pela qual galáxias muito
afastadas entre si se expandem e se distanciam entre si, e a velocidade com a
qual o Universo deve estar crescendo na atualidade.
Estes
resultados são, segundo a pesquisadora Rita Tojeiro, "a melhor medição da
distância intergaláctica já feita, o que significa que os cosmólogos estão mais
perto que no passado de compreender por que a expansão do Universo está se
acelerando".
Neste
processo parece ter um grande protagonismo a energia do vazio, relacionada com
o período inicial da expansão, e segundo alguns astrofísicos também com a
aceleração da expansão do Universo.
Na
opinião de Rita, o melhor da Teoria Geral da Relatividade de Einstein é que ela
pode ser comprovada e que os dados obtidos neste estudo "são totalmente
consistentes" com a noção de que esta energia do vazio é a responsável
pelo efeito de expansão.
Segundo
os especialistas, esta confirmação ajudará os cientistas a compreender melhor o
que é que causa este misterioso processo e por que ele acontece.
Eles
também esperam avançar na pesquisa da matéria escura, aquela que não emite
suficiente radiação eletromagnética para ser detectada com os meios técnicos
atuais, mas cuja existência pode ser deduzida a partir dos efeitos
gravitacionais que causa na matéria visível, tais como as estrelas e as
galáxias.
Os
físicos calculam que a matéria escura representa cerca de 20% do Universo, e o
estudo publicado nesta sexta parece apoiar sua existência.
"Os
resultados não mostram nenhuma evidência de que a energia escura seja
simplesmente uma ilusão fruto de nosso pobre entendimento das leis da
gravidade", acrescentou Rita.
Uma
melhor compreensão da matéria escura ajudaria a entender por sua vez de que são
feitos os buracos negros.
Fonte: Yahoo! Notícias (EFE)
sexta-feira, 30 de março de 2012
Gil evoca sua máquina de ritmos
A constante construção,
desconstrução e reconstrução musical de Gilberto Gil, um dos responsáveis pelo
processo de modernização da música popular brasileira desencadeado no final dos
anos 1960, ganha ares rebuscados no show "Ensaio Geral - Concerto de Cordas
e Máquinas de Ritmo", a ser apresentado neste sábado (31), às 21h, no
Teatro Riachuelo. O projeto confere a oportunidade de apreciar um repertório de
grandes sucessos com uma roupagem mais sofisticada e erudita - característica
alcançada, principalmente, pela presença luxuosa do arranjador e maestro Jaques
Morelenbaum, que também toca violoncelo durante o show.
Distante da polêmica política cultural, Gilberto Gil fala ao VIVER sobre novo disco, mercado musical e turnê pelo norte dos Estados Unidos.
Morelenbaum acompanha Gil (voz
e violão), o filho do cantor Bem Gil (violão e guitarra), o violinista e
rabequeiro Nicolas Krassik e o percussionista Gustavo di Dalva, igualmente
responsável pelas batidas eletrônicas que emolduram o quinteto em determinados
momentos. Prestes a completar 50 anos de carreira, Gilberto Gil buscou no som
lúdico das cordas a inspiração para um espetáculo original e intimista.
"Concerto de Cordas e
Máquinas de Ritmo" vem sendo pensado desde 2006, quando o baiano circulou
com o espetáculo de voz e violão "Gil Luminoso". Na época, já contava
com o reforço do filho guitarrista, e o encontro acabou gerando outro projeto:
o álbum "Banda Dois", de 2009. É aí que entra Jaques. A trilha sonora
impecável do trio ganhou um tom ainda mais desafiador com a chegada do
violinista Krassik, herdeiro da tradição francesa de violinistas de jazz
dedicados à música brasileira, e do percussionista Gustavo di Dalva. Este
último, por sua vez, já acompanhava Gil e trouxe para incrementar o som do
conjunto um universo rítmico de máquinas eletrônicas, favorecendo o encontro
entre o moderno e o antigo, entre o pop e o regional, uma subversão original e
irresistível, é marca do trabalho de Gilberto Gil.
"Concerto de
Cordas..." estreou em maio deste ano, com presença de orquestra de 40
músicos, nos palcos do Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, e
para viabilizar turnê nacional do espetáculo optou-se pelo formato enxuto. O
quinteto fará poucas apresentações de "Ensaio Geral - Concerto..."
entes de voltar à configuração inicial, ou seja o show de amanhã é um convite à
imersão entre frases musicais melódicas e a voz marcante voz de Gil, que
concedeu a seguinte entrevista ao VIVER:
Serviço: Show "Ensaio Geral: Concerto de Cordas e Máquinas de
Ritmo", de Gilberto Gil. Sábado (31), 21h, no Teatro Riachuelo. Ingressos
à venda na bilheteria do teatro por R$ 160 e R$ 80 (meia)
ENTREVISTA
TRIBUNA DO NORTE: Gil, o repertório do show "Ensaio
Geral: Concerto de Cordas e Máquinas de Ritmo" traz músicas inéditas ou a
grande novidade é o formato da banda?
GILBERTO GIL: O
repertório mistura músicas de vários períodos de minha já longa carreira e
algumas inéditas. O formato e a sonoridade desta formação, possibilitaram
muitas novidades mesmo nas músicas mais conhecidas do meu repertório.
Você vem com quinteto completo: Bem Gil,
Jaques Morelenbaum, Krassik e Gustavo di Dalva?
Pois é, um quarteto
e mais eu de voz e violão. Um quinteto, portanto.
Uma das
características do seu trabalho é a experimentação, a renovação. Compor é um
exercício diário para você?
Não é um exercício
diário, mas quando acontece é irresistível. A experimentação e as novidades no
meu trabalho vem de uma inquietação que acho que é o que move o artista.
Desde 2006, com o
lançamento de "Gil Luminoso" (voz e violão), você tem intercalado
discos intimistas com outro mais, digamos, extrovertidos - ora com banda ora
voz e violão(ões). Esse "risco" (entre aspas) funciona como uma
espécie de combustível para sua música?
Gosto de fazer uma turnê com um espetáculo,
intercalar outro show no meio, voltar ao formato banda, voltar ao formato voz e
violão... Este ano, por exemplo, teremos esse espetáculo que apresento agora em
Natal e que levarei em julho para a Europa e em setembro para países da América
Latina. Já em outubro e novembro, levo o (novo disco) "Fé na Festa"
aos Estados Unidos e México, ainda ainda mostrei esse trabalho de que tanto
gosto aos americanos do norte.
Muito se fala em
pirataria, que a indústria fonográfica acabou, dos empregos perdidos de um lado
e a geração de novos por outro etc. Dentro desse novo contexto midiático, como
enxerga o futuro do mercado musical?
O mercado musical
sempre existirá pois a música vai seguir o seu caminho independente dos meios
de se difundi-la ou vendê-la. Não me preocupo muito com isso pois tudo é
muito novo e mutante no mundo digital.
A partir desse
entendimento (das perspectivas de futuro), como um artista da nova geração pode
se destacar nesses tempos de internet, downloads, instantaneidade e redes
sociais? Será cada vez mais difícil aparecer novos Caetanos e Gilbertos no
cenário da música brasileira?
Acho que os novos
artistas tem uma infinidade de possibilidades, de surgir muito maiores do que
quando os "Caetanos e Gilbertos" surgiram. Hoje se grava um
trabalho no quintal de casa, se divulga sozinho via redes sociais, se tem
acesso ao trabalhos de terceiros via downloads...
E como ficará a
relação compositor x direitos autorais dentro dessa ótica?
Isto ainda está
sendo estudado de modo a preservar a autoria da canção e ao mesmo tempo das
acesso a ela por todos.
Qual sua avaliação
da atuação do Ministério da Cultura nesta atual gestão Dilma Rousseff? Avançou
ou muita coisa foi desfeita?
Não tenho
acompanhado muito de perto a atual gestão do MinC, mas tenho a impressão que a
Dilma está satisfeita.
Fonte: www.tribunadonorte.com.br
O cuscuz do dia-a-dia
Em matéria de mei doido
Eu me sinto mais ou menos
Dei com as palavras no palco
Feito um Biu de paletó
Severino pra platéia.
Dei com as palavras no palco
Feito um Biu de paletó
Severino pra platéia.
Usei palavras plebeias
Que nunca puderam entrar
Em discurso ou poesia.
Que nunca puderam entrar
Em discurso ou poesia.
Palavras soltas, baldias
Daquelas só disponíveis
Nas últimas nuvens do céu.
Daquelas só disponíveis
Nas últimas nuvens do céu.
Conversei com flamboaiãs
No puro flamboaianês.
Despejei cachos de lágrimas
Pros versos de Assaré.
Beijos de rapadura
Pro vozeirão de Luiz
Sofri adivinhaduras
No sertão do pensamento.
No puro flamboaianês.
Despejei cachos de lágrimas
Pros versos de Assaré.
Beijos de rapadura
Pro vozeirão de Luiz
Sofri adivinhaduras
No sertão do pensamento.
Senti, naquele momento
Que isso era um fazimento
Democrático feito jeans.
Que isso era um fazimento
Democrático feito jeans.
Sem rodeio e sem pantins
Sem nhenhenhém, sem besteira
Fiz de velhas cuscuzeiras
Um gordo baú de flandre
Forjado em Campina Grande
Com três tons de serventia:
Deixar minha poesia
Meu verso e meu converseiro
Com textura cor e cheiro
Do cuscuz do dia-a-dia.
Sem nhenhenhém, sem besteira
Fiz de velhas cuscuzeiras
Um gordo baú de flandre
Forjado em Campina Grande
Com três tons de serventia:
Deixar minha poesia
Meu verso e meu converseiro
Com textura cor e cheiro
Do cuscuz do dia-a-dia.
Jessier Quirino
quinta-feira, 29 de março de 2012
O crime do Prof. de Matemática
“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se
para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”,
pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém
vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia
que esse crime não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava
fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida
plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda
não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as
profundas traições.”
Clarice
Lispector, in Laços de Família
A juventude dos deuses
Tudo o que se passou
É mentira
Porque o que é o ser
Não pode nunca mais deixar de sê-lo.
Ontem nunca existiu, não te levantaste nem dormiste.
A hora que passou não passou, onde está ela agora?
Tudo o que foi, e tudo foi, é mentira e unicamente mentira.
Algo está aqui, mas este algo não é o teu passado
Nem o do mundo, nem o do Universo.
Nunca nada existiu.
Tudo acabou de ser criado, agora.
Não perguntes, deploravelmente, como pôde Deus criar o mal,
Pois jamais houve mal.
Nunca um homem nasceu.
Nunca morreu homem algum.
Nunca ninguém amou ninguém.
Nunca houve qualquer guerra sobre a terra.
Tua mãe não te pariu, tua avó não pariu a tua mãe.
César não atravessou o Rubicão, a América não foi descoberta.
Nada disso jamais aconteceu, o único acontecimento
É estares aqui, neste instante, espectador desta mentira enorme
E não existires também.
Amanhã serás tão mentira quanto Napoleão ou um amor perdido,
A História nunca ocorreu, jamais um homem foi assassinado,
Savonarola não marchou para a fogueira, não ergueram a muralha da China,
Ela está lá, a muralha, agora, mas foi erguida neste instante,
Nunca existiu também, embora surja diante dos teus olhos.
Jamais alguém deu uma esmola, jamais alguém agonizou no mundo,
O tempo não permite a verdade de nada, exceto de um olho
Que vê tudo isso, e que não é o teu, pois jamais nasceste.
Sonho e vácuo. Rumor. Mentira. Um filme que passa
E a cada fotograma se destrói, eternamente.
Nada te pode ferir. Tua dor é mentira, escárnio a tua honra.
O Tempo é o parricida do ser. O Tempo é que te liberta
De tudo. No Tempo és nada. No Tempo
Não és. Nada é. Só um olho
Nem teu nem meu fita essa fanfarra inútil,
Essa torre de nada
Chamada Desespero.
Só esse olho fita
E existe, como na noite
A um velho filme que se esvai
Branco e negro nas trevas.
Tua mulher não te pode trair. Tua casa não pode pegar fogo.
Nada existiu jamais.
Nem um beijo.
Nem um crime.
Tu apenas existes neste instante
Invadeável
Onde és o olho para o olho que não passa,
Onde és o ator da peça prolixa que vai terminar,
Onde és a vagabunda para o ato de doze minutos,
O substituível, o dispensável
Espectador da lenda
Que nunca se passou.
Nada. Apenas tu aqui, sozinho,
Pavorosamente sozinho, miseravelmente sozinho,
Envolvido com trapos de tecido fino na borrasca enorme,
Na borrasca imóvel, no furacão sem vento, na geleira sem frio
Envolto em trapos.
A casa em que nasceste esses trapos,
O sorriso de teu pai esses trapos,
A batalha de Salamina, o canto de Akhenaton esses trapos,
Os seios daquela que forjaste, a queda de Constantinopla esses trapos,
Cristo subindo o Calvário, os soluços de tua filha,
A caminhada nas falésias esses trapos, Atenas esses trapos,
Esses trapos teu rosto aos seis anos, as montanhas, a noite,
As ondas que arrebentam, as constelações esses trapos,
Tudo esses trapos contra a tormenta de estares aqui
Sozinho,
Tu,
O olho do Olho que não te vê e não és,
Agora, no agora de onde jamais poderás fugir.
Nada nunca aconteceu,
Nada,
Exceto esse incansável olho fitando a lenda que se esgarça
Cada vez mais longe,
Cada vez mais lenda,
Como um arranhado filme roufenho e anacrônico
Onde todos os atores morreram
Farolando numa sala vazia
E negra e branca
Na noite.
Porque o que é o ser
Não pode nunca mais deixar de sê-lo.
Ontem nunca existiu, não te levantaste nem dormiste.
A hora que passou não passou, onde está ela agora?
Tudo o que foi, e tudo foi, é mentira e unicamente mentira.
Algo está aqui, mas este algo não é o teu passado
Nem o do mundo, nem o do Universo.
Nunca nada existiu.
Tudo acabou de ser criado, agora.
Não perguntes, deploravelmente, como pôde Deus criar o mal,
Pois jamais houve mal.
Nunca um homem nasceu.
Nunca morreu homem algum.
Nunca ninguém amou ninguém.
Nunca houve qualquer guerra sobre a terra.
Tua mãe não te pariu, tua avó não pariu a tua mãe.
César não atravessou o Rubicão, a América não foi descoberta.
Nada disso jamais aconteceu, o único acontecimento
É estares aqui, neste instante, espectador desta mentira enorme
E não existires também.
Amanhã serás tão mentira quanto Napoleão ou um amor perdido,
A História nunca ocorreu, jamais um homem foi assassinado,
Savonarola não marchou para a fogueira, não ergueram a muralha da China,
Ela está lá, a muralha, agora, mas foi erguida neste instante,
Nunca existiu também, embora surja diante dos teus olhos.
Jamais alguém deu uma esmola, jamais alguém agonizou no mundo,
O tempo não permite a verdade de nada, exceto de um olho
Que vê tudo isso, e que não é o teu, pois jamais nasceste.
Sonho e vácuo. Rumor. Mentira. Um filme que passa
E a cada fotograma se destrói, eternamente.
Nada te pode ferir. Tua dor é mentira, escárnio a tua honra.
O Tempo é o parricida do ser. O Tempo é que te liberta
De tudo. No Tempo és nada. No Tempo
Não és. Nada é. Só um olho
Nem teu nem meu fita essa fanfarra inútil,
Essa torre de nada
Chamada Desespero.
Só esse olho fita
E existe, como na noite
A um velho filme que se esvai
Branco e negro nas trevas.
Tua mulher não te pode trair. Tua casa não pode pegar fogo.
Nada existiu jamais.
Nem um beijo.
Nem um crime.
Tu apenas existes neste instante
Invadeável
Onde és o olho para o olho que não passa,
Onde és o ator da peça prolixa que vai terminar,
Onde és a vagabunda para o ato de doze minutos,
O substituível, o dispensável
Espectador da lenda
Que nunca se passou.
Nada. Apenas tu aqui, sozinho,
Pavorosamente sozinho, miseravelmente sozinho,
Envolvido com trapos de tecido fino na borrasca enorme,
Na borrasca imóvel, no furacão sem vento, na geleira sem frio
Envolto em trapos.
A casa em que nasceste esses trapos,
O sorriso de teu pai esses trapos,
A batalha de Salamina, o canto de Akhenaton esses trapos,
Os seios daquela que forjaste, a queda de Constantinopla esses trapos,
Cristo subindo o Calvário, os soluços de tua filha,
A caminhada nas falésias esses trapos, Atenas esses trapos,
Esses trapos teu rosto aos seis anos, as montanhas, a noite,
As ondas que arrebentam, as constelações esses trapos,
Tudo esses trapos contra a tormenta de estares aqui
Sozinho,
Tu,
O olho do Olho que não te vê e não és,
Agora, no agora de onde jamais poderás fugir.
Nada nunca aconteceu,
Nada,
Exceto esse incansável olho fitando a lenda que se esgarça
Cada vez mais longe,
Cada vez mais lenda,
Como um arranhado filme roufenho e anacrônico
Onde todos os atores morreram
Farolando numa sala vazia
E negra e branca
Na noite.
Alexei Bueno, in Poesia reunida.
quarta-feira, 28 de março de 2012
Sony World Photography Awards 2012
Fotos Vencedoras do Sony World Photography Awards 2012, um concurso mundial anual de fotografia. Confira os ganhadores de algumas categorias:
Melhor foto de arte e cultura da categoria aberta - Indifest, de Sanket K, Índia
Melhor foto de baixa luminosidade na categoria aberta - Sinfonia de Fogo, de Natalia Belentsova, Rússia
Melhor foto de sorriso da categoria aberta - Casamento, de Piotr Stasiuk, Polônia
Melhor foto de pessoas na categoria aberta - No Meio, de Ana Gregoric, Eslovênia
Os Navios do Pireu - capítulo 154
Há
de lembrar-se, disse-me o alienista, aquele famoso maníaco ateniense, que supunha
que todos os navios entrados no Pireu eram de sua propriedade. Não passava de
um pobretão, que talvez não tivesse, para dormir, a cuba de Diógenes; mas a
posse imaginária dos navios valia por todas as dracmas da Hélade. Ora bem, há
em todos nós um maníaco de Atenas. E quem jurar que não possuiu alguma vez,
mentalmente, dois ou três patachos, pelo menos, pode crer que jura falso.
-
Também o senhor? Perguntei-lhe.
-
Também eu.
-
Também eu?
-
Também o senhor; e o seu criado, não menos, se é seu criado esse homem que ali
está sacudindo os tapetes à janela.
De
fato, era um dos meus criados que batia os tapetes, enquanto nós falávamos no
jardim, ao lado. O alienista notou que ele escancarara as janelas todas desde
longo tempo, que alçara as cortinas, que devassara o mais possível a sala,
ricamente alfaiada, para que vissem de fora, e concluiu: - Este seu criado tem
a mania do ateniense crê: que os navios são dele; uma hora de ilusão que lhe dá
a maior felicidade da terra.
Machado de Assis, in Memórias
Póstumas de Brás Cubas
Um disco fundamental da MPB
Nara Leão
Opinião de Nara - 1964
Durante muitos anos boa parte do repertório musical
brasileiro gravado ficou esquecido nas prateleiras de lojas de discos ou em
sebos, ocasionando uma procura muito grande daqueles que buscavam manter uma
boa discoteca e/ou ouvir novamente grandes momentos de nossa canção popular.
Muitos dos antigos LPs mesmo quando eles reinavam no mercado não eram
relançados, e assim as novas gerações pouco conheciam do trabalho de cantores e
intérpretes. As já famosas coletâneas lançavam apenas o básico do repertorio de
cada artista e se repetiam sempre. Com o advento do CD descobriu-se que uma
maneira de esquentar as vendas do mercado fonográfico seriam as gravadoras
abrirem seus arquivos e relançarem discos históricos e fundamentais resgatando
assim um patrimônio musical inigualável e por consequência direta conservar de
forma definitiva antigas matrizes, além é claro, de despertar o interesse por
antigos artistas que fizeram a história da música popular brasileira.
Apesar do esforço muitos discos acabaram tendo uma tiragem
pequena, porém, a sua distribuição na maioria das vezes precária não se
preocupou em fazer retorná-los a grandeza que tinham quando foram originalmente
lançados e dessa maneira muitos ainda continuam esquecidos nas prateleiras das
lojas, e o publico pouco sabe da sua existência, agora sob novo formato e com a
gravação restaurada. É uma pena pois um trabalho como esse merecia mais
cuidado, até porque em tais relançamentos incidem custos que se não derem o
resultado financeiro esperado, já que ninguém faz nada para ter prejuízo, a
tendência é diminuir o ritmo de relançamentos, perdendo com isso o público e a
memória de nossa canção.
Por outro lado também muitas dessas iniciativas acabam
obtendo o êxito almejado por estarem sob os cuidados de profissionais que sabem
exatamente o que e porque estão empenhados nessa luta em prol da revalorização
da música nacional. Estas palavras iniciais são para nos remeter aos oportunos
lançamentos que já vem ocorrendo a alguns anos das obras completas de grandes
interpretes/compositores, e no caso especifico nestas linhas falaremos de um LP
de Nara Leão que faz parte das duas caixas com o total de sua discografia,
relançada e remasterizada no formato digital.
O disco em questão é Opinião de Nara e é fundamental para uma
discografia básica de musica brasileira por diversos fatores, dentre eles o
fato de ter despertado em Oduvaldo Viana Filho a ideia a partir de seu título
de produzir um dos mais importantes shows de musica brasileira em todos os
tempos, Opinião, que contou além de Nara, com a participação de Zé Kéti, João
do Vale e foi o responsável pelo lançamento de Maria Bethânia.
A gravação produzida pelo selo Philips iniciou-se em setembro
de 1964 em São Paulo no estúdio da Radio Gazeta e contava com a participação do
maestro Erlon Chaves ao piano, Tião Neto, no baixo e Edson Machado, na bateria,
sendo depois concluída no estúdio da Phonogram no Rio de Janeiro. Nara Leão
nessa ocasião vinha se distanciando do rótulo de musa da Bossa Nova e partia
para um repertório cada vez mais engajado, vivíamos os primeiros momentos da
ditadura e a perspectiva futura era muito sombria, por outro lado, havia a
forte influencia em sua carreira dos compositores e das idéias oriundas dos
CPCs os Centros Populares de Cultura da UNE – União Nacional dos Estudantes.
Este seu segundo LP seguiria as bases do repertório do seu
primeiro trabalho produzido por Aloysio de Oliveira para a gravadora Elenco e
contava com uma seleção de músicas que misturava os sambas de Zé Kéti e João do
Vale indo aos compositores de sua geração como Edu Lobo e Baden Powell e outros
como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Sergio Ricardo. Nessa salada musical bem
dosada não faltaram canções líricas como Derradeira primavera, de Tom e
Vinicius, os sambas Labareda e Deixa, de Baden e Vinicius, Em tempo de adeus,
de Edu Lobo e Ruy Guerra, Opinião e Acender as velas, de Zé Kéti, Chegança, de
Edu Lobo e Oduvaldo Viana Filho, Sina de caboclo, de João do Vale e J. B. de
Aquino que tratava de reforma agrária e Esse mundo é meu, de Sergio Ricardo que
deram o toque político do disco.
Acrescente-se ainda Berimbau, de João Melo e Clodoaldo Brito,
Na roda de capoeira, do folclore baiano e a clássica marcha Malmequer, de
Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar, sucesso do carnaval de 1941,
inaugurando um hábito de Nara que era incluir em cada um de seus discos um
antigo clássico da música brasileira. Destaque também para a introdução de
Opinião, de Zé Kéti, que por sugestão de Glauber Rocha, que aliás deus vários
palpites no disco, vem precedida por batidas de tambores, relembrando toques
marciais militares, a fim de não nos esquecermos que vivíamos momentos de um
poder político oriundo das casernas.
Juntando-se tudo isso temos um disco permanente, autoral,
indispensável, uma intérprete inesquecível e o melhor da musica popular
brasileira contemporânea. Que seja, pois, bem vindo de volta às nossas casas.
Luiz Américo
Lisboa Junior, in
www.luizamerico.com.br
Contra a fama
Ser famoso não é bonito
Não nos torna mais criativos.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.
O fim da arte é doar somente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.
Cumpre viver sem impostura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.
Convém deixar brancos à beira
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.
Apagar-se no anonimato,
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como à paisagem
Oculta a nuvem com recato.
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como à paisagem
Oculta a nuvem com recato.
Boris
Pasternak
terça-feira, 27 de março de 2012
Carta de Erasmo de Roterdam a Thomas Morus
Achando-me,
dias atrás, de regresso da Itália à Inglaterra, a fim de não gastar todo o
tempo da viagem em insípidas fábulas, preferi recrear-me, ora volvendo o
espírito aos nossos comuns estudos, ora recordando os doutíssimos e ao mesmo
tempo dulcíssimos amigos que deixara ao partir. E foste tu, meu caro Morus, o
primeiro a aparecer aos meus olhos, pois que malgrado tanta distância, eu via e
falava contigo com o mesmo prazer que costumava ter em tua presença e que juro
não ter experimentado maior em minha vida. Não desejando, naquele intervalo,
passar por indolente, e não me parecendo as circunstâncias adequadas aos
pensamentos sérios, julguei conveniente divertir-me com um elogio da Loucura.
Por que essa inspiração? perguntar-me-ás. Pelo seguinte: a princípio,
dominou-me essa fantasia por causa do teu gentil sobrenome, tão parecido com
Mória quando realmente estás longe dela e, decreto, ainda mais longe do
conceito que em geral dela se faz. Em seguida, lisonjeou-me a ideia de que essa
engenhosa pilhéria pudesse merecer a tua aprovação, se é verdade que
divertimentos tão artificiais, não me parecendo plebeus, naturalmente, nem de
todo insulsos, te possam deleitar, permitindo que, como um novo Demócrito,
observes e ridicularizes os acontecimentos da vida humana. Mas assim como, pela
excelência do gênio e de talentos, estás acima da maioria dos homens, assim
também, pela rara suavidade do costume e pela singular afabilidade, sabes e
gostas, sempre e toda parte, de habituar-se a todos e a todos parecer amável e grato.
Por
conseguinte, gostarás agora, não só de aceitar de bom grado esta minha pequena
arenga, como um presente do teu bom amigo, mas também de colocá-la sob o teu
patrocínio, como coisa sagrada para ti e, na verdade, mais tua do que minha. Já
prevejo que não faltarão detratores para insurgir-se contra ela, acusando-a de
frivolidade indigna de um teólogo, de sátira indecente para a moderação cristã,
em suma, clamando e cacarejando contra o fato de eu ter ressuscitado a antiga
comédia e, qual o novo Luciano, ter magoado a todos sem piedade. Mas os que se
desgostarem com a ligeireza do argumento e com o seu ridículo devem ficar
avisados de que não sou o seu autor, pois que com o uso se familiarizaram
numerosos grandes homens. Com efeito, muitos séculos antes, Homero, escreveu a
sua Batraquiomaquia, Virgílio cantou o mosquito e a amoreira, e Ovídio a
nogueira; Policrates chegou a fazer o elogio de Busíris, mais tarde impugnando
e corrigido por Isócrates; Glauco enalteceu a injustiça, o filósofo Favorito
louvou Tersites e a febre quartã; Sinésio a calvície e Luciano a mosca
parasita; finalmente, Sêneca ridicularizou a apoteose de Cláudio, Plutarco
escreveu o diálogo do grilo co Ulisses, Luciano e Apuleio falaram do burro; e
um tal Grunnio Corocotta fez o testamento do porco, citado por São Jerônimo.
Saibam, pois, esses censores que também, para divertir-se, já joguei xadrez e
montei em cavalo de pau, como um menino. Na verdade, haverá maior injustiça do
que, sendo permitida uma brincadeira adequada a cada idade e condição, não
poder pilheriar um literato, principalmente quando a pilhéria tem um fundo de
seriedade, sendo as facécias manejadas apenas como disfarce, de forma que quem
as lê, quando não seja um solene bobalhão, mas possua algum faro, encontre
nelas ainda mais proveito do que em profundos e luminosos temas? Que dizer,
então, de alguém que, com um longo discurso, depois de muito estudar e fatigar
as costas, elogiasse a Retórica ou a Filosofia? Ou de alguém que escrevesse o
elogio de um príncipe, outro uma exortação contra os turcos, outro fizesse
horóscopos e predições baseado nos planetas, outro questões de lana-caprina e
investigações futilíssimas? Portanto, assim como não há nada mais inepto do que
aborda graves argumentos puerilmente, assim também é bastante agradável tratar
de igual forma as pilhérias, que não têm aqui outro objetivo senão o pilheriar.
Quanto
a mim, deixo que os outros julguem esta minha tagarelice; mas, se o meu
amor-próprio não deixar que eu o perceba, contentar-me-ei de ter elogiado a Loucura
sem estar inteiramente louco. Quando à imputação de sarcasmo, não deixarei de
dizer que há muito tempo existe a liberdade de estilo com a qual se zomba da
maneira por que vive e conversa o homem, desde que não se caia no cinismo e no
veneno. Assim, pergunto se se deve estimar o que magoa, ou antes o que ensinar
e instrui, censurando a vida e os costumes humanos, sem pessoalmente ferir
ninguém. Se assim não fosse, precisaria eu mesmo fazer uma sátira a meu
respeito, com todas as particularidades que atribuo aos outros. Além disso,
quem se insurge em geral contra todos os aspectos da vida não deve ser inimigo
de ninguém, mas unicamente do vício em toda a sua extensão e totalidade. Se
houver, pois, alguém que se sinta ofendido por isso, deverá procurar descobrir
as suas próprias mazelas, porque, do contrário, se tornará suspeito ao mostrar
receio de ser objeto da minha censura. Muito mais livre e acerbo nesse gênero
literário foi São Jerônimo, que nem sequer perdoava os nomes das pessoas! Nós,
porém, além de calarmos absolutamente os nomes, temperamos o estilo, de forma
que o leitor honesto verá por si mesmo que o meu propósito foi mais divertir do
que magoar. Seguindo o exemplo de Juvenal, em nenhum ponto tocamos na oculta
cloaca de vícios da humanidade, nem relevamos as suas torpezas e infâmias,
limitando-nos a mostrar o que nos pareceu ridículo. Se, apesar de tudo, ainda
houver ranzinzas e descontentes, que ao menos observem como é bonito e
vantajoso ser acusado de loucura. Com efeito, na boca da que trouxemos à cena e
fizemos falar, foi necessário pôr os juízos e as palavras que mais se
coadunaram com o seu caráter. Mas, para que hei de te dizer todas essas coisas,
se és emérito advogado, capaz de defender egregiamente mesmo as causas
favoráveis?
Sem
mais, eloquentíssimo Morus, estimo que estejas são e tomes animosamente a parte
de tua loucura.
Erasmo de Roterdan, in Elogio
da Loucura. Tradução Paulo M. Oliveira.
Esta é a carta escrita por Erasmo de Roterdam a Thomas Morus em junho de 1508. É uma introdução a obra Elogio da Loucura
Esta é a carta escrita por Erasmo de Roterdam a Thomas Morus em junho de 1508. É uma introdução a obra Elogio da Loucura
Duas flautas
Uma noite em que
eu respirava o perfume das flores
À beira do rio,
O vento
trouxe-me a canção de uma flauta distante.
Para responder-lhe,
cortei um ramo de salgueiro
E a canção da
minha flauta embalou a noite encantada.
Desde então,
todos os dias,
À hora em que o
campo adormece,
Os pássaros
ouvem a conversa
De dois pássaros
desconhecidos,
Cuja linguagem,
no entanto, compreendem.
Li Po, poeta chinês. Tradução de Cecília Meireles.
segunda-feira, 26 de março de 2012
Escusa
Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de
cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.
Sou poeta da cidade,
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o
[gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
[das madrugadas
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.
Sou poeta da cidade,
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e aprenderam a respirar o
[gás carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os olhos nas cores
[das madrugadas
Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.
Manuel Bandeira, in Estrela da Vida inteira
O Paraíso é uma questão pessoal
“Segundo os filósofos, aquilo em
que um homem acredita, acaba sendo a sua realidade. Durante anos eu disse que
não era mecânico e não era mecânico. Ao dizer que não sabia sequer distinguir
uma ferramenta de outra, fechava-se as portas de um mundo de luz. Tinha de
haver alguém para consertar os meus aviões para que eu pudesse voar.
Ai, comprei um louco e velho
biplano, com um motor circular e demodê no focinho, e não demorei a descobrir
que aquele motor, não ia tolerar um piloto que não soubesse nada sobre a
personalidade de um Wright de 175 cavalos, ou algo sobre reparos em estruturas
de madeira e tela encerada.
Foi assim que aconteceu a coisa
mais estranha de toda a minha vida... mudei de maneira de pensar. Aprendi a
mecânica dos aviões.
O que todo o mundo sabia há
muito tempo, para mim foi como uma aventura. Por exemplo, um motor aberto e
espalhado sobre uma bancada, é apenas uma coleção de peças de formas
diferentes, apenas ferro frio. Não obstante, essas mesmas peças, reunidas e
montadas numa fria fuselagem, transformam-se num novo ser, numa escultura
acabada numa forma de arte digna de qualquer galeria. E, como nenhuma outra
escultura na história da arte, o motor e a fuselagem criam vida da mão do
piloto e unem a sua vida à dele. Separados, o ferro, a madeira, o pano e os
homens estão presos ao solo. Juntos, podem se erguer no céu, explorar lugares
onde nenhum de nós já esteve. Foi, para mim, uma surpresa aprender isso, pois
sempre julgara que mecânica se resumia a metal partido e pragas em voz baixa”.
Richard Bach