Sábado, dia 04/02, às 20:00h, no Bar de Chicó, em Jucuri.
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Não tenho medo da morte, de Gilberto Gil
Não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar
A morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?
Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte e depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
mas medo de morrer, sim
a morte e depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou
Então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida.
Mundo Pequeno
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
Manoel de Barros, in O Livro das Ignorãças
A verdadeira divisão humana
“Sois vós um daqueles a quem se chama feliz? Pois bem, vós estais tristes todos os dias. Cada dia tem uma grande amargura e um pequeno cuidado. Ontem tremíeis pela saúde de alguém que vos é caro, hoje receais pela vossa; amanhã será uma inquietação de dinheiro, depois a diatribe de um caluniador ou a infelicidade de um amigo, mais tarde o mau tempo que faz, qualquer coisa que se quebrou ou se perdeu, uma vez um prazer que a vossa consciência e a coluna vertebral reprovam, outra vez a marcha dos negócios públicos. Isto sem contar as penas de coração. E assim sucessivamente. Uma nuvem que se dissipa e outra que se forma logo. Apenas um dia em cem de plena felicidade e cheio de sol. E sois desse pequeno número que é feliz! Quanto aos outros homens, envolve-os a noite estagnante.
Os espíritos refletidos usam pouco desta locução: os felizes e os infelizes. Neste mundo, evidentemente vestíbulo de outro, não há felizes.
A verdadeira divisão humana é esta: os iluminados e os tenebrosos.
Diminuir o número dos tenebrosos e aumentar o dos iluminados, eis o fim. É por isso que nós gritamos: ensino, ciência! Aprender a ler, é alumiar com fogo; toda a sílaba soletrada cintila.
De resto, quem diz luz não diz, necessariamente, alegria. Também se sofre com a luz; em demasia queima. A chama é inimiga da asa. Queimar-se sem deixar de voar, é o prodígio do gênio.
Quando conhecerdes e quando amardes, sofrereis ainda. O dia nasce em lágrimas. Os iluminados choram quando mais não seja sobre os tenebrosos.”
Victor Hugo, in Os Miseráveis
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Aquarela do Brasil, por Django Reinhardt
Jean "Django" Reinhardt (Liberchies, 23 de janeiro de 1910 — Paris, 16 de maio de 1953) foi um guitarrista de jazz belga de origem cigana. Considerado um dos melhores e mais influentes guitarristas de todos os tempos, ele também influenciou vários músicos e inovou ao ajudou a criar o estilo gypsy jazz.
É tido como o pai do jazz na Europa, e também um dos primeiros músicos não negros nesse estilo musical. De descendência cigana, Reinhardt nasceu na Bélgica e acompanhou sua caravana até chegar aos arredores de Paris. Nessa cidade, começou a tocar banjo logo aos doze anos na vida noturna. Em sua primeira gravação conhecida (de 1928) ele toca o banjo. Após um incêndio no mesmo ano, ele perdeu a mobilidade de dois dedos da mão esquerda, o que o forçou a desenvolver uma técnica própria. Fez sucesso posteriormente com o Quintette du Hot Club de France; com o início da Segunda Guerra Mundial, o grupo se separou. Django faleceu em 1953, vítima de uma hemorragia cerebral.
Entregou ele, recebeu ela*
Foto e arte final: Pablo Einstein
A sobrinha de minha esposa, Mariana, residente em Pau dos Ferros – RN, ganhou de sua tia Vânia, de João Pessoa – PB, um cachorro da raça poodle, que recebeu três nomes: Tobby, Nino e Nego e logo se tornou o xodó de todos no novo lar.
Nego, como é carinhosamente chamado devido à tonalidade predominando na ponta dos pêlos, é enviado semanalmente a um Pet Shop para banho e higiene.
Em uma das últimas entregas, um funcionário do Pet Shop, todo orgulhoso, mostrava à minha sogra o resultado do seu trabalho:
- Dona Socorro, ela não está linda, com esse lacinho rosa?
- Ela? Lacinho rosa? Menino, você não errou a entrega?
Não, definitivamente o funcionário não tinha trazido outro cachorro, pois era o mesmo Nego, feliz ao avistar a dona da casa, saltitando e pedindo colo, só diferindo do original no marcante lacinho rosa encimado em sua cabeça, em forma de coque.
Dona Socorro, dos Marinhos de Marcelino Vieira, família conhecida pelo humor e verve, não perdeu a oportunidade:
- Menino, que banho bem dado! Se tivessem lavado direito, por baixo, teriam visto o pingulim do cachorro e trazido ele de gravata.
Resumindo o final da comédia: esse funcionário, acabrunhado, nunca mais apareceu para a entrega de Nego, já notadamente identificado como tal no Pet shop.
*Causo escrito por mim e publicado, ontem, no jornal O Mossoroense, na coluna Recitanda, reproduzida a seguir:
Os atos valem mais que as palavras
“Nenhuma explicação verbal poderá alguma vez substituir a contemplação. A unidade do Ser não é transmissível pelas palavras. Se eu quisesse ensinar a homens, cuja civilização o desconhecesse, o que é o amor a uma pátria ou a uma quinta, não disporia de argumento algum para os convencer. São os campos, as pastagens e o gado que constituem uma quinta. Todos e cada um deles têm como missão produzir riqueza. No entanto, há alguma coisa na quinta que escapa à análise dos seus componentes, pois existem proprietários que, por amor à sua quinta, se arruinariam para a salvar. Pelo contrário, é essa alguma coisa que enriquece com uma qualidade particular os componentes. Estes tornam-se gado de uma quinta, prados de uma quinta, campos de uma quinta...
Assim se passa a ser homem de uma pátria, de um ofício, de uma civilização, de uma religião. Mas, para que alguém se reclame de tais Seres, convém, antes de mais, fundá-los em si próprio. E, se não existir o sentimento da pátria, nenhuma linguagem o transmitirá. O Ser de que nos reivindicamos não o fundamos em nós senão por atos. Um Ser não pertence ao domínio da linguagem, mas dos atos. O nosso Humanismo desprezou os atos. Fracassou na sua tentativa”.
Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra
domingo, 29 de janeiro de 2012
Sobre a diferença dos espíritos
Apesar de todas as qualidades do espírito se poder encontrar num grande espírito, algumas há, no entanto, que lhe são próprias e específicas: as suas luzes não têm limites, atua sempre de igual modo e com a mesma atividade, distingue os objetos afastados como se estivessem presentes, compreende e imagina as coisas mais grandiosas, vê e conhece as mais pequenas; os seus pensamentos são elevados, extensos, justos e inteligíveis; nada escapa à sua perspicácia, que o leva sempre a descobrir a verdade, através das obscuridades que a escondem dos outros. Mas, todas estas grandes qualidades não impedem por vezes que o espírito pareça pequeno e fraco, quando o humor o domina.
Um belo espírito pensa sempre nobremente; produz com facilidade coisas claras, agradáveis e naturais; tornam visíveis os seus aspectos mais favoráveis, e enfeita-os com os ornamentos que melhor lhes convêm; compreende o gosto dos outros e suprime dos seus pensamentos tudo o que é inútil ou lhe possa desagradar. Um espírito reto, fácil e insinuante sabe evitar e ultrapassar as dificuldades; adapta-se facilmente a tudo o que quer; sabe conhecer e acompanhar o espirito e o humor daqueles com quem priva e ao preocupar-se com os interesses dos amigos, faz progredir e firmar os seus. Um bom espírito vê todas as coisas como devem ser vistas; aprecia-as como merecem, sabe escolher o lado mais vantajoso, e se defende com firmeza os seus pensamentos, é porque lhes conhece a força e a razão.
Há uma diferença entre um espírito útil e um espírito prático: podemos envolver-nos em negócios sem pensar apenas nos nossos interesses particulares; há pessoas hábeis em tudo o que não lhes diz respeito, e muito desastradas em tudo o que lhes respeita, mas há outras que, pelo contrário, possuem uma habilidade que se limita ao que lhes toca diretamente e que sabem tirar partido de tudo.
Podemos ter no conjunto um ar sério e dizer por vezes coisas agradáveis e divertidas; esta espécie de espírito convém a toda a gente e em todas as idades da vida. Os jovens têm vulgarmente um espírito divertido e trocista, mas sem seriedade, o que por vezes os tornam incómodos. Nada é mais difícil do que querer agradar sempre, e os aplausos que muitas vezes recebemos por divertir os outros não justificam que nos arrisquemos à vergonha de os aborrecer quando estão de mau humor. A ironia é uma das qualidades de espírito mais agradáveis e mais perigosas: agrada sempre quando é delicada; mas receamos sempre aqueles que a usam demasiado. No entanto, o gracejo pode permitir-se, quando não é acompanhado de malícia, e quando fazemos participar nele as próprias pessoas de quem falamos.
É difícil ter um espirito sarcástico sem fingir alegria ou sem se ser trocista; é necessário muito acerto para se ser irônico sem cair num destes extremos. A ironia é uma lufada de alegria que enche a imaginação e lhe faz ver em caricatura os objetos à sua volta; o humor adiciona-lhe mais ou menos doçura ou azedume; há uma forma de ironia delicada e lisonjeira que apenas aflora os defeitos que as pessoas estão dispostas a confessar, que sabe disfarçar os elogios sob a aparência de críticas e revela o que eles têm de favorável simulando pretender escondê-lo.
Um espírito fino e um espírito finório são muito diferentes. O primeiro agrada sempre; é penetrante, tem pensamentos delicados e apercebe-se das coisas mais sutis. Um espírito finório nunca funciona a direito, serve-se de rodeios e desvios para atingir os seus objetivos; esta conduta cedo se descobre, é sempre temível e quase nunca leva às coisas grandes.
Há alguma diferença entre um espírito fogoso e um espírito brilhante. Um espirito fogoso vai mais longe e com maior rapidez; um espirito brilhante possui vivacidade, encanto e acerto.
A doçura de espírito tem algo de fácil e acomodatício, que agrada sempre, quando não é insípida.
Um espírito minucioso aplica-se com ordem e regra a todas as particulariedades dos assuntos que se lhe apresentam. Esta aplicação limita-o vulgarmente a pequenas coisas; não é, no entanto, incompatível com vistas mais largas, e quando estas qualidades coincidem num mesmo espírito, elevam-no infinitamente acima dos outros.
Abusou-se da expressão belo espírito, e embora tudo o que ficou dito sobre as diferentes qualidades do espírito se possa aplicar a um belo espirito, como esta designação foi entretanto aplicada a um sem número de maus poetas e autores enfadonhos, servimo-nos mais vezes dela para ridicularizar do que para louvar.
Apesar de existirem vários epítetos para qualificar o espírito que parecem semelhantes, o tom e a maneira de os pronunciar fazem toda a diferença; mas como os tons e as maneiras não podem escrever-se, não entrarei em pormenores que seria impossível explicar bem. A maneira como nos exprimimos vulgarmente é bastante esclarecedora e ao dizermos que um homem tem espírito, que tem bastante espírito, que tem muito espírito e que tem bom espírito, só os tons e as maneiras podem estabelecer a diferença entre estas expressões aparentemente semelhantes no papel o que, no entanto, exprimem estados de espírito muito diferentes.
Diz-se ainda que um homem só tem uma espécie de espírito, que tem muitas espécies de espírito e que tem todas as espécies de espírito. Pode ser-se tolo com muito espírito e não ser tolo com pouco.
Abusou-se da expressão belo espírito, e embora tudo o que ficou dito sobre as diferentes qualidades do espírito se possa aplicar a um belo espirito, como esta designação foi entretanto aplicada a um sem número de maus poetas e autores enfadonhos, servimo-nos mais vezes dela para ridicularizar do que para louvar.
Apesar de existirem vários epítetos para qualificar o espírito que parecem semelhantes, o tom e a maneira de os pronunciar fazem toda a diferença; mas como os tons e as maneiras não podem escrever-se, não entrarei em pormenores que seria impossível explicar bem. A maneira como nos exprimimos vulgarmente é bastante esclarecedora e ao dizermos que um homem tem espírito, que tem bastante espírito, que tem muito espírito e que tem bom espírito, só os tons e as maneiras podem estabelecer a diferença entre estas expressões aparentemente semelhantes no papel o que, no entanto, exprimem estados de espírito muito diferentes.
Diz-se ainda que um homem só tem uma espécie de espírito, que tem muitas espécies de espírito e que tem todas as espécies de espírito. Pode ser-se tolo com muito espírito e não ser tolo com pouco.
Ter muito espírito é uma expressão equívoca: pode compreender todas as espécies de espírito de que acabamos de falar, mas pode também não se referir a nenhuma em particular. Podemos, às vezes, parecer ter espírito naquilo que dizemos sem o termos no nosso comportamento; podemos ter um espírito limitado; um espírito pode ser adequado a certas coisas e não o ser a outras; podemos ter muito espírito e não servir para nada, e com muito espírito somos às vezes muito incômodos. Parece, no entanto, que o maior mérito desta espécie de espírito é o de agradar na conversação.
Embora os produtos do espírito sejam infinitos, podemos, a meu ver, distingui-los da seguinte forma: há coisas tão belas que toda a gente é capaz de ver e de lhes sentir a beleza, há outras que são belas e aborrecem, outras ainda que são belas, que toda a gente sente e admira, embora nem todos saibam muito bem porquê; há outras que são tão finas e delicadas que poucas pessoas são capazes de lhes distinguir todas as belezas, outras há que não sendo perfeitas são ditas com tanta arte, defendidas e conduzidas com tanta razão e tanta graça, que merecem ser admiradas.
Embora os produtos do espírito sejam infinitos, podemos, a meu ver, distingui-los da seguinte forma: há coisas tão belas que toda a gente é capaz de ver e de lhes sentir a beleza, há outras que são belas e aborrecem, outras ainda que são belas, que toda a gente sente e admira, embora nem todos saibam muito bem porquê; há outras que são tão finas e delicadas que poucas pessoas são capazes de lhes distinguir todas as belezas, outras há que não sendo perfeitas são ditas com tanta arte, defendidas e conduzidas com tanta razão e tanta graça, que merecem ser admiradas.
La Rochefoucauld, in Reflexões
A Rendeira
Entre seus dedos macios os bilros atritam,
como dardos de fogo crepitante;
voam no espaço limitado, voltam velozes,
de uma a outra mão domesticados.
Voam e volteiam em ritmos iguais e sonoros
como sons de uma harpa celestial:
enquanto a mão prende um feixe de linha
a outra retira e espeta o espinho na almofada.
E os dedos trocam os bilros
num vaivém de ritmos atroantes
e é como se mãos de crianças se enredassem nos
desenhos do estrado
que a artesã-rendeira vai ao tempo bordando.
2.
Entre seus dedos macios os bilros estalam
como dardos de fogo queimam-me as veias.
E a pobre anciã que os bilros atira,
de uma a outra mão, não sabe que minha alma
é crucificada pela canção que vai gemendo
— uma canção de amor, mas de que época passada?
Triste e murmurante como um gorjeio.
Não obstante fazei (e desfazei) com vosso novelo de ouro
e vossos bilros esse bordado claro como a lua,
alvo como as varandas das nuvens que no céu pervagam.
Ó constante anciã, abelha doméstica, operária invencível.
Tão pobre é vossa casa, tão ricos os vossos dotes,
que eu trocaria todos os meus bens por essa modesta oficina,
onde vossas mãos vibram como uma taça de prata
despedaçada.
Ah, que destino leve, que imperceptível revoada de anjos
em torno de vós adeja — artesã das horas reinventadas.
Sob vossa cabeça curva, sob vossa nuca caída,
jaz meu coração morto e esburacado.
3.
Já é noite
e ela a tanger os bilros como um pastor de ovelhas;
cantando uma velha canção, mas de que época?
Talvez uma canção de amor, dita em segredo.
Como o pastor tardo, vai o rebanho tangendo,
na ondulação do campo e do ritmo cadente da marcha,
também murmurando uma canção, úmida e sombria,
sob a neve do crepúsculo, mas de que época passada?
E vai a rendeira recolhendo a lã de seu novelo
alva como os cachos de leite da lua
sob o balir das ovelhas que ressoa em meus ouvidos.
As estrelas se acendem
e ela a trocar os bilros sob a luz da lamparina
e há uma fada invisível dobradas sobre seus joelhos
imitando, como os bilros da sombra, os gestos da
anciã-rendeira.
como dardos de fogo crepitante;
voam no espaço limitado, voltam velozes,
de uma a outra mão domesticados.
Voam e volteiam em ritmos iguais e sonoros
como sons de uma harpa celestial:
enquanto a mão prende um feixe de linha
a outra retira e espeta o espinho na almofada.
E os dedos trocam os bilros
num vaivém de ritmos atroantes
e é como se mãos de crianças se enredassem nos
desenhos do estrado
que a artesã-rendeira vai ao tempo bordando.
2.
Entre seus dedos macios os bilros estalam
como dardos de fogo queimam-me as veias.
E a pobre anciã que os bilros atira,
de uma a outra mão, não sabe que minha alma
é crucificada pela canção que vai gemendo
— uma canção de amor, mas de que época passada?
Triste e murmurante como um gorjeio.
Não obstante fazei (e desfazei) com vosso novelo de ouro
e vossos bilros esse bordado claro como a lua,
alvo como as varandas das nuvens que no céu pervagam.
Ó constante anciã, abelha doméstica, operária invencível.
Tão pobre é vossa casa, tão ricos os vossos dotes,
que eu trocaria todos os meus bens por essa modesta oficina,
onde vossas mãos vibram como uma taça de prata
despedaçada.
Ah, que destino leve, que imperceptível revoada de anjos
em torno de vós adeja — artesã das horas reinventadas.
Sob vossa cabeça curva, sob vossa nuca caída,
jaz meu coração morto e esburacado.
3.
Já é noite
e ela a tanger os bilros como um pastor de ovelhas;
cantando uma velha canção, mas de que época?
Talvez uma canção de amor, dita em segredo.
Como o pastor tardo, vai o rebanho tangendo,
na ondulação do campo e do ritmo cadente da marcha,
também murmurando uma canção, úmida e sombria,
sob a neve do crepúsculo, mas de que época passada?
E vai a rendeira recolhendo a lã de seu novelo
alva como os cachos de leite da lua
sob o balir das ovelhas que ressoa em meus ouvidos.
As estrelas se acendem
e ela a trocar os bilros sob a luz da lamparina
e há uma fada invisível dobradas sobre seus joelhos
imitando, como os bilros da sombra, os gestos da
anciã-rendeira.
José Alcides Pinto, poeta cearense
"A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós."
Jane Austen
sábado, 28 de janeiro de 2012
A Saga de Os Índios Tabajaras: a fantástica trajetória ao estrelato musical internacional de dois índios brasileiros (ou Brasil: um país sem memória)*
A trajetória dos Índios Tabajaras dificilmente encontrará paralelo com qualquer outra, vindo de onde vieram e alcançando, no chamado mundo civilizado, o que alcançaram. Tudo pareceria a criação de um delirante ficcionista, não fosse a mais concreta realidade.
Primeiro, por suas origens. São índios brasileiros autênticos, da raça tupi-tabajara, nascidos na remota e agreste serra de Ibiapaba, dentro do então isolado município cearense de Tianguá, na divisa com o Piauí.
Na língua tupi, receberam os nomes de Mussaperê e Herundy, que significam O Terceiro e O Quarto, pois estavam nessa ordem de nascimento dos filhos do cacique Ubajara, ou Senhor das Águas, ao todo trinta e quatro irmãos.
Levados com a família pelo tenente Hildebrando Moreira Lima para a serra do Cariri, recebem dele nomes de branco: Antenor Moreira Lima (Mussaperê) e Natalício Moreira Lima (Herundy). Ouvindo seu canto em tupi, já que não falavam o português, o tenente reconhece neles qualidades para eventualmente tentar a sorte no sul do Brasil.
Do Cariri, em 1933, partem caminhando a pé, com o sonho de chegarem ao Rio de Janeiro, então a capital do Brasil, a milhares de quilômetros de distância. São nessa ocasião dezesseis índios, os pais e quatorze filhos. As dificuldades durante a marcha são imensas. Chegam primeiramente a Pernambuco, depois a Alagoas e à Bahia. Numa feira do Nordeste, compram uma velha viola e vão aprendendo os primeiros acordes sozinhos, como podiam. Mesmo assim tem de trocá-la, num momento de necessidade, por uma cuia de feijão.
Na capital baiana, Salvador, conseguem receber a proteção do governador, que lhes fornece passagens gratuitas para o Rio de Janeiro, onde chegam no início de 1937. Mais de três anos já se tinham transcorrido desde a decisão de conhecer a Cidade Maravilhosa.
Desembarcaram do navio Almirante Jaceguai e, devido a uma reportagem de jornal dando notícia da odisséia, são acolhidos pelo Albergue Leão XIII. Mussaperê e Herundy, dedilhando a viola e o violão e entoando cantos indígenas, mas com roupas de branco, passam logo a se apresentar nas feiras-livres, até que são levados para a Casa de Caboclo, um teatrinho voltado para a cultura regional brasileira. Não foram, porém, bem sucedidos, talvez porque procurassem negar que eram índios, não obstante o aspecto físico não deixar nenhuma dúvida sobre sua origem.
Além disso, quase nada falavam do português, por conseguinte analfabetos, acima de tudo amedrontados, porque muito ingenuamente, acreditaram em alguém que lhes disse que, no Rio de Janeiro, caso descobrissem que eram índios, seriam imediatamente mortos! Demoraram, por isso, mais tempo para se adaptarem aos costumes da cidade grande.
Outra oportunidade apareceria através de um contrato oferecido pelo apresentador radiofônico Paulo Roberto, para cantarem na Rádio Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro, em 1942, com a condição expressa de fazerem publicidade de sua verdadeira origem, um fator positivo de interesse e não negativo como julgavam. Os Irmãos Tabajara são dois bugres... fazendo sucesso no rádio carioca. São interessantíssimos no gênero que aprenderam naturalmente, quando não pensavam em cantar no rádio. Artistas por índole, dedilham magistralmente a viola e o violão, arrancando das cordas efeitos de grande beleza e emotividade - publicava a revista Carioca, de 25.7.1942.
Passam a atuar também nos cassinos da Urca e da Pampulha, em Belo Horizonte. Em 1944, vão a São Paulo para, em seguida, empreenderem uma longa temporada por toda a América Latina, que se estenderá até 1949. Começam pela Argentina, onde o sucesso foi grande e depois rumam para o Chile, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Cuba e México. Às vezes só ganhavam o suficiente para a alimentação e o prosseguimento da viagem.
Mussaperê já vinha se interessando pelos autores clássicos: Beethoven, Bach, Litzt, Mozart e outros grandes mestres. Quando chegam ao México ainda só sabiam tocar de ouvido, sem nenhum conhecimento teórico musical. Num espetáculo, são apresentados pelo ator mexicano Ricardo Montalbán como "analfabetos musicais", um modo peculiar encontrado para dizer que, apesar disso, tocavam bem, mas que os acabou instigando a aprender música.
Mussaperê volta para Caracas e toma lições com Francisco Christancho, maestro da sinfônica da capital venezuelana, e prossegue seus estudos no Brasil. Herundy, por sua vez, volta a Buenos Aires, onde compra uma casa, e também passa a se dedicar ao estudo da música e do canto.
Dois anos depois, reúnem-se novamente e partem para uma excursão à Europa. A música clássica passa então a predominar em seu repertório. Tornam-se respeitados em vários países como intérpretes de Tchaikovsky, Sibelius, Targa, Falla, Villa-Lobos, Chopin e outros. As adaptações instrumentais são feitas por Mussaperê, que as passa para o irmão. Incluem também em seus espetáculos músicas folclóricas européias, cantando-as nos diversos idiomas, sempre com os maiores aplausos do público e a melhor crítica, a ponto de terem a agenda tão cheia de compromissos que têm de recusar muitos convites.
Foi uma demorada excursão que terminaria em Madri, onde o êxito não foi menor. No retorno ao Brasil, no entanto, sentiram que não passavam de uns ilustres desconhecidos e que a música que faziam não correspondia ao interesse das gravadoras e das emissoras. É quando fazem três discos na gravadora Continental, lançados em 1953/54: Tambor Índio/Acara Cary (16.869), Pássaro Campana/Fiesta Linda (16.913) e Te Besaré/Te Quiero Mucho Más (16.972).
Cientes de que santo de casa não faz milagre, como diz o ditado, partem, em 1954, para uma nova excursão pelo exterior, a fim de se exibirem inicialmente no Rádio City de Nova Iorque, precedida de uma pequena temporada em Cuba. Gravam, em 1957, na RCA Victor americana, um LP chamado Sweet and Savage (Doce e Selvagem), no qual incluem o bolero Maria Helena, de Lorenzo Barcelata, melodias brasileiras e outros standars latinos, que todavia passa despercebido.
Voltam ao Brasil, encetando nova tentativa de penetrar no mundo artístico de sua terra. Não obtendo a mesma aceitação do exterior, resolvem encerrar as atividades artísticas. Com as economias feitas, efetuam a compra de uma propriedade rural na localidade de Araruama, distante cerca de cem quilômetros do Rio de Janeiro, com mais da metade da área coberta por mata virgem. Com a maioria dos trinta e quatro irmãos, fazem da agricultura seu novo meio de existência, procurando reproduzir a vida tribal de sua infância no contato com a natureza.
Estavam nessa vida anônima e calma, quando a mão do destino começou a agir. No verão de 1963, um produtor da Rádio WNEW, de Nova Iorque, para fazer o fundo musical de um programa humorístico, procura na discoteca da emissora uma música instrumental qualquer. Experimenta daqui e dali e, por acaso, puxa da prateleira justamente o LP Sweet and Savage, encontrando logo na primeira faixa em Maria Helena, o que estava querendo.
Assim, diariamente, o fox Maria Helena foi sendo tocado nesse programa de grande audiência. Não tardaria muito para que muitos ouvintes fossem se encantando e passassem a indagar quem eram aqueles grandes instrumentistas e como poderiam adquirir o disco.
Esses pedidos eram encaminhados à R.C.A. Victor, que, dado o volume das cartas, mandou editar um compacto simples, que, para sua surpresa, começou a ser vendido em todos os Estados Unidos em números impressionantes, a ponto de alcançar o 4º lugar no hit parade! Daí para o relançamento do Sweet and Savage, aquele de 1957, foi um passo. Resultado: 2º lugar entre os estéreos e 4º lugar entre os monos no ano de 1963!
Os executivos da R.C.A. Victor, diante de fatos tão inacreditáveis, comunicaram-se com sua filial do Rio de Janeiro, com a ordem expressa de que aqueles índios fossem localizados e embarcados imediatamente para Nova Iorque, pois queriam produzir com eles novos discos.
Encontrá-los, porém não foi nada fácil. Ninguém sabia onde tinham se escondido. Por fim, são encontrados no seu retirado sítio de Araruama, às margens da lagoa do mesmo nome.
- Pensávamos que fosse brincadeira. Só acreditamos mesmo quando recebemos a passagem de ida-e-volta e ajuda de custo para seguir com destino a Nova Iorque com tudo pago... Ficamos hospedados nos melhores hotéis e só não gostamos mesmo foi do tal caviar servido todos os dias - contava Mussaperê.
Em apenas trinta e seis dias, gravam em Nova Iorque dois LPs e dois compactos, com destaque especial para Moonlight and Shadows, Solamente Una Vez e Always In My Heart, tendo esta última vendido rapidamente 200 mil cópias e ido para o 3º lugar nas paradas.
Os convites para se apresentarem por todos os Estados Unidos não cessam de chegar, assim como para a Europa e o Japão, onde também se tornam ídolos. Em muitos concertos são acompanhados por orquestras filarmônicas. No início dos anos 70, já estão com 48 LPs gravados e oito milhões de cópias vendidas.
Tudo parece mesmo criação de algum delirante ficcionista, mas é a vida real e fantástica de dois pobres índios, que de uma aldeia perdida numa serra brasileira, um dia iniciaram sua jornada, rumo ao sucesso internacional, caminhando a pé.
O texto acima não representa a biografia completa do artista, mas sim, partes importantes de sua vida e carreira.
Fonte: www.revivendomusicas.com.br (*título criado pelo blogueiro)
"A Separação": uma unanimidade inteligente
Você sabe como funciona: um crítico elogia; um amigo diz que é fantástico; um festival dá um prêmio e depois outro e mais outro… e, quando você finalmente vê o filme, a decepção é garantida, porque não dá para competir com a expectativa. Mas não com o iraniano “A Separação”. O filme iraniano é tudo aquilo que falaram. E um pouco mais. Na verdade, muito mais.
Há pelo menos três aspectos notáveis no trabalho de Ashgar Farhadi. O primeiro é o próprio artesanato da obra, a conjugação dos vários elementos que compõem um filme: roteiro, direção, atuações, fotografia etc. Cada um deles tem um nível excepcional, mas nenhum se sobressai em relação ao outro, todos estão lá para compor um conjunto.
O segundo aspecto fascinante do filme é a quantidade de temas que “A Separação” comporta. É um filme sobre o conflito entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre burgueses e proletários, entre fé e razão, entre Ocidente e Oriente. Alternadamente ou ao mesmo tempo.
O terceiro aspecto é a variedade de gêneros com que Farhadi trabalha. Na primeira cena, um casal burguês discute civilizadamente sua separação e a guarda da filha diante de um oficial de justiça. E parece que vamos assistir a um drama conjugal ocidentalizado, à la “Kramer vs. Kramer” (1979).
Pouco depois, o marido briga com uma mulher grávida que havia contratado para cuidar de seu pai com Alzheimer. Ela perde o filho e processa o patrão. E “A Separação” se torna um kafkiano filme de tribunal, depois um suspense quase hitchcockiano e assim por diante.
Farhadi nunca chama atenção para o próprio virtuosismo, para sua capacidade de fazer o complexo parecer simples, para sua maestria em conjugar as partes, os temas, os gêneros. O cineasta iraniano consegue chegar a um amálgama perfeito, em que os elementos originais se tornam invisíveis – um tipo de carpintaria que já foi dominado pelo cinema clássico americano e hoje parece cada vez mais rara.
Believe the hype: essa unanimidade não é nada burra.
Ricardo Calil, no IG
O aluno
São meus todos os versos já cantados;
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.
São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.
São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
José Paulo Paes
À Liberdade, do Genial Dostoievski
"Tenta fazer esta experiência, construindo um palácio. Equipa-o com mármore, quadros, ouro, pássaros do paraíso, jardins suspensos, todo o tipo de coisas... e entra lá para dentro. Bem, pode ser que nunca mais desejasses sair daí. Talvez, de fato, nunca mais saísses de lá. Está lá tudo! 'Estou muito bem aqui sozinho!'. Mas, de repente - uma ninharia! O teu castelo é rodeado por muros, e é-te dito: 'Tudo isto é teu! Desfruta-o! Apenas não podes sair daqui!'. Então, acredita-me, nesse mesmo instante quererás deixar esse teu paraíso e pular por cima do muro. Mais! Tudo esse luxo, toda essa plenitude, aumentará o teu sofrimento. Sentir-te-ás insultado como resultado de todo esse luxo... Sim, apenas uma coisa te falta... um pouco de liberdade".
Fiodor Dostoievski, in O Movimento de Liberação
De qual espécie você é?
"Há duas espécies de homens: os justos, que se julgam pecadores e os pecadores que se creem justos."
Blaise Pascal
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
Senhorita
Minha meiga senhorita eu nunca pude lhe dizer
Você jamais me perguntou
de onde eu venho e pra onde vou
De onde eu venho não importa, já passou
O que importa é saber pra onde vou
Você jamais me perguntou
de onde eu venho e pra onde vou
De onde eu venho não importa, já passou
O que importa é saber pra onde vou
Minha meiga senhorita o que eu tenho é quase nada
Mas tenho o sol como amigo
Traz o que é seu e vem morar comigo
Uma palhoça no canto da serra será nosso abrigo
Traz o que é seu e vem correndo, vem morar comigo
Mas tenho o sol como amigo
Traz o que é seu e vem morar comigo
Uma palhoça no canto da serra será nosso abrigo
Traz o que é seu e vem correndo, vem morar comigo
Aqui é pequeno mas dá pra nós dois
E se for preciso a gente aumenta depois
Tem um violão que é pra noites de lua
Tem uma varanda que é minha e que é sua
Vem morar comigo meiga senhorita
Doce meiga senhorita
Vem morar comigo.
E se for preciso a gente aumenta depois
Tem um violão que é pra noites de lua
Tem uma varanda que é minha e que é sua
Vem morar comigo meiga senhorita
Doce meiga senhorita
Vem morar comigo.