segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Música de intervenção

Como disse Nietzsche, “a vida sem música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio”. A música mantém nossos sentidos despertos, nos leva a intervir no mundo. Música de intervenção. Eis o que me vem em mente ao finalizar a audição de Isam, nova criação do carioca Amon Tobin, obra que escolhi para inaugurar essa fase do blog com uma provocação à forma musical, como ela é apresentada e composta. 
O disco soa uma revisão do que se entende de futurismo musical, arrisco exagerar. Ou como conceitua o próprio Amon Tobin: um mix de psicodelia com ficção científica.
A obra vai além do formato álbum, expansível ao universo das artes gráficas, plásticas e digitais. A partir do livro Control Over Nature que é vendido junto ao disco, com imagens de esculturas de insetos da artista inglesa Tessa Farmer, até o show, uma verdadeira instalação multimídia, com técnicas avançadas de animação e projeções em 3D. É “o concerto do futuro, hoje”, sentenciou o site Gizmodo.
Faz tempo, há precisos 12 anos, que Amon Tobin busca as trilhas da recriação fazendo de sua principal atividade a expansão das áreas da liberdade autoral. Assim, instrumenta o futuro com ferramentas do presente. Antes processava seus discos de vinil de beebop, cool jazz, samba, bossa nova, funk e hip hop por uma engenhoca chamada "mutator" plugada aos seus toca-discos, samplers e computador. Hoje extrapola sons em ruídos através do Haken Continuum, instrumento que responde ao toque manual com projeções em três dimensões. A obsessão de Tobin é reinventar a tradição musical com uma alucinada bricolagem de gêneros, conceitos e expressões, criando um enigma ainda a ser desvendado.
Drum ‘n’ jazz, blues psicodélico, breakbeat, foram algumas das muitas tentativas para definir a arquitetura de sons, texturas e polirritmias reconstruídas a cada novo disco de Amon Tobin. Foi assim com Adventures in Foam (1996), Bricolage (1997), Permutation (1988) e Supermodified (2000).
Isam, nono álbum, vamos assim dizer, da carreira deste carioca-londrino, é o ápice de uma odisséia futurista-musical que começou com Fooley Room (2007). Um trabalho dedicado a concepção de sons absolutamente digitalizados. Mesmo distante dos fatores analógicos, Amon Tobin pôs as mãos na teoria do caos, levou-a ao mundo dos jogos e trilhas sonoras abstratas para filmes.
Em Isam, as forças da realidade se impõem sobre o mundo onírico. Se há um resquício melódico na faixa de abertura “Jorneyman”, ele se desfaz em atonalidades na canção de ninar Bedtime Stories. O álbum tem uma narrativa que ganha uma forma labiríntica. Não se sabe mais o que é melodia e o que é ruído daí para frente: um toque flamenco se transforma no arranhar de um berimbau em “Mass & Spring”, o vocal de Tobin soa como voz feminina em “Kitty Cat” e “Wooden Toy”, em meio a uma escultura sonora que sugere uma nova imagem, um novo lugar a cada conjunção de sons. Uma deriva situacionista.
São as dissonâncias de Tobin, não confundir com o velho e bom mestre das harmonias dissonantes, o maestro Jobim. Ao contrário de seus mestres Enio Morricone e Lalo Schifrin, que deram vida a sons inspirados por imagens, Amon Tobin gera imagens na tela do inconsciente a partir de sua particular regência caótica de sons.
Carlos Freitas, in revistapiaui.estadao.com.br

"Bebe-se a largos sorvos a mentira que nos lisonjeia, e gota a gota a verdade que nos é amarga."
Jean Jacques Rousseau

Imagens Oníricas

Jean-Maurice é um ilustrador francês, de Paris. Depois de aprender a trabalhar com imagem digital em uma escola de comunicação visual, ele desenvolveu suas habilidades, trabalhando como designer gráfico e fotógrafo em Paris e Londres. Jean-Maurice está constantemente a tentar melhorar a sua perícia na mídia digital. Ele gosta de misturar todas as ferramentas de mídia como a pintura, em 2D e 3D, para obter um resultado bem equilibrado.

Garden

Monks

Storm

River_IVX2

abstraitFinal_V2

wonder

Nada mais que um inseto

Custei um pouco para compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde claro, de pernas altas. Era uma esperança, o que sempre me disseram que é um bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo em plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é outra própria superfície. Parece com um raso desenho que tivesse saído do papel e, verde, andasse. Mas andava sonâmbula, determinada. Sonâmbula: uma folha mínima de árvore que tivesse ganho a independência solitária dos que seguem o apagado traço de um destino. E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim. Sem tremos ela andava. Seu mecanismo interior não  era trêmulo, mas tinha o estremecimento regular do mais frágil relógio. Como seria o amor entre duas esperanças? Verde e verde, e depois o mesmo verde, que, de repente, por vibração de verde, se torna verde. Amor predestinado pelo seu próprio mecanismo semi-aéreo. Mas onde estariam nela as glândulas de seu destino, e as adrenalinas de seu seco e verde interior? Pois era um ser oco, um enxerte de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes. Como eu? Eu. Nós? Nós. Numa magia esperança de pernas altas, que caminharia sobre o seio sem nem sequer acordar o resto do corpo nessa esperança que não pode ser oca, nessa esperança e energia atômica sem tragédia se encaminha em silêncio. Nós? Nós.

Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Carlos Drummond de Andrade, 109 anos (31 de outubro de 1902, Itabira - MG)

Consideração do poema

Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.

Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? Há doenças?
É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,
por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.
O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio,
boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,
boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos,
sentir que há ecos, poucos, mas cristal,
não rocha apenas, peixes circulando
sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo
sua derrota, e dois ou três faróis,
últimos! Esperança do mar negro.
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.


“Ah! Eu o sei agora: nada custa mais ao homem do que seguir o caminho que conduz a si mesmo”.
Maurice Chapelan

domingo, 30 de outubro de 2011

Biliu de Campina: ícone do autêntico forró e da cultura nordestina


1ª parte do DVD Antes que o mundo se acabe, gravado em 21 de março de 2011, no Restaurante Mororó, em Campina Grande - PB.

Pintura fora da partitura


Fermata, termo italiano usado para designar o prolongamento de uma nota musical, foi incorporado pelos artistas plásticos Osgemeos como título desta exposição. Simboliza intervalos do pensamento sonoro ou, na experiência dos irmãos, momentos como aqueles em que desenham uma cachoeira e conseguem escutar o barulho das águas. A mostra conta com pinturas, obras interativas e uma escultura gigante, todas inéditas.
Mais conhecidos como grafiteiros, Gustavo e Otávio Pandolfo afirmam que a atividade artística os aproxima. “Quando estamos pintando, nos sentimos muito próximos, ficamos abertos e sensíveis um ao outro, ao ambiente, a tudo. Nos concentramos totalmente no que está sendo feito, prestamos atenção a tudo o que nos cerca. Entramos no nosso jardim.”

Onde: Museu Vale – Antiga Estação Pedro Nolasco, s/nº, Vila Velha (ES)
Quando: 28/10 a 12/2
Quanto: gratuito
Info.: (27) 3333-2484, www.museuvale.com


Nelson Cavaquinho - 100 anos

Nelson Cavaquinho era um sujeito engraçado, cheio de histórias para contar. Algumas são famosas. Por exemplo, aquela em que ele sonhou que ia morrer numa determinada hora e, quando ela foi se aproximando, tomou a simples providência de atrasar o relógio. Ou a do tempo de militar, quando amarrou o cavalo na frente de um botequim na Mangueira para tomar umas e outras com Cartola e demorou-se tanto que o animal voltou sozinho ao quartel, denunciando as estripulias do cavaleiro.

Quem já teve a felicidade de ouvir essas histórias numa mesa de bar, de viva voz, riu com seu autor. Mas não deixou de perceber o fundo de melancolia que havia em tudo isso e que Nelson, no correr da madrugada, não procurava disfarçar. Era um triste. E, para saber disso, nem era preciso ouvir histórias ou conversar e beber com o compositor. Suas músicas falavam de tudo isso, mais do que ele próprio.
Só que tristeza, mal de amor, angústia diante da morte – nada disso faz um artista. Pode ser apenas um ponto de partida e nada mais. É no conjunto formado pela letra, música, o estilo único de tocar violão e voz que Nelson forjou sua nova versão do samba trágico, em que a dor de cotovelo é elevada à enésima potência, como reflexo de uma visão sombria da própria existência.
As letras, em parceria ou não, vestem-se de uma linha melódica inesperada. A progressão harmônica contempla mudanças bruscas de tonalidade como se esse mestre, sem qualquer formação musical, fosse um equilibrista das modulações. O toque no violão é rascante, próximo ao cavalete. E a voz é um prodígio pelo simples fato de ainda existir, esculpida em décadas de boemia, cigarro e álcool. Como enumerar tantas obras-primas saídas de condições tão díspares: Luz Negra, Pranto de Poeta, Mulher sem Alma, O Espinho e a Flor, Folhas Secas, Juízo Final? Um milagre, mais um milagre brasileiro.
Que Nelson traduza a infelicidade de maneira tão genial e pungente, de modo a nos fazer felizes com sua música – bem, este é um dos mais desconcertantes paradoxos da sua grande arte.

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca flor
Eu só errei quando juntei minh´alma à sua
O sol não pode viver perto lua.

É no espelho que eu vejo a minha mágoa
A minha dor e os meus olhos rasos d´água
Eu na sua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em teu amor...

Composição: Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

A essência do fanatismo

“A essência do fanatismo consiste em considerar determinado problema como tão importante que ultrapasse qualquer outro. Os bizantinos, nos dias que precederam a conquista turca, entendiam ser mais importante evitar o uso do pão ázimo na comunhão do que salvar Constantinopla para a cristandade. Muitos habitantes da península indiana estão dispostos a precipitar o seu país na ruína por divergirem numa questão importante: saber se o pecado mais detestável consiste em comer carne de porco ou de vaca. Os reacionários americanos prefeririam perder a próxima guerra do que empregar nas investigações atómicas qualquer indivíduo cujo primo em segundo grau tivesse encontrado um comunista nalguma região. Durante a Primeira Guerra Mundial, os escoceses sabatários, a despeito da escassez de víveres provocada pela atividade dos submarinos alemães, protestavam contra a plantação de batatas ao domingo e diziam que a cólera divina, devido a esse pecado, explicava os nossos malogros militares. Os que opõem objecções teológicas à limitação dos nascimentos, consentem que a fome, a miséria e a guerra persistam até ao fim dos tempos porque não podem esquecer um texto, mal interpretado, do Gênese. Os partidários entusiastas do comunismo, tal como os seus maiores inimigos, preferem ver a raça humana exterminada pela radioatividade do que chegar a um compromisso com o mal - capitalismo ou comunismo segundo o caso. Tudo isto são exemplos de fanatismo.
Em cada comunidade há certo número de fanáticos por temperamento. Alguns desses fanáticos são essencialmente inofensivos e os outros não fazem mal enquanto os seus partidários forem pouco numerosos ou estiverem afastados do poder. Os amish na Pensilvânia pensam que é mau usar botões; isto é completamente inofensivo, salvo na medida em que revela um estado de espírito absurdo. Alguns protestantes extremistas gostariam de ressuscitar a perseguição aos católicos; essas pessoas só serão inofensivas enquanto forem em pequeno número. Para que o fanatismo se torne uma ameaça séria é preciso que possua bastantes partidários para pôr a paz em perigo, internamente por meio de uma guerra civil ou externamente por uma cruzada; ou quando, sem guerra civil, estabeleça uma Lei dos Santos que implique a perseguição e a estagnação mental. No passado, o melhor exemplo da história é o reinado da Igreja desde o século IV ao século XVI. (...) Para curar o fanatismo - salvo nas aberrações raras dos indivíduos excêntricos - são necessárias três condições: segurança, prosperidade e educação liberal. 

Bertrand Russell, in A Última Oportunidade do Homem

Ly


Digitalização do poema concreto de Augusto de Campos

Falas inesquecíveis do cinema

"We find the defendants incredibly guilty."
Tradução: Consideramos os réus incrivelmente culpados.
Filme: Primavera para Hitler (The Producers, 1968)
Quem diz: O primeiro jurado (Bill Macy).

"Não basta que as coisas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os ditos que alegamos se chamam autoridade, por que o autor é o que lhe dá o crédito e lhe concilia o respeito."
Padre Antônio Vieira

sábado, 29 de outubro de 2011

Posse de escritor na AMOL e entrega de prêmios

Ontem, no auditório do SESI - Mossoró, Sessão Solene de posse do escritor David de Medeiros Leite na Academia Mossoroense de Letras – AMOL e entrega dos prêmios do Concurso Literário João Batista Cascudo Rodrigues, promovido pela AMOL.

Mesa Solene

David Leite em seu discurso de posse

O Reitor Milton Marques me entregando o Certificado e prêmio de 2º lugar, categoria Contos


Elilson e Mário Gerson, membro da AMOL



A Man of His Words

“Se você vive uma vida de faz de conta, sua vida não vale nada até que você faça algo que põe em causa a sua realidade. E para mim, navegar o oceano aberto é um verdadeiro desafio, porque é vida ou morte”.
Morgan Freeman

A vida é assim mesmo, meu chapa!


“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”
Renato Russo

Fazia frio. A chuva fina que caía ininterruptamente há dois dias provocou queda na temperatura. A mudança brusca das condições climáticas de uma cidade do centro-oeste brasileiro, acostumada ao calor seco sempre tão nocivo à mucosa respiratória e ao capim, compromete o humor das pessoas. Geralmente, para menos. Nunca se está plenamente satisfeito com o que se tem, não é mesmo?! 
Pois bem: ele morava com a família num condomínio de luxo. Um apartamento por andar. Quisera ele tivesse também um pensamento por vez dentro da cabeça. Não. O turbilhão de lembranças o deixava zonzo e irritado. 
A esposa saíra com os filhos pequenos. Aniversário de criança. Preferiu ficar em casa tentando desopilar aquele mau humor pegajoso. Gozava apenas da companhia do cachorro, uma criaturinha pela qual não nutria tanto afeto assim. Aliás, há dois anos, fora voto vencido quanto à sua entrada no apartamento. Sentia-se desamparado naquela noite chuvosa. Frente fria é assim mesmo. Parece remorso. Pega a gente quando menos se espera. 
Garimpou na estante alguma música animada que exorcizasse tantos demônios, mas acabou mesmo optando pela coletânea de blues. Colocou bi-bi-quingue pra tocar. Embora não fumasse, desejou um cigarro. O uísque escorria fácil pela garganta e era deglutido em goles apressados. Naquela situação, convinha não adiar o entorpecimento.
 Entretanto, os efeitos do álcool e da chuva deixaram-no ainda mais melancólico, neurastênico, saudosista e — convenhamos — deprimido. Episódios vividos na infância e na adolescência invadiam, vividamente, a cabeça, provocando sentimentos antagônicos que o deixaram bem agitado. Apesar do frescor da varanda, gotículas de suor brotavam na sua fronte a desafiar lógicas meteorológicas. É lógico que ele preferia bodar de vez e embotar tantas lembranças remotas. 
Tomou, enfim, o telefone em suas mãos. Ficou irritado por não se lembrar do número telefônico do irmão, com o qual não falava há uns quinze anos. Briga debutante (quase riu ao pensar nisto). Cambaleando, serpenteou pela sala em busca da agenda, esbarrando, derrubando, espatifando enfeites frágeis e fúteis da mobília. Tropeçou também no cachorro, aquela criatura inútil (foi assim que esbravejou). Filho da puta! (ele disse, como se o outro fosse humano) Medroso, o bicho foi deitar num canto da sala, com aquele olhar meio constrangido, meio humano, focinho entre as patas, sabe como é?! 
Com dificuldade extrema, visão embaçada pela raiva e pelo álcool, conseguiu discar os números do teclado. Tudo era silêncio, a não ser o tum-tum-tum da ligação, cacofonia nos seus ouvidos. Teve chance de desligar, pois o telefone chamou inúmeras vezes. Atendeu do outro lado uma voz feminina. Era a enfermeira. Vocês sabem, famílias abastadas contratam enfermeiras ou cuidadoras; os pobres se viram como podem, cuidam eles próprios dos parentes adoecidos, ou lhes aplicam fortes soníferos antes de saírem pro trabalho. 
Ele dorme? Ele pode atender ao telefone? (especulou, quis saber) Educada, a moça de sotaque nordestino pediu que aguardasse um instantinho, viste? Demorou demasiadamente para fazer a verificação. Mais uma vez, a ele ocorreu desistir da conversa. 
Alô? (ela principiou) E então: ele vai falar comigo? (perguntou sem disfarçar a ansiedade) Me desculpe, seu moço. Ele manda dizer que não, que não quer falar. E mais ainda: pede pra que o senhor não volte a ligar. Nunca mais. Por favor. É pedido dele. O senhor me desculpe. Eu só estou transmitindo o recado da forma que ele pediu que eu fizesse, palavra por palavra, viste? (e desligou o aparelho sem esperar réplica). 
Pressentindo miséria, o cachorro voltou para a sacada e se aninhou aos seus pés. O animal sentia frio, fome e pena do dono. Desta feita, o homem deixou escorregar o braço pesado de tanto malte escocês, pelo vão da poltrona. Com a mão anestesiada, acariciou o bicho. A chuva engrossara. Já não precisava mais se valer das luzes dos postes para enxergar os pingos. Sorveu todo o conteúdo do copo de uma vez só, como se fosse água da chuva. 
Queria muito falar com o irmão, pedir autorização para embarcar amanhã cedo no primeiro voo. Pedir desculpas a ele. Abraçá-lo, novamente. Desde o diagnóstico, perdeu uns vinte quilos (foi o que ficou sabendo, através de terceiros). Devia estar com o abraçar diferente, esquálido. Por causa da bebedeira, foi preciso fazer um esforço descomunal para se recordar do motivo da discórdia. Naquela noite, o motivo lhe pareceu bem ridículo. Perdi tanto tempo... (concluiu, enquanto chamegava o totó). 
Três dias depois, o telefone tocou no meio da madrugada. E não é que chovia novamente? Diabos de frente fria era aquela? Do outro lado da linha, a moça de sotaque nordestino. Estava ligando para avisar que o patrão tinha morrido indagorinhamesmo. Sucumbiu, finalmente, ao apetite voraz-suicida do câncer, aquele conglomerado anômalo de células que sorvem a seiva de um corpo como se ele nunca tivesse um fim. 
Agora sim, homi-seu-minino, o senhor podia embarcar para ver o irmão. Se ainda fosse o caso, é claro, pois ele estava tão diferente... E que fizesse o biséqui de avisar os demais irmãos, o restante da família. Interurbano custa muito caro. Sinceras condolências. Que passasse muito bem e até breve.
Eberth Vêncio, in revistabula.com

As 100 maiores canções de jazz da história (com vídeo e áudio incorporados)

Os sites Jazz24 e NPR Música fizeram uma enquete mundial para eleger as 100 melhores canções de jazz em todos os tempos. 1500 canções foram citadas por cerca de 10 mil participantes. No topo da lista aparece “Take Five”, composição escrita por Paul Desmond e apresentada pelo The Dave Brubeck Quartet, no álbum “Time Out”, de 1959. “Take Five” foi o primeiro single de jazz da história a vender 1 milhão de cópias. O segundo lugar da lista ficou com “So What”, de Miles Davis, gravada no álbum “Kind of Blue”, também de 1959.  Em terceiro lugar aparece “Take The a Train”, composta  por Billy Strayhorn e gravada por Duke Ellington, no álbum “Uptown”, de 1952. John Coltrane é o músico que aparece mais vezes, com oito canções. A lista traz ainda uma galeria de lendas como Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, Chet Baker, Ella Fitzgerald, Stan Getz, Benny Goodman, Oliver Nelson, Herbie Hancock, Coleman Hawkins, Bill Evans, Ahmad Jamal, Glenn Miller, Ray Charles, Charlie Parker, Errol Garner,  Billie Holiday, Thelonious Monk e Nina Simone. Para acessar os vídeos: http://bit.ly/lSDqTi. Para acessar o áudio: http://tny.gs/lm3vil. Para acessar apenas o resultado: http://bit.ly/hqlB76.

Resumo

Somos nós o inverso do perfeito,
E a bússola das mágoas que expomos,
Inimigos fanáticos do só isso,
Falsos clones dos anjos que já fomos,
Passageiros do trem da vaidade,
Inquilinos do rancho da maldade,
Sem ideias concretas do que somos.

Nutridos do vírus da ganância,
Ofegando na faina pelo mais,
Submissos ao hábito de trair,
Vivos pávidos na fila dos mortais,
Hesitando que Deus salva e castiga,
Integrando a liga que mais liga
Almas frágeis aos bens materiais.

Também somos a revigoração
Do pecado que deixa Deus irado.
Pelo visgo genético da fraqueza,
Nos mantemos ligados ao pecado,
Preservamos o ódio como lança;
E se Deus nos fez sua semelhança,
Há quem diga que algo deu errado.

José Ribamar, in Espelho de Carne e Osso. Poeta, repentista e cordelista de Caraúbas - RN, radicado em Mossoró


"A arte de interrogar é bem mais a arte dos mestres do que as dos discípulos; é preciso ter já aprendido muitas coisas para saber perguntar aquilo que não se sabe."
Jean Jacques Rousseau

Dalai Lama

"O que mais me surpreende na humanidade, são os homens. Porque perdem a saúde para juntar dinheiro. Depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... E morrem como se nunca tivessem vivido."
Dalai Lama

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! 
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

Mário de Andrade

Vaquejadas: manifestação cultural ou cultura dos maus-tratos?

No senso comum ou na política, evocar ou apelar ao termo “cultura” pode ser conveniente de várias maneiras e atender diversos interesses; desde o desejo de conferir a algo um status distintivo, refinado, culto ou reivindicar a legitimidade de modos de vida, identidades e crenças, uma mãozinha para obter recursos de financiamento do Estado e do mercado e, até mesmo, bloquear certas manifestações e práticas culturais das críticas, questionamentos e avaliações.
Quando então, ao lado do termo “cultura” soma-se a palavra “esporte” a coisa fica ainda mais institucionalizada. Logo, mais difícil de ser questionada e submetida à crítica. É o caso de certos costumes e/ou esportes como caça à coelhos, touradas e, no caso do Brasil, as vaquejadas e rodeios.
Ao contrário de outros animais, somente o homem inflige dor por esporte ou prazer. E o fato de ter consciência da dor causada não diminui nem o faz retroceder em seu ímpeto de crueldade. Nesse sentido, em se tratando de “esportes” ou “tradições culturais” cujo mote se assentam, direta ou parcialmente, na submissão dos animais a maus-tratos e à crueldade, é necessária a regulamentação ou a proibição legal para aplacar o que alguns poderiam pensar ser um “instinto” humano dirigido à violência. Aliás, a própria Constituição Federal (art. 225, § 1º, VII) veda qualquer prática que submeta os animais à crueldade.
Pensando nisto, se deu início um movimento, que já tem algum tempo e que agora age pela internet, que visa colher assinaturas para proibir os maus tratos com os animais infligidos na vaquejada (ver as justificativas http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2011N15526).
A vaquejada é um esporte – pelo menos segundo alguns -, e um lucrativo negócio também, em que dois vaqueiros à cavalo puxam o rabo de um boi para derrubá-lo em um local previamente estabelecido. Nesta competição ou celebração da cultura do cabra-macho, o boi, e muitas vezes, meros bezerros, é um objeto a ser derrotado, entenda-se violentado, pela força e a habilidade das “puxadas” dos vaqueiros, munidos da energia de cavalos velozes e fortes. É um “jogo” desigual: um boi contra dois vaqueiros e dois cavalos.
A vaquejada expõe o animal a inúmeras condições de maus-tratos: o animal encarcerado e submetido a chutes e chicotadas em algumas partes do corpo, inclusive, nos testículos, para que o bicho fique afoito e aumente o grau de dificuldade para os concorrentes. Nesta perspectiva, é impossível não imaginar que não há envolvimento de muito sofrimento ao animal.
O animal é, nesse tipo de prática “esportivo-cultural”, reduzido a mero meio para satisfazer dois propósitos – vaidades – humanos. Um mais particular e outro mais geral. O primeiro, a diversão, o espetáculo. O segundo, mais geral e menos consciente, é atestar a superioridade do homem sobre a natureza e os outros animais. O problemático aqui é que, nesse ritual que é a vaquejada, a diversão é ao custo do sofrimento do animal e a dita superioridade do homem é provada e conquistada pela força, pela capacidade de infligir dor e submissão.
De um modo geral, a vaquejada está, a um só tempo, envolvida num ritual de dominação da natureza sustentado no sofrimento e subjugação do animal, como também pela exaltação do “ser macho nordestino”, da cultura de masculinidade machista que se estende desde as bandas de forró que se apresentam aos demais personagens; vaqueiros, locutores etc..
Para aqueles que defendem a vaquejada, é preciso lembrar que a proibição da vaquejada pode representar um salto civilizatório significativo no tocante as relações homem-natureza em busca de uma racionalidade e modos de relacionamento que não se reduzam à instrumentalidade e à dominação via a violação e  a prova de força. Passo já dado pela Ilhas Canárias e Catalunha, regiões da Espanha que proibiram as famosas touradas em seu país, pondo fim a uma tradição cultural bastante antiga e arraigada.
O argumento de que a vaquejada é uma manifestação cultural não implica aceitar os elementos de violência, crueldade e as condições de sofrimento a que os animais são expostos. Por vezes, a palavra “cultura” ou adjetivo “cultural” encobrem equívocos e violências aos quais se tenta justificar e tornar intocável práticas e hábitos assim qualificados. Por exemplo, práticas de infanticídios e mutilamento genital seriam relativizadas por serem práticas culturais de um determinado povo. Logo, segundo esse raciocínio, qualquer intervenção ou crítica seria um equívoco de indisfarçável etnocentrismo travestido de boas razões humanitárias e civilizatórias. Não se trata apenas de uma concepção congelada e imóvel da cultura, como se esta fosse uma entidade estanque, autoreferente, fechada e incapaz de aprender e redefinir suas crenças, representações e práticas. O problema é também que a ideia – cultura – que deveria constituir a base para desnaturalizar os fenômenos humanos, de que estes são mutáveis, modificáveis e dependem da ação das pessoas, acaba por ser utilizado como discurso que referenda e reforça naturalizações, justificando e perpetuando violências, dominações e desigualdades hierárquicas cuja existência é arbitrária.
O importante, do ponto de vista de uma sociedade democrática madura e reflexiva, é que o fato de certas manifestações, crenças ou práticas constituírem traços de uma cultura particular não sirvam como uma maneira de neutralizar e blindar estas contra questionamentos e interpelações públicas, quer visem tais sua supressão ou ajustamento. A prática da vaquejada precisa ser discutida publicamente quanto aos seus traços e elementos perversos e desnecessariamente violentos.
O homem passou por um processo de pacificação de suas atividades cotidianas e o esporte se estabeleceu como uma das vias para que os agentes produzissem uma economia psíquica dentro de determinadas regras e limites, que viesse a substituir a violência antes praticada. Até os esportes de combate tidos como os mais violentos, como é, por exemplo, o chamado vale-tudo, hoje MMA, apresentam limites objetivos, que visam respeitar a figura da pessoa humana e procurar zelar pela sua integridade.
Ora, esta pacificação deve passar também pelos esportes em que o homem estabelece relação com outros animais. A mudança de viés deve contemplar também o modo como nos relacionamos com a natureza. Não é possível, em pleno século XXI, promover mais um tipo de diversão em que o centro da ação lúdica se estabelece com o sofrimento de um animal.
Alyson Freire e Daniel Menezes, in www.cartapotiguar.com.br